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Artigos-->SOBRE ÉTICA E ÉTICA JURÍDICA -- 04/03/2003 - 16:39 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SOBRE ÉTICA E ÉTICA JURÍDICA



Fernando Dias Andrade

Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia Jurídica na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo



I



A ética jurídica é, sempre, a ética aplicada ao direito. Uma definição precisa, porém, só é possível desde que se defina o que é a ética, porque se trata de um conceito cujo significado, originalmente preciso, foi sempre vilipendiado e vulgarizado. Há não apenas diversas concepções do que seja a ética (a maior parte delas sem qualquer consistência), como também, e por conseqüência, diversas concepções do que seria a ética jurídica (e aqui a falta de rigor é ainda maior). Para o que nos interessa, é o caso de considerar exclusivamente as concepções de ética jurídica que são, efetivamente, conceitos ou práticas. Ou seja, não é o caso de considerar nenhuma mera opinião acerca do que a ética jurídica é, porque o fato de ser uma mera opinião envolve justamente a inexistência de rigor na concepção (e a impossibilidade de uma definição precisa). A ética jurídica, seja o que ela for, só pode ser definida rigorosamente dentro de um método de pensamento (é como ela é definida na filosofia) ou, diferentemente, de uma prática doutrinária (é como ela é definida no direito). Assim, dentre as várias noções ou concepções de ética jurídica, se em primeiro lugar é verdade que existem concepções não rigorosas (as meras opiniões) ao lado de concepções rigorosas (conceitos criados pela filosofia ou pelo direito), e se é o caso de desconsiderar as primeiras em razão da sua falta de fundamento, o que se deve fazer com os conceitos ditos rigorosos? Estes conceitos de ética jurídica que são estabelecidos pela filosofia e pelo direito, de fato, são praticamente inumeráveis, e embora possam sempre ter pontos em comum, a experiência mostra que chegar a um conceito único ou consensual em todos os pontos é impossível. Em outras palavras, não existe um conceito único de ética jurídica, e isto basicamente por dois motivos: primeiro, porque o conceito de ética jurídica depende do conceito de ética, e existem muitas concepções de ética (mas nem todas sabendo o que estão dizendo); segundo, porque a maneira como a ética jurídica é compreendida pelo direito é completamente diferente da maneira como a ética jurídica é compreendida pela filosofia, e isso na prática é um problema grave.





Por que existe um conceito de ética jurídica dado pela filosofia? Justamente porque a ética geral (como já mostrarei) é parte da filosofia e qualquer espécie de ética se liga necessariamente à ética geral: se é o caso de falar numa ética jurídica, esta não pode ser algo separado da ética, da mesma forma que se é o caso de falar em ética profissional, ética na política, bioética, etc. Porém, por que se pode dizer que o direito oferece um conceito de ética jurídica, já que o direito é uma técnica ou uma doutrina e, por isso mesmo, não é filosofia? Já que a ética é filosofia (como se verá), qualquer parte da ética deveria ser, também, filosofia; se a ética, por exemplo, é entendida como uma análise dos valores humanos acerca da ação em qualquer situação, a ética jurídica seria algo como uma análise dos valores humanos cabíveis ou presentes na prática do direito — mas seria sempre uma análise, ou seja, uma prática racional; se a ética, porém, é entendida como conjunto de regras para a conduta humana em qualquer situação, a ética jurídica seria algo como um conjunto de regras para a prática do direito (regras adicionais às regras jurídicas positivas já existentes) — e aí não seria uma análise mais, e por isso não seria mais filosofia. Na minha concepção, como se verá a ética, não é exclusivamente nem uma coisa nem outra (isto é, a ética não é simplesmente uma análise de valores, nem é simplesmente um conjunto de regras): a ética é uma consciência racional da necessidade da ação; uma tal consciência, existente e praticada, permitirá entre outras coisas empreender uma análise de valores morais e mesmo criar valores morais, mas não se resumirá a isto; também, permitirá guiar a criação e a aceitação de um conjunto de regras, mas também não se resumirá de forma alguma a isto.





Há, pois, duas grandes formas de conceituação da ética jurídica: uma jurídica, outra filosófica. No direito, o que é a ética jurídica? Quando se fala, em direito, de ética jurídica, o que normalmente se entende por isso é ética profissional. Ou seja, para o jurista ou para o operador do direito, a ética jurídica é um conjunto de regras de conduta para a prática profissional do direito, visando não apenas a boa prática da função como também a preservação da imagem do próprio profissional e de sua categoria; é, portanto, um tipo específico de avaliação ou orientação da prática jurídica paralelo à orientação determinada pelas normas processuais e pelas normas objetivas, mas para a qual também se pode conceber uma certa forma jurídica de codificação (daí a criação dos "códigos de ética"), e também uma certa forma de sanção (daí a instituição dos tribunais de ética ou comissões de ética).





Um exemplo direto disso é o que o direito chama de ética advocatícia, ou ética dos advogados. Dá-se esse nome justamente a uma concepção de regras de conduta para a prática profissional da advocacia (regras diferenciadas das regras jurídicas processuais e das regras jurídicas objetivas, e que dizem respeito justamente a como bem lidar com essa prática das regras jurídicas); considera-se, também, que tais regras podem ser válidas de tal forma a todos os praticantes da advocacia que é o caso de instituí-las e universalizá-las, com a criação de um Código de Ética da Advocacia; esse procedimento de formulação de regras de conduta para um adequado exercício da função profissional, a propósito, de forma alguma é exclusividade da categoria dos advogados, e mesmo das categorias profissionais jurídicas: ele é praxe em praticamente todas as categorias profissionais, sob diversas formas, do código de ética a regulamentação interna em empresas e corporações. Nessa concepção jurídica da ética jurídica, encontramos enfim quatro características principais:





1) A ética jurídica é uma ética profissional. Em praticamente todas as concepções jurídicas do que deve ser a ética jurídica (especialmente no Brasil), a ética é concebida como uma vigilância moral da vida humana, e quando é especializada numa prática específica, concebe-se essa prática como prática profissional: na visão do jurista, comumente, se é o caso de falar numa ética jurídica, a prática correspondente a essa ética especificamente jurídica só poderia ser, portanto, a prática profissional, e não outra coisa. Daí, considerar-se aí que ética jurídica só pode ser ética da prática profissional do direito.





2) A ética é um conjunto de regras. Isso é importantíssimo, porque é uma visão não apenas do meio jurídico, mas uma visão vulgar em geral. A ética, para o jurista (e a melhor prova disso é a concepção de ética jurídica), é um conjunto de regras de conduta para orientação de uma determinada prática (a prática profissional), de maneira que agir de forma ética seria o mesmo que agir de acordo com determinadas regras ou sem contradição com elas. Assim, a ética é uma forma de orientar a ação humana, de que maneira o jurista concebe que a coisa funciona? Através de uma regra, seja ela escrita ou não.





3) A regra ética é universal. Se a regra ética, para quem ela é válida? Na concepção praticada pelo jurista ou operador do direito, ela é válida para todos os seus destinatários, como no caso de uma regra jurídica comum. Assim, se existir a ética geral, as regras que esta puder apresentar serão regras morais, tidas como válidas para todas as pessoas indiscriminadamente (a exemplo de: "deve-se dar a cada um o que é seu"); se, porém, a ética é especializada numa determinada prática, como no caso da ética jurídica, já que a ética aí é concebida como ética profissional, a regra ética da ética jurídica será válida para todos os integrantes da categoria profissional correspondente — mas sempre será válida para todos eles, indiscriminadamente, independente das singularidades de cada um. Assim, já que a regra ética dessa ética profissional é válida para todos os integrantes dessa categoria profissional, é o caso mesmo de positivá-la através de um código; dessa concepção, portanto, de que a orientação ética se faz por meio de uma regra e que a regra tem valor universal e indiscriminado para os seus destinatários, elabora-se um código de ética, proposto exatamente como formalização das regras que são certamente válidas para tal ou qual categoria; finalmente, dessa concepção de que é possível oficializar a regra ética, o código de ética ganha respaldo jurídico e institucional e passa a ser instrumento de sanção sobre os profissionais de sua área, de maneira que as regras do código de ética passam a se confundir com as outras normas profissionais.





4) A regra ética é criada e avaliada por especialistas. Se a regra ética é inevitavelmente concebida como universal e positivável, ela é concebida como devendo ser elaborada e mantida por uma instituição. Assim, no caso da elaboração da regra ética (ou mesmo do código de ética), é necessária a iniciativa de uma entidade representativa da própria categoria profissional (caso da OAB no exemplo da ética advocatícia); e, no caso da avaliação das infrações às regras contidas no código, é necessária a atuação de uma comissão ligada à entidade que elaborou o próprio código. Independente de qualquer desses momentos, a ética é concebida ou praticada como se fosse coisa de especialista: não é qualquer pessoa que está autorizada a dizer o que deve ser a regra ética e principalmente como ela deve ser, mas sim uma instituição que tem o poder de estabelecer sanção sobre a prática correspondente; e não é qualquer pessoa que está autorizada a penalizar ou absolver a prática dos particulares, mas novamente a mesma instituição, a partir dos seus próprios aparelhos.





Finalmente, além de ser concebida no direito segundo esses quatro critérios, a concepção jurídica da ética jurídica exige um silêncio com relação a outras formas de análise ética (ou de análise da ética, se se preferir). Por exemplo, diante da praticidade dessa fórmula institucional da análise da prática do profissional, considera-se que uma análise individual é completamente irrelevante: assim, já que a prática profissional do advogado sempre é penalizável apenas de regras positivas ou de avaliações institucionais, de nada adianta buscar orientar a ação profissional simplesmente a partir da própria consciência moral, porque se o que a vontade individual de um dado profissional quiser for contrária ao que seria permissível segundo as regras da ética profissional, resta orientar a ação apenas pela ética profissional (não adianta, por exemplo, o advogado querer não cobrar nada pela assistência ao seu cliente, porque as instituições de ética profissional — dos códigos às comissões da corporação — exige que ele o faça; inclusive, segundo as tabelas de valores e custas oficiais). Mais do que isso: em muitos casos, as regras dos códigos de ética são simplesmente vazias de conteúdo. O que significa dizer que o advogado deve "aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial"? Sabemos o que isso significa (o advogado deve avisar seu cliente do prejuízo que virá da insistência numa causa de defesa improvável ou sem garantias), mas qual é a medida para determinar essa viabilidade processual ou esse procedimento pessoal — a defesa de um direito tido como devido por necessidade do cliente ou a defesa de um direito que é possível pleitear independente dessa necessidade? Se for só o segundo caso, como compatibilizar essa prática com outro preceito (também vazio, porque pode ser interpretado de qualquer maneira) do mesmo código, segundo o qual o advogado deve "contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis"? Distintamente da concepção jurídica, há uma concepção filosófica da ética jurídica. E essa concepção dada pela filosofia entrará, não por acaso, em oposição à concepção apresentada pelo direito. Para a filosofia, a ética jurídica é o estudo ético da prática jurídica; em outras palavras, é nada mais que a ética tomando o direito como o seu objeto de análise. Se assim é, o que é, antes de mais nada, a ética para a filosofia? É importante esclarecer isso porque, sem saber o que a ética é na sua acepção geral, não é possível oferecer uma concepção mais específica (como a de ética jurídica); e, sabendo o que é a ética para a filosofia, e conseqüentemente o que é a ética jurídica também para a filosofia, será possível saber por que, para a filosofia, a ética jurídica concebida no direito enquanto ética profissional não é ética, e quais as conseqüências — graves — de se insistir na concepção da ética profissional como sendo uma orientação válida pelo simples fato de ser institucional. Antecipando todavia a análise mesmo antes de definir com precisão a ética (cada um poderá depois voltar e conferir os termos da análise), os motivos pelos quais essa ética profissional não pode ser tida como ética, segundo a filosofia, são os seguintes:





1) A ética não vale só para a atividade profissional. A ética é uma análise, conhecimento, orientação de qualquer tipo de ação, inclusive a profissional. Mas não há nenhum privilégio da ação profissional em outras formas de ação, a ponto de se considerar que vale restringir essa análise da ação exclusivamente à prática profissional (como se o resto da ação individual não fosse relevante para ele mesmo e para os demais). Assim, por um lado, conceber a ética como ética profissional pode significar, como no caso da ética advocatícia, deixar de lado a análise da relevância política, histórica e social do advogado.





2) A ética não é um conjunto de regras. A moral pode ser um conjunto de regras, princípios e valores morais, mas a ética (algo muito diferente da moral; às vezes até em oposição necessariamente à moral) não é de forma alguma um conjunto de regras. A orientação que a ética dá à ação nada mais é do que uma orientação racional, um princípio racional, uma fundamentação racional da ação, e de forma alguma uma imposição à qual corresponda alguma forma de sanção. De modo que cada um de nos tem todo "direito" de não agir eticamente. Isso só é uma irracionalidade, mas enquanto é só uma irracionalidade (e não um crime, por exemplo) nenhum efeito acarreta em termos de sanção; traz, apenas, um enfraquecimento do próprio agente.





3) A orientação ética não tem valor universal, e sim individual. Isso é fundamental, porque decorre da própria origem da ética. Como a ética é orientação da ação de um indivíduo a partir dos elementos apresentados pela natureza desse indivíduo, qualquer orientação ética vale em função de uma dada necessidade individual e não pode ser transplantada para outro indivíduo: ao contrário, se é o caso de empreender uma análise ética do que é válido para outro indivíduo, será necessário analisar a natureza e as peculiaridades deste. Cada fundamento ético é individualíssimo e não pode ser transferido artificialmente a outra pessoa, sem considerar a natureza individual dessa outra. Se o que é ético a alguém é imposto para outra pessoa sem se considerar a natureza desta outra pessoa, de antemão já não há por que considerar validade ética para a mesma coisa. Um princípio ético só pode ser tido como adequado a alguém porque parte de algo nesse mesmo indivíduo, e não porque vem de fora dele. Assim como a ação é única, o fundamento para a ação deve ser único e individual. Quando várias pessoas agem coletivamente, não se trata de um conjunto de ações individuais ao mesmo tempo, mas sim de uma única ação de um indivíduo coletivo, porque esse indivíduo coletivo (esse grupo) tem uma mesma necessidade e realiza de fato uma mesma ação. Tirando essa hipótese (na qual um grupo age como se fosse um indivíduo, e por uma necessidade realmente comum), nunca uma ação coletiva é ética. E, finalmente, qualquer orientação ética, para um único indivíduo ou para um indivíduo coletivo, só lhe é válida desde que se conheça a sua natureza e necessidade própria. Quando se codifica um conjunto de regras e estas são impostas a uma categoria profissional, elabora-se um modelo de profissional, mas não se diz nada acerca da natureza e da necessidade real dos advogados ou de cada advogado, de maneira que mesmo quando acerta nos seus preceitos, um código de ética praticamente o faz mais por acaso do que por concluir algo a respeito do que é mesmo o mais adequado para determinada categoria ou determinado profissional em determinado tempo ou lugar.





4) Ética não é coisa de especialista. A análise ética não é prerrogativa de nenhuma autoridade porque é uma análise racional e todo ser humano é racional. A idéia de comissão de ética ou de tribunal de ética como uma instância privilegiada para avaliar que conduta é aceitável ou não vem exatamente da idéia de que se deve tirar do particular sua autonomia racional para manifestar de forma igualitária a sua posição a respeito do destino da coisa pública.





O que é, pois, a ética para a filosofia? Em primeiro lugar, a concepção que a filosofia dá de ética é a única verdadeira, porque a ética é parte da filosofia, tanto na sua origem, como na sua prática racional. Isso significará que qualquer concepção de ética que se pretenda válida deverá ser filosófica ou ter fundamentação filosófica; a falta de uma tal fundamentação significará, necessariamente, falta de sentido, ou presença de uma contradição que invalida a concepção (é o que se verá, por exemplo, na concepção de "ética profissional", e também na concepção de "código de ética", em função da maneira como são na prática concebidos). Para se saber o que é a ética, é preciso observar antes de mais nada a sua origem. A ética se origina como uma parte da filosofia, e como a filosofia tem uma origem grega. Desde a Grécia, a ética é entendida como orientação racional da ação humana a partir da necessidade do ser humano. Ainda hoje é assim, mas com acréscimos conceituais muito relevantes (e será graças a eles que eu estarei apresentando a ética como consciência racional da necessidade da ação); essa concepção, como a concepção de qualquer outro conceito da filosofia, teve muitas reformulações desde então, mas a sua origem conceitual é exatamente essa e qualquer reformulação ou formulação posterior não tem como se separar dela, ainda que tente. O que ela significa, porém? Apenas a definição nada diz, ainda. Que significa orientar racionalmente a ação humana a partir da necessidade do ser humano?





Assim como a philosophía é, no pensamento grego, um conhecimento racional de qualquer coisa, ou seja, um conhecimento do fundamento de qualquer coisa, a ethika é uma forma de conhecimento racional — no caso, conhecimento racional do ethos de qualquer coisa, mas principalmente do ethos humano. O que é o ethos? Essa palavra tem, em grego, duas formas de pronúncia — éthos e êthos — e dependendo da forma o significado muda. Isso é relevante aqui porque a ethika é conhecimento racional especificamente de uma dessas duas formas, o êthos. Em primeiro lugar, a forma que não deu origem à ética: éthos. O éthos é o conjunto de costumes, valores comuns, práticas comuns, ideais ou valores universais ou de um grupo; ou seja, é o que conhecemos hoje por moral. A ética concebida rigorosamente pelos gregos não é essa, de maneira que não é por causa deles que às vezes temos, hoje, uma confusão entre ética e moral, pensando que são a mesma coisa. Essa confusão, como mostrarei mais adiante, será motivada pelos medievais, para quem ética e moral serão, pra valer, a mesma coisa. Para os gregos, a ética é baseada não no conhecimento do éthos, mas sim do êthos. Do que se trata, pois? Êthos é o caráter individual de um ser, a natureza individual de um ser, a necessidade individual ou necessidade natural de um ser, potência de um ser, aquilo sem o que um ser deixa de ser o que é, aquilo que constitui necessariamente um ser, aquilo que não pode deixar de estar num ser. A ethika é, portanto, estudo do caráter individual, natureza individual, necessidade natural ou individual, de algo. Mas ela é mais do que isso, quando se aplica ao universo humano: se é verdade que todas as coisas na natureza têm uma natureza própria, uma individualidade própria, e se é verdade que o mesmo vale para o ser humano (um ser natural, também), há certas peculiaridades no ser humano que não haveria nos outros seres. Para encurtar uma longa história que busca distinguir o ser humano do resto da natureza, o ser humano é o único ser dotado de vontade, de capacidade para escolher a própria ação, e portanto de liberdade. Como funciona isso? Numa formulação que vem do pensamento grego, todos os seres naturais têm no seu êthos uma tendência para o movimento (é o que define a vida de cada ser: viver é estar em movimento; a morte é ausência de movimento, porque é inércia do corpo, ainda que talvez não seja inércia da alma, se esta é mesmo separada do corpo). Esse movimento (kínesis) é sempre causado por um princípio ou impulso (órexis) contido na natureza do próprio ser vivo; se é produzido por um outro ser (que se choca com ele, por exemplo), a maneira como ele responde a esse choque também depende da sua própria natureza ou constituição natural; em suma, todo ser tem uma tendência ao movimento, determinada pela sua natureza (ou pelo seu êthos).





O que há de peculiar no êthos humano, que vai diferenciá-lo dos outros seres naturais? O ser humano, como todo ser, tem uma natureza voltada ao movimento. Mas ele é o único ser que pode escolher o seu próprio movimento, ou seja, é o único ser que pode agir. Ou seja existe, no ser humano, uma forma específica de movimento, a ação (práxis), que, como todo movimento de um ser vivo, é causada por um impulso interior (órexis). Como é esse impulso no ser humano? Como a alma humana tem uma parte passional (ou seja, afetiva, sentimental, física) e uma outra, racional (ou seja, especulativa, analítica, intelectiva, moral), há duas formas de a alma humana impulsionar a ação humana: respectivamente, a ação humana pode ser causada pela epitymía (desejo, ou impulso físico, necessidade física) ou pela boylesis (vontade, ou impulso racional, escolha racional). A epitymía, por ser necessidade física do ser, existe na alma de todos os seres vivos; a boylesis é exclusividade humana, porque é um impulso racional e só o ser humano é racional. Essa diferença é muito importante, porque definitivamente desejo e vontade não a mesma coisa, não são um mesmo querer: o desejo é um querer motivado por uma necessidade ou inclinação física, ao passo que a vontade é um querer determinado pela consciência e, por isso, escolhido dentre várias inclinações ou ações que o agente poderia escolher. Isso significa que o ser humano, quando age, age motivado ou pelo desejo, ou pela vontade, ou por um concurso de ambos? Na verdade, em toda ação humana há uma certa presença tanto do desejo quanto da vontade. Como somos seres passionais, o que queremos sempre tem influência dos nossos sentimentos, afetos, paixões, impulsos físicos; mas, como também somos racionais, podemos analisar racionalmente isso que desejamos. Assim, se por algum afeto (isto é, por uma necessidade física do nosso corpo) somos impulsionados a determinada ação, precisamos da vontade para escolher realizar ou não essa ação que sentimos inclinação a realizar. Se escolhemos determinada ação para realizar, só nos colocamos racionalmente a necessidade de escolher uma ação porque sentíramos uma necessidade de agir, e só somos levados a escolher uma ação dentre várias possíveis porque sentimos que ela é a melhor, já que sabemos por que ela é melhor ou mais útil do que as outras. Em suma, há sempre uma ida da paixão à vontade nesse impulso para a ação.





Qual, então, é a melhor ação: a ação motivada pela epitymía ou a ação motivada pela boylesis? A questão, na verdade, não pode ser essa, e sim a seguinte: como devem interagir epitymía e boylesis na causa das nossas ações? Traduzindo: que relação deve haver entre a nossa necessidade física e os nossos princípios morais, na hora de agir? Quem deve estar subordinado a quem? O grego mostrará, já, uma preferência pela vontade, de modo que as paixões e os desejos devem ser dominados pela razão e pela consciência. Assim, para o grego (de uma forma geral; os autores gregos tinham muitas diferenças teóricas entre si), os humanos desejam certas coisas, mas só devem ir atrás daquilo que a consciência racional permite. Sorte do ser humano, que para o grego é dotado de uma vontade racional que o permite conhecer o que lhe é adequado ou não. Graças a essa capacidade natural para o conhecimento racional das coisas (inclusive, portanto, dos seus próprios desejos e necessidades), o ser humano está preparado para escolher sozinho as suas próprias ações, e dessa forma governar a si mesmo. Para usar um outro termo grego, o ser humano é naturalmente preparado para a autonomía, isto é, para a determinação de si, o governo de si: por sua própria natureza individual, cada indivíduo tem capacidade para governar sozinho suas próprias ações e seu próprio pensamento; só não poder para causar os próprios afetos (o ser humano é um joguete dos seus próprios afetos), ainda que tenha poder para tentar lidar racionalmente com eles.





Por isso, para o grego o que importa não é realizar ações só motivadas pelo desejo, ou ações só motivadas pela vontade, mas sim realizar ações autônomas, isto é, ações cujo impulso esteja na natureza do próprio agente, cuja causa esteja na natureza do próprio indivíduo autor da ação, que sejam escolhidas por ele mesmo e não por outro, que o domina ou o influencia. A liberdade, para o grego, consiste exatamente nisso: na capacidade de autonomia, na capacidade de realizar ações segundo a vontade do próprio agente, na capacidade de escolher uma ação dentre várias possíveis e realizá-la porque se quer e porque se pode realizá-la, e finalmente na capacidade de estabelecer finalidades para si próprio e conceber as próprias ações como meios para se atingir tais finalidades. De maneira que, se o grego não afirma que se deve ignorar os desejos, afirma que é preciso privilegiar a vontade, pois sem agir por vontade não se é livre. Se é esta a natureza humana, para que serve a ética, enfim, na visão grega? Em linhas muito gerais: a ética é uma forma de conhecimento das necessidades e dos desejos que um indivíduo tem, ao mesmo tempo que é uma orientação racional da ação (através da vontade) a partir do conhecimento racional dessas necessidades. A ação, portanto, sempre é ação individual porque tem uma causa que é sempre individual. Quando uma pessoa escolhe realizar determinada ação, ela está tomando a iniciativa de realizar uma ação (dentre várias possíveis) porque isso, por algum motivo, é necessário — seja por um dever moral, seja por uma necessidade física, seja por uma imposição jurídica, etc. Em qualquer caso, sempre se escolhe realizar uma determinada ação porque se julga que é necessário fazê-lo; se essa necessidade está dentro do próprio agente (seus desejos, suas convicções, etc.), então ele é causa da sua ação, e se é ele mesmo que determina a ação que está realizando, ele é autônomo e, assim, livre.





Se assim é, para ser livre é preciso ser autônomo, para ser autônomo é preciso escolher as próprias ações, para escolher as próprias ações é preciso conhecer a própria natureza. Portanto, não é possível sem livre sem conhecer a própria natureza, ou não é possível realizar uma ação livre sem que esta seja a realização de algo que, em última instância, é uma necessidade, mesmo tendo dependido, no meio de todo esse percurso, da atuação da vontade humana (que aliás está aí mesmo a serviço das necessidades e finalidades do agente). Isso não é um mero detalhe, porque a chave da ética grega, essa ética que privilegia a vontade, está aí nesse profundo respeito à necessidade: sem conhecer o que é necessário, é impossível fazer uma escolha. O que é a escolha, pois? É uma consideração de qual das várias ações possíveis deve ser escolhida, por ser mais útil à realização do que é uma necessidade, um dever, etc. A liberdade na ética, assim, é sempre uma consideração das necessidades do agente; o que ocorre ao grego é que, diante da necessidade, o agente tem sempre várias ações possíveis dentre as quais escolher uma para realizar; umas são mais adequadas e outras são menos adequadas segundo tais necessidades, e o ser humano é livre não porque pode realizar uma única ação adequada segundo o que é necessário, mas sim porque pode escolher qual ação considera a mais adequada segundo o que considera necessário para si mesmo. O que pede a ética grega, pois? Pede que cada indivíduo aja segundo a sua própria vontade livre, tendo escolhido realizar uma ação que considera a mais adequada diante daquilo que considera suas necessidades e que elege como suas finalidades na vida. Se assim é, como se pode justificar eticamente a ação, numa visão compatível com os gregos? Aí, a ação eticamente fundamentada ou justificável é aquela que se apresenta para o próprio agente como um meio para se atingir uma finalidade que ele mesmo escolheu para si. Na ética grega, o que leva um indivíduo a agir é a consciência de que precisa chegar a algum lugar ou que precisa produzir alguma coisa e, para que isso aconteça, é preciso realizar um determinado percurso ou fazer determinada coisa, dentre várias que se apresentam como possíveis. Ou seja, qual é o fundamento de uma ação, segundo a ética grega? É a sua finalidade. A finalidade de um indivíduo é a coisa ou situação ele quer causar com a sua ação. Por que ele a quer causar? Porque a considera necessária, e ela ainda não foi realizada. Por que ele escolhe agir para realizá-la? Porque ela não se realiza sozinha, e porque ele a elegeu com uma finalidade. Assim, nos gregos, conhecer uma coisa como necessária não é o suficiente para ser livre; é necessário conceber essa coisa como uma finalidade a ser atingida. Ser livre, justamente, é saber o que é necessário mas ainda não está consumado, e agir para consumá-lo segundo orientação principalmente da vontade.





Quando chegam os medievais, há de um lado uma preservação do quadro conceitual dos gregos, mas de outro lado há algumas alterações conceituais que produzem uma concepção completamente diferente da liberdade. Os gregos haviam estabelecido o seguinte quadro: epitymía (necessidade física, apetite passional, que indica o que sente um ser) boylesis (faculdade de escolha, apetite racional; fundamental para a ação ser livre)

órexis (apetite, impulso para a ação, sendo que há o impulso passional e o impulso racional, mas é este último que deve preponderar)
práxis (ação, sendo que a ação é livre se é autônoma)
ethika (ética, conhecimento da natureza do ser, conhecimento das causas da ação de um indivíduo)
eleytería (liberdade, ou capacidade de agir sem constrangimentos externos, porque os limites para a ação são determinados pela autonomia do próprio agente — trocando em miúdos: o ser só é livre quando sua ação é resultado da sua livre escolha racional, pela qual ele sozinho determina quais são suas finalidades e o que vê como útil ou não à sua ação, graças à sua própria razão natural; assim, o homem só é livre enquanto é autônomo para escolher e realizar sua ação)





Os medievais, que em linhas gerais assumiam que a filosofia aristotélica era a filosofia por excelência, acolheram esse quadro conceitual (que no fundo tinha sido estabelecido pelo pensamento aristotélico), mas como empreendiam uma filosofia cristã (na qual cada indivíduo deve estar subordinado a Deus; portanto, não pode de maneira alguma ser autônomo), precisaram modificar a relação entre os apetites humanos. Assim, se para os gregos a ação é motivada por duas formas de apetite, para os medievais também, mas a partir de agora o homem deve seguir exclusivamente a vontade para agir. Os medievais fazem algo que os gregos nunca tinham feito com tal intensidade e que os renascentistas deverão desmontar depois: opõem radicalmente o desejo e a razão, como se o desejo significasse, simplesmente, irracionalidade. O desejo, as paixões, as necessidades físicas são vistos pelo pensamento religioso e teológico como fonte de perdição e degradamento do espírito, de maneira que as ações humanas só podem ser válidas desde que não causem tal perdição. Que ações podem ser essas? Somente aquelas que conduzem o indivíduo a um bom caminho, a um caminho de salvação da alma e do corpo. Assim, se o homem não pode seguir os desejos para agir e se deve, agora, ignorá-los quando escolher as suas ações, resta-lhe basear toda a sua conduta na sua vontade, e por tudo isso as ações humanas passam a ser vistas pelo pensamento cristão como ações cujo fundamento deve estar completamente no arbítrio e na vontade. Seria natural, pois, imaginar que os medievais simplesmente diriam que basta ao homem seguir a sua vontade, já que o ser humano é racional e a vontade é a própria faculdade da razão humana (as paixões e o desejo eram, por assim dizer, o seu lado animalesco e, na visão dos medievais, irracional). Mas não é isso que os medievais sugerem, porque, na sua concepção teológica, a concepção que eles têm da natureza humana é a pior possível: para a teologia, o ser humano é um ser imperfeito, cuja natureza é decaída e incompleta por sua própria culpa. Resumindo uma complicada tentativa teórica dos medievais em explicar a imperfeição humana, para a teologia medieval (que não por acaso ainda é base da teologia atual), o ser humano é uma criatura de Deus que, por ser criado, não tem tanta perfeição quanto Deus (se tivesse, seria Deus ou idêntico à Deus, o que absurdo), e para piorar faz mau uso da sua própria vontade, ou do seu livre arbítrio (o pecado só existe porque é inventado pelo ser humano). Essa natureza imperfeita por causa do próprio homem o impede de saber agir por si mesmo e mesmo de saber pensar sozinho. Assim, por exemplo, embora tenha capacidade para escolher o bem, ele teima em escolher o mal. Por tudo isso, o que Deus, na sua misericórdia que evita aniquilar de uma vez a espécie humana, acaba fazendo é impor ao homem a própria vontade divina, que é perfeita e não leva a erros nem a quedas. Ao homem, pois, o que resta, se está claro que não deve seguir os próprios desejos? Não é seguir a própria vontade, porque mesmo a vontade humana é imperfeita. Resta simplesmente seguir a vontade divina ou, de uma forma reformulada, a vontade das autoridades que o dominam. Assim, na visão medieval, a ética (ethica) continua sendo uma orientação racional da ação e da escolha da ação, mas mudou completamente o conceito de racionalidade, porque se considera agora que a razão humana é imperfeita, insuficiente, falha. O que fazer? O homem deve seguir a razão e a vontade divinas. Para isso, ele é dotado ainda da sua capacidade de escolha, concebida de uma forma muito peculiar pelos medievais, enquanto livre arbítrio. Que é o livre arbítrio? É uma capacidade natural do homem para escolher entre realizar o bem e entre realizar o mal. O único detalhe é que o homem não autoridade para determinar o que é o bem e o que é o mal, porque a escolha dessas qualidades já foi determinada por Deus ou pela moral — em suma, por algo exterior a ele. Mais do que isso, se a virtude e a piedade existem, o indivíduo não deve deixar de praticá-las, porque essa omissão também é pecaminosa. Assim, que liberdade resta ao homem? Na verdade, nenhuma, porque ele não tem autonomia nem para escolher que ação é boa ou não (a escolha já foi feita por Deus ou por uma autoridade), nem para escolher uma má ação (se ela é má, isto é, impiedosa, pagã, irreligiosa, ele necessariamente deve ser punido por escolhê-la), nem para deixar de realizar uma boa ação (porque a prática da virtude é imposta como sua obrigação).





Assim, o quadro medieval acerca da ética é o seguinte: epitymía vira cupiditas (desejo, necessidade física, apetite passional, só que agora completamente negativo, devendo ser negligenciado) boylesis vira voluntas (vontade, faculdade de escolha, apetite racional, o único impulso que pode ser positivo desde que enquanto bona voluntas, boa vontade, ou vontade humana de acordo com a vontade divina, vontade humana subjugada à vontade divina; essa boa vontade tem como tarefa guiar o que os medievais chamam de livre arbítrio, ou faculdade para escolher entre o bem e o mal)

órexis vira appetitio (apetite, impulso para a ação; só o apetite racional passa a dever ser considerado)
práxis vira actio (ação; sendo que a ação é livre somente se é conforme aos preceitos divinos)
ethika vira ethica (ética, conhecimento da natureza do ser, conhecimento das causas da ação de um indivíduo; e como o homem tem uma natureza imperfeita, justamente por isso não deve mais ser autônomo)
eleytería vira libertas (liberdade, ou capacidade para agir segundo o livre-arbítrio; trocando em miúdos: o ser só é livre se escolhe realizar uma ação cuja qualidade já foi determinada por Deus ou pela religião ou por uma autoridade, e jamais por ele: o homem aqui só é livre enquanto desiste de ser autônomo e aceita ser dependente da autoridade divina ou da autoridade moral)





O que há de mais trágico diante desse quadro medieval nem é essa concepção infeliz da imperfeição humana (porque a ciência e a filosofia já se libertaram há séculos dos preconceitos da teologia), mas antes o fato de uma tal concepção ser a principal fonte de todas as concepções vulgares da ética na atualidade. Embora a ética seja uma prática teórica de origem grega, a maior parte do vocabulário ético válido até nós hoje tem origem medieval, não apenas pela influência lingüística e institucional medieval, mas em grande parte em função das influências religiosas e teológicas (principalmente católicas) das instituições brasileiras. Mas isso é outra história. O que os medievais fazem, aí, é dar à ética (conhecimento do êthos, natureza individual do ser) um significado idêntico ao de moral (tradição do éthos, conjunto de costumes) — e é daí que virá a sempre recorrente confusão entre ética e moral, como se fossem uma e a mesma coisa. Na verdade, não haveria outra saída que não essa, para os cristãos e para os medievais, porque não apenas é necessário retirar do homem a sua autonomia (através do argumento da sua imperfeição e da necessidade da sua dependência em relação às suas autoridades), como é necessário justificar que os princípios para a conduta de cada indivíduo está em algo superior, exterior, mais forte ou soberano do que ele: a moral, por exemplo; a religião, como outro exemplo; e assim por diante. Tudo, desde que se retire da autonomia da cada indivíduo a sua capacidade de escolher realmente por si só o que deve fazer. O seu dever-fazer passa a ser determinado não por ele, mas a partir de agora é algo que vem de algum tipo de instituição. Em termos de ética e moral, entra aí, como uma instituição paralela à instituição da igreja e à instituição do direito, a oficialização dos costumes. A partir dos romanos principalmente, mas com toda força a partir da teologia medieval, os costumes passam a ser o grande instrumento elaborada para dar à dominação institucional a imagem de vontade pública ou de necessidade pública. O quadro grego e o quadro medieval da ética têm, portanto, coisas em comum (como a idéia de que a ação é um meio para se atingir uma finalidade), mas também coisas muito diferenciadas (como a existência ou não de autonomia no homem). Duas coisas, de qualquer modo, devem ficar muito claras aqui, diante desse histórico dos antigos e dos medievais:





1) Tanto a ética antiga quanto a ética medieval são éticas da finalidade. Embora haja uma grande consideração do conceito de necessidade (especialmente necessidade física) na ética dos antigos e dos medievais (mas principalmente na ética dos antigos), tanto nos antigos como nos medievais a ação é concebida como meio para se atingir uma finalidade e, por isso, a própria liberdade só s consuma quando se atingem as finalidades da ação. O grande conselho comum dado pela ética antiga e pela ética medieval é que o ser humano deve ir atrás da realização das suas verdadeiras finalidades na vida (para os gregos, as verdadeiras finalidades são aquelas determinadas de forma autônoma, de maneira que o instrumento para conhecer as finalidades humanas é a razão; para os medievais, são aqueles que só o Ser Perfeitíssimo tem capacidade para conhecer e que impõe a todos os homens, de maneira que o instrumento para conhecer as finalidades humanas é a fé). Tanto numa quanto noutra concepção, também, a ação humana é uma ação determinada, escolhida dentre várias possíveis. Sempre se escolhe uma ação porque se conhece uma necessidade a ser cumprida e se estabelece uma finalidade (normalmente, cumprir essa necessidade) a ser alcançada através da ação. Há, sempre, várias opções para se atingir um mesmo objetivo, mas a vontade humana, que é racional, opera justamente para indicar o melhor ou mais útil caminho. Seja como for, o que move para a escolha de uma ação dentre várias, e o que impulsiona a realização de uma ação que se escolheu, é a concepção de uma finalidade que se deseja atingir ou que deverá ser causada através dessa ação. De modo que agimos para atingir finalidades, e uma pessoa sem finalidades é uma pessoa que não sabe da sua necessidade de agir. Mas, fica a questão: por que é necessário conceber a idéia de finalidade (algo a ser atingido, desde que se aja) em vez de só ficar com a de necessidade (uma carência atual, que pede que se aja)? Há algum perigo em incluir o conceito de finalidade, como fundamento para se agir ou se escolher uma ação? Há. Os gregos e principalmente os medievais não à toa colocaram a vontade em relevo. É importante conceber que a ação é motivada mais pela vontade (uma idéia, um valor) do que pelo desejo (uma condição física) porque, sem isso, como explicar a existência do possível? Se eu escolho uma ação em vez de outra, é porque, primeiro, existe mais de uma opção: ou seja, mais de uma é possível de se escolher. Mas se mais de uma é possível de se escolher, e fisicamente só é possível realizar uma de cada vez, as outras são descartadas. De modo que, se é o caso de fazer uma escolha, que se escolha a melhor opção. Agora, a questão complicada: o que deve ser escolhido? Não importa a peculiaridade do agente: a ação que ele escolhe sempre é a que ele concebe como sendo a mais útil para a realização de algo. Agora, se cada indivíduo tem essa autonomia racional para considerar qual dentre as diversas opções que lhe aparecem é a mais útil para que se realize algo, quando ele tem poder para determinar o que deve ou não ser realizado — se o homem tem finalidades, quando é que ele tem ou não poder para determinar tais finalidades para si mesmo? e quando tem necessidades, quando ele tem ou não poder para atendê-las ou para negligenciá-las? Minha resposta será a seguinte: se o indivíduo tem necessidades (se ele precisa realizar algo porque sua natureza pede isso dele, e ele se enfraquece se não a realiza), então ele nunca tem poder para negligenciá-las, ao mesmo tempo que só pode ser livre enquanto cuida de atender a tais necessidades. Quanto às finalidades, elas nada mais devem ser do que a concepção das necessidades atuais enquanto realidades que devem ser consumadas; nenhuma finalidade não necessária pode ser válida enquanto finalidade — porque não estará na natureza do próprio agente. Graças a isso, considero que essa ética da finalidade concebida por antigos e principalmente por medievais (onde chegamos ao ápice do pior: a ausência de autonomia para a razão humana) é inadequada, e que haverá todos os motivos para preferir em seu lugar uma ética que começa a ser desenvolvida no Renascimento — que chamo de ética da necessidade, ou ética do necessário — e cuja elaboração cristalina é o pensamento de Espinosa, no século 17.





2) Tanto a ética antiga quanto a ética medieval são insuficientes para a elaboração de uma ética hoje. Embora seja possível elaborar um pensamento ético, hoje, com moldes antigos ou medievais (muitos autores fazem isso, principalmente aqueles que têm uma formação teológica), e embora seja perfeitamente possível explicar muitas questões referentes à ética com base em tais formulações pré-modernas, uma tal ética não tem condições de dar conta da ação humana, tanto na vida individual quanto na vida política, e isto basicamente por dois motivos: a) os conceitos pré-modernos de liberdade apenas afirmam a liberdade como ausência de constrangimento exterior, capacidade de causar a própria ação, e não especificam que essa liberdade só é realizável dentro da vida política (que é o que faz o pensamento moderno a partir de Maquiavel, com sua nova concepção do Estado, da política e da liberdade enquanto liberdade política); e b) as concepções pré-modernas de ética não concebem uma separação radical entre moral particular e moral coletiva, o que será feito a partir de Montaigne. Na modernidade e na contemporaneidade, embora haja aqui e ali uma certa relação entre ação ética (isto é, ação livre) e consciência moral, é um absurdo cogitar que a moral coletiva ou de um grupo tem autoridade para determinar o que é necessário para um indivíduo; como não tem essa autoridade, não poderá atribuir-lhe finalidades com as quais não concorda. E, principalmente, a partir de Maquiavel fica claro que a liberdade não é uma questão de autonomia só racional, mas sim de autonomia política, e que essa autonomia política só se conquista enquanto a moral é deixada de fora e a ética é o fundamento de toda ação, seja individual, seja coletiva.





E disso, continuarei falando na segunda parte, quando falarei não só dessa diferenciação entre ética da finalidade e ética da necessidade, como considerarei as inovações do pensamento renascentista para o discurso da ética (produzindo entre outras coisas a idéia de democracia) e, novamente, colocarei em que condições cabe trabalhar, hoje, essa tal ética jurídica.





II





A concepção clássica da liberdade — para a tradição grega, a tradição romana, a tradição cristã — é em geral a idéia de uma ausência de qualquer tipo de constrangimento. Um ser é livre quando não tem impedimentos à sua ação. Evidentemente, a ética, que é um estudo da ação humana, se preocuparia sempre em analisar os detalhes dessa idéia, e o fez. Assim, para uma concepção específica da liberdade humana, a vontade sempre apareceu como um elemento fundamental: como os homens são os únicos seres dotados de vontade (esse impulso racional para a ação), são os únicos que podem escolher as próprias ações e o próprio destino. Diante dessa idéia, a tradição sempre entendeu a liberdade como resultado do bom uso da vontade: nos gregos, um indivíduo é livre porque age porque escolhe por si mesmo sua ação; nos medievais, um indivíduo é livre porque age porque escolhe segundo a moral ou a religião sua ação. Tanto num caso quanto no outro, o que os autores clássicos entendem como uma ação livre é uma ação dirigida pela vontade para a realização de um fim e, nisso tudo, sempre benéfica para o agente. Ou seja: não há racionalidade nenhuma em escolher o que é prejudicial, nem em razão da necessidade (porque nenhum ser tem necessidade natural de prejudicar a si mesmo, de enfraquecer a si mesmo com suas ações), nem em razão da vontade (porque não há razão nenhuma para se escolher, dentre várias opções possíveis, a pior, ou a menos satisfatória). Ao contrário, o que a natureza humana pede ao indivíduo é a busca do que é o melhor, do que o beneficia sempre. Na visão dos gregos, para saber escolher a mais benéfica dentre as várias opções, o indivíduo precisa conhecer o que está na sua própria natureza individual, aquilo de que ele precisa, aquilo que ele deseja e aquilo que ele é capaz de buscar; o mesmo valerá para um indivíduo coletivo. Na visão dos medievais, para saber escolher essa opção mais benéfica, o indivíduo precisa reconhecer a imperfeição de sua natureza e a conseqüente necessidade de sujeitar-se ao domínio de uma autoridade, e nesse mesmo movimento deve aceitar os preceitos dessa autoridade como sendo os ditames válidos para a sua própria natureza: assim, se reconheço que existe uma vontade divina acima da minha vontade humana individual, e que esta minha vontade individual não pode se sobrepor nem se opor a essa vontade divina, de nada adianta tentar escolher por mim mesmo as minhas ações; já que eu me concebo um ser imperfeito e dependente da vontade externa, condeno-me à impotência diante dela, e passo a imaginar que a minha própria preservação depende dessa entrega ao divino.





Não importa a concepção: para a ética, a ação boa, a ação positiva, a ação livre, é sempre uma ação que preserva o próprio agente, isto é, que o fortalece e o beneficia; ao contrário, a ação má, a ação negativa, a passividade ou servidão, é sempre uma ação que enfraquece, prejudica, paralisa, mata o agente. As éticas, assim, são normalmente voltadas à definição das ações que devemos realizar enquanto indivíduos. Em todas elas, serão defendidas as ações positivas como essas ações que devem ser realizadas por cada indivíduo; e, como a questão é delicada, o que diferenciará cada ética das demais será a estipulação dos critérios para conceber uma tal liberdade ideal, essa capacidade de ação, ou estado de ação, que sempre deve ser almejado pelo ser humano (seja porque é uma necessidade da sua natureza, seja porque deve ser uma finalidade para a sua vontade).





Gregos, romanos e medievais concebem que o indivíduo deve buscar a realização de fins que lhe sejam benéficos. Mas quem determina que fins são esses? Em linhas muito gerais: nos gregos, é o próprio agente (de modo que o agente deve ser maximamente autônomo); nos medievais, é a autoridade sobre o agente (de modo que o agente tem uma postura mais passiva do que ativa). Por que essa diferença? Basicamente, por causa de uma diferença, já mencionada aqui, na concepção da natureza humana: para os gregos, uma natureza harmônica; para os medievais, uma natureza decaída e imperfeita. Para os gregos: como cada indivíduo tem uma natureza perfeita e bem proporcionada, cada um tem capacidade racional de conhecer a sua própria natureza e as suas próprias necessidades, e a partir delas estabelecer fins para a sua própria ação; ou seja: o que cada indivíduo sente ou deseja é imprescindível para se construir, em seguida, a vontade; na vida coletiva, diante do embate ou da participação das vontades dos outros indivíduos, cada pessoa tem capacidade racional para compreender a necessidade de uma ação coletiva, que realize fins desse grupo e não de particulares (e é nisso que se baseia a vida política e pacífica). Nos medievais: como o ser humano concebe agora a si mesmo como um ser imperfeito e impotente diante da divindade e da autoridade, necessita agora de uma vontade exterior e superior à dele próprio que lhe diga o que deve fazer e mesmo qual é a sua necessidade; ou seja, o que cada indivíduo sente ou deseja é, agora, irrelevante (por razões óbvias: se a sociedade religiosa aceita a tolerância e a autonomia, ela não pode interferir no poder político). Em ambos os casos (gregos e medievais) nós temos a idéia de que a ação é sempre concebida para realizar fins, mas nos gregos cada indivíduo determina os seus próprios fins, ao passo que nos medievais é a autoridade sobre um indivíduo que determina os fins deste indivíduo.





Quando a ciência política, a filosofia política moderna, a ética moderna são fundadas no Renascimento (em especial séculos 15 e 16), começa finalmente, com um atraso impressionante, um processo de instauração teórica da política e do direito enquanto prática da liberdade — ou seja: a liberdade passa a ser concebida fundamentalmente como liberdade política, ou como liberdade na vida política. Pode-se dizer que essa concepção da liberdade não existia até então, primeiro, primeiro, porque quando se falava antes de liberdade e de ação livre, não necessariamente se concebia a vida coletiva: toda a discussão sobre o que está ou não em nosso poder, o que deve ou não ser realizado segundo a nossa necessidade ou segundo a nossa vontade, todas essas questões preenchiam mais a discussão a respeito da moral e da justiça do que uma discussão a respeito da organização da sociedade, das leis e do Estado. Toda a ética grega havia se desenvolvido separadamente do pensamento político (ainda que tenham coisas em comum: na ética, o indivíduo busca os melhores fins para si; na política, a cidade busca os melhores fins para a comunidade política), e a liberdade era um estado de felicidade individual causado pela capacidade de dirigir o próprio destino; portanto, algo mais ligado à vida ética de cada um do que à elaboração da vida coletiva. Nos romanos, nós temos, na ética, uma mera retomada do que os gregos haviam exposto; mas em termos de política, temos principalmente as instituições do direito romano — que radicalizam a separação prática entre pensamento ético e pensamento político. Nos medievais, com a instauração do pensamento enquanto principalmente um pensamento cristão, há curiosamente uma tentativa de fusão entre pensamento ético e pensamento político, mas estabelecido da pior forma, porque sob o crivo da teologia: tanto a vida de cada indivíduo quanto a vida da cidade devem se subordinar à Igreja; de maneira que pensamento ético e pensamento político não andariam juntos por verem entre si características originais comuns, mas antes porque ambas estão a serviço da teologia.





É o Renascimento que acaba com isso. Aí, nesse momento histórico em que o Estado (organização soberana e legítima de uma comunidade política) está sendo inventado enquanto forma política, percebe-se (com Maquiavel) que a intromissão da religião e da moral na política é um problema e, também (com Montaigne), que a intromissão da moral coletiva na moral individual também é um problema. Percebe-se, a partir daí, a necessidade de reconstrução de uma idéia fundada pelos gregos e que se perderia nas trevas da teologia: a autonomia, tanto moral como política, tanto individual quanto coletiva, e acima de tudo uma autonomia da vontade.





Quando os gregos concebem que a ação deve ser orientada para fins e que o agente usa sua própria vontade para escolher que opção de ação ou de vida é a melhor, etc., definiu um princípio muito preciso da ética: de que a necessidade do agente deve ser respeitada sempre nesse momento da escolha. Se o agente escolhe uma ação que cumpre melhor a realização do fim que deseja, o resultado será positivo; se escolhe uma pior, será negativo, e assim por diante. Mas ele precisa ser autônomo para realizar essa escolha, porque é ele quem conhece o que deseja. O mesmo se dá no caso da cidade: se ela quer ser uma cidade livre ou uma cidade justa, deve seguir leis que ela mesma coloca para si; cada cidade deve criar as suas próprias leis porque cada cidade conhece os seus próprios fins públicos, coletivos. Por isso, um indivíduo não deve escolher por outro as ações desse outro, e uma cidade não deve estabelecer para outra as leis dessa outra (em ambos os casos, seria uma afronta à necessidade do outro). Os gregos, também, ao criarem a política, definiram que o poder político nunca pode ser despótico, ou seja, nunca pode ser voltado para fins particulares; ao contrário, deve ser sempre voltado para fins públicos. Só as ações particulares de indivíduos particulares podem ser voltadas para fins particulares, porque só dependem de cada um e em nada envolvem interesses e participação de outras pessoas. Mas a vida política, a vida da cidade (e que depois será a vida do Estado), ao envolver a vida e os interesses de todas as pessoas, só pode ser racional na medida em que segue as finalidades de todas essas pessoas em conjunto, unidas como se fossem um só indivíduo. Esse indivíduo coletivo, a cidade, pode ter qualquer forma (pode ser uma monarquia, pode ser uma oligarquia, etc.), mas não pode de jeito algum ser um despotismo — porque o despotismo, esse governo da coisa pública voltado para a realização de fins particulares, é a própria falta de política. Qual a explicação para essa concepção dos gregos? Uma concepção ética da política, segundo a qual a prática política é também uma forma de ação, só que uma ação coletiva. E, se é uma ação humana e se é uma ação coletiva, também ela tem uma natureza e necessidade próprias, que devem ser conhecidas e respeitadas para que a própria ação seja bem orientada. Em outras palavras: a vida política só funciona quando é operada segundo finalidades públicas, porque a natureza do poder político é ser impulsionado por uma vontade coletiva; sempre que a ação política desrespeita essa natureza e necessidade pública, ela deixa de ser política e se transforma em violência.





Os teólogos medievais nem quiseram saber. Como o propósito era simplesmente transformar toda a humanidade em cristandade, a única maneira de convencer cada indivíduo de que essa necessidade de autonomia (que permitiria, por exemplo, escolher não ser cristão, escolher não ser cidadão etc) deveria ser deixada de lado foi fazê-lo à força. Assim, enquanto o poder político, na Europa, foi dominado pelas instituições eclesiásticas, o pensamento político praticamente foi aniquilado, e liberdade passou a ser assunto dos doutores da Igreja. Não à toa, a vida política nas cidades européias por todo o período medieval foi uma vida de tensão constante para todas as pessoas: o direito era, na prática, a vontade da autoridade, nunca a necessidade do próprio súdito. Não poderia ter havido inversão mais radical do que os gregos tinham identificado como sendo a política; e não haveria outra coisa a combater com mais ênfase quando a política voltasse a ser vista com um olhar racional.





Esse olhar racional chegou com os autores do Renascimento; são vários, mas deverei me concentrar em três: Niccolò Machiavelli (Maquiavel), Michel Eyquem de Montaigne e Étienne de la Boétie. Maquiavel é responsável pelo estabelecimento da filosofia política moderna, na forma também de uma ciência política: com ele, fazer filosofia política significa analisar a prática política tal como ela é, e a partir daí, também, dizer como deve ser a prática política. O resultado de tais análises, como bem se sabe, está em textos como O príncipe e os Discursos sobre a primeira Década de Título Lívio. Aí, Maquiavel revoluciona por completo o pensamento político não apenas em razão do método pelo qual empreende sua análise da política (por observação empírica da política tal como ela é de fato praticada), como também em razão das observações surpreendentes que faz sobre a política do seu tempo e de qualquer tempo. A princípio, Maquiavel estaria cumprindo a mesma tarefa de outros escritores políticos: dizer quais são as formas de governo existentes e, diante do quadro constatado, definir qual forma de governo é a preferível em qualquer sociedade, ou numa sociedade determinada. Os autores clássicos operavam da seguinte maneira: tendo concebido que a sociedade humana tem determinadas finalidades (o estabelecimento de um poder duradouro, a constituição de um poder baseado em leis, a prática da justiça, etc.), julgavam que haveria uma determinada forma de governo que melhor correspondesse a tais finalidades e a elegiam como a preferível. Em geral, o pensamento grego concebia que a melhor forma de governo era a aristocracia, e o pensamento medieval concebia que era a monarquia; em ambos, a democracia era considerada uma péssima forma de governo, e às vezes era simplesmente identificada à anarquia. As razões para essas preferências eram as seguintes: no caso dos gregos, considerava-se que nem todos os seres humanos poderiam ser cidadãos (estavam de fora, por exemplo, escravos, crianças, mulheres, idosos, estrangeiros, etc.), mas dentre os cidadãos, todos poderiam ter direitos iguais; isso não envolvia, porém, a viabilidade de todos governarem, porque quanto maior uma assembléia de governantes, mais difícil o consenso político; também não significava que o poder deveria necessariamente estar nas mãos de um monarca, porque haveria um grande isco de o poder político ser utilizado para fins particulares; disso, restava a aristocracia como uma forma em geral mais interessante e aplicável, pois nela haveria um número razoável de cidadãos, haveria discussão das questões públicas por um grupo de especialistas formados ou escolhidos especialmente para essa função e o poder não se concentraria excessivamente nas mãos de poucos nem de um só; quanto aos medievais, a preferência pela monarquia mais uma vez tem base na concepção teológica da política, segundo a qual não apenas o poder político exercido pelos homens na Terra está subordinado ao poder do monarca do universo e da natureza, como, principalmente, o poder é uma criação de Deus, que ao criá-lo deu-lhe uma forma monárquica: o poder que um governante tem hoje só é legítimo se descende do poder originalmente criado por Deus e dado a Moisés, ou Davi, e assim por diante.





O que levava os autores clássicos a, primeiro, estabelecer uma tipologia de formas de governo ("existem a monarquia, a tirania, a aristocracia, a oligarquia, etc.") era já a intenção de escolher uma dentre todas essas formas, tanto que a própria caracterização de cada forma de governo por vezes era caricaturada de tal maneira que seria mesmo absurdo considerá-la tão ou mais válida do que aquela defendida pelo autor clássico. Mais do que isso, os autores clássicos, embora reconhecessem que havia várias formas de governo sendo praticadas, consideravam que uma delas deveria ser válida para todas as formas de sociedade, e por isso buscavam eleger uma delas como sendo a melhor.





O que fará Maquiavel? Ele não se preocupa, como seus antecessores, em empreender uma tipologia e eleger uma melhor forma de governo, porque, ao observar a política, ele descobre que o que faz com que uma cidade ou um Estado sejam melhor organizados politicamente do que os demais não é a sua forma (se é um principado, se é uma república), mas o seu conteúdo (a força das suas instituições). Por isso, para Maquiavel, embora haja mesmo diferentes formas de governo (principados e repúblicas), um poder político pode ser estabelecido perfeitamente tanto num caso como no outro. Não será um modelo de Estado ou de forma de governo que garantirá o êxito histórico de um Estado empírico, mas sim o cumprimento daquilo que for necessidade da própria prática política, não importa qual seja a forma de governo. Por que Maquiavel considera que não é a forma de governo que garante o êxito ou o fracasso de um Estado empírico? Porque, ao observar a história, ele percebe que há repúblicas bem sucedidas e repúblicas mal sucedidas, principados bem sucedidos e principados mal sucedidos, e que a razão para esse destino do Estado está na história do funcionamento das suas próprias instituições.





Assim, o que aconselhará Maquiavel? Ele mostra que cada cidade e cada Estado são completamente singulares em si mesmo e que por isso não se deve buscar em outro Estado ou cidade um modelo para a sua constituição, muito bem. Agora, se assim é, como estabelecer a constituição de um Estado ou de uma cidade? Como organizar uma sociedade política? Não há modelo, as possibilidades são infinitas e estão à disposição da criatividade dos governantes e seus governados. Mas, independente dessa possibilidade de criação, há dois princípios da política, duas necessidades da política, que são válidas universalmente para todos os Estados e cidades (porque não são princípios de Estados ou cidades em particular, mas são princípios da própria prática política em geral) que devem sempre ser observados e que, se desrespeitados, causam a ruína da comunidade política: o Estado deve criar a liberdade política e protegê-la, e também deve preocupar-se em manter o próprio poder. Por quê? Primeiro, o Estado deve criar e preservar liberdades porque não há outra razão para o estabelecimento de um poder ou de um domínio. A única coisa que fundamenta a criação de alguma forma de poder (ou seja, domínio político, como haviam ensinado os gregos: a dominação não pode ser despótica, ela deve ser legitimada em finalidades públicas) é o propósito de organização de uma comunidade por meio de forças e instituições que só existem quando essa comunidade está organizada: ou seja, sem a existência da sociedade política, não existem direitos, porque não há a quem reclamá-los e não há como protegê-los; é preciso criar o Estado, e é preciso criar o direito positivo, para publicar o que é direito e liberdade em tal tempo e lugar, para tais e quais pessoas. Se várias pessoas vivem fora de um domínio político, se sua vida comum não tem nenhuma relação com alguma forma de poder, elas não têm liberdade nenhuma além da sua liberdade natural (sua capacidade física para agir), a qual é insuficiente para que cada um deles atinja seus próprios fins. O que Maquiavel está afirmando, pois, é que a natureza humana, em sociedade, exige o estabelecimento de uma convivência política, sob determinado poder; e que esse poder tem sentido enquanto é criador dessa liberdade que foi buscada quando se criou o poder. O que sustenta determinado poder, o que sustenta determinado domínio ou governo, é não uma força despótica, mas a concepção de uma determinada forma de liberdade que se concebe ser concedida às pessoas pelo atual governo ou domínio, através das suas instituições, seus aparelhos, suas leis. De maneira que, assim como a liberdade verdadeira é só a liberdade política e não existe sem a existência do Estado, o Estado também perde legitimidade se não mais se preocupar em garantir liberdades (o que equivale a garantir direitos): ele se tornará, a partir desse momento, governo despótico, e deixará de ser poder político, deixará de ser sociedade organizada, preparará o seu próprio fim.





Segundo, o Estado deve se preocupar em preservar o seu próprio poder por uma questão de necessidade física da própria política e da sociedade política. Um Estado cujo governo não se preocupa em manter-se no poder é um Estado sem estabilidade política, portanto um Estado onde as liberdades definidas por ele mesmo não têm garantia de constância e segurança. Em suma, um Estado que não toma medidas para preservar o próprio poder é um Estado que não pode garantir a preservação das liberdades que cria, de maneira que é um Estado, também, que não pode contar com aliados. Por isso, não existe contradição nenhuma entre os dois princípios que Maquiavel apresenta como necessidades de todo Estado porque sem estabilidade política não há garantia de direitos e liberdades, e porque se quer garantir direitos e liberdades são projetadas medidas para manter o poder do Estado. Lição da política maquiaveliana: todo poder tem como finalidade criar a liberdade e os direitos; e, para isso apenas, pode fazer tudo o que achar que deve fazer, inclusive manter o próprio poder (não por acaso, Maquiavel é um autor tão importante para todos os teóricos da democracia: ele foi o primeiro a ver esse princípio da relação entre direito e poder que só encontrará realização sem chance de despotismo na democracia que passa a ser projetada na modernidade). Uma outra constatação revolucionária e extremamente importante para a análise da política e do direito é que o centro da política não é a moral, mas sim o poder. Ou seja, a política não deve ser orientada pela moral nem avaliada por um modelo moral, mas deve ser orientada pela necessidade da própria política, que é a manutenção do poder; isso equivale a dizer que, para Maquiavel, a política não deve ser orientada pela moral, mas sim pela ética: não deve ser orientada por um modelo de valores, mas em vez disso deve obedecer ao que é necessidade interna de cada sociedade política tal como foi estabelecida. De modo que um Estado só é legítimo enquanto suas ações são realizadoras da sua necessidade interna, e não realizadas de um modelo externo que lhe é submetido (como gostariam de fazer os teólogos da política medieval).





No pensamento político clássico, uma constante é a afirmação de que a política deve buscar sempre a realização da justiça e da paz, e que um bom governo é um governo justo. Ao lado dessa concepção, desenvolvera-se a noção vulgar de que um governo justo e pacífico é resultado necessário da aplicação de uma vontade justa: de modo que o governante deve ser uma pessoa justa; mas, como apenas enquanto homem é um ser imperfeito e de vontade imperfeita, deve colocar sua própria vontade sob o comando divino. Ao final, o governo justo é aquele em que seu governante segue a vontade divina, as regras da piedade e da religião, as normas da boa moral e dos bons costumes. Ao mesmo tempo, sempre que uma pessoa injusta estivesse no poder, fatalmente o governo seria injusto e maligno, em razão da sua impiedade e barbárie.





O que diz Maquiavel sobre isso? Novamente a partir de uma observação histórica, constata que nunca se dá de fato essa relação de causa e efeito entre a qualidade moral do governante e a estabilidade do governo e do Estado. Se tivermos de esperar que um Estado seja estável porque o seu governante é uma pessoa justa, estamos perdidos. A história está cheia de exemplos de governantes piedosos de governos fracassados e de governantes inescrupulosos que conduziram governos extremamente estáveis e fortes; assim como do inverso. Em todos os casos, o que causou e causa a estabilidade ou decadência de um Estado nunca é a qualidade moral do governante, e sim a maneira como são conduzidas as instituições do Estado e as ações e decisões tomadas na direção da vida política. Não é a moral de um governante que determina o destino de um Estado, mas são as ações dos agentes políticos (tanto o governo, quanto os súditos ou cidadãos) que o fazem. De maneira que os cidadãos devem, mais que esperar uma pessoa justa no poder, saber como é que funciona o próprio poder; e o governante, em vez de buscar ser um exemplo de moral, deve saber administrar de forma oportuna toda a coisa pública. Quando chegamos a Montaigne, o assunto não é exatamente a política, mas estará profundamente ligado a ela: é a ética e a moral.





Montaigne também será responsável por uma revolução teórica diante dos medievais. Ele empreende a separação entre moral individual e moral individual, e mostra que a ética deve, em vez de seguir uma moral coletiva, seguir (ou formar) uma moral individual. Do que se trata? Montaigne mostra, nos seus Ensaios, que há uma diversidade de juízos morais entre os diferentes indivíduos. Em primeiro lugar, todo indivíduo faz julgamentos morais, porque toda pessoa tem um faculdade moral, que lhe permite avaliar as ações e situações como positivas ou negativas, boas ou más, justas ou injustas. Assim, existe em cada indivíduo uma moral individual, ou seja, um conjunto de valores pessoais acerca do que é adequado para as ações e a vida humana. Além disso, há uma moral coletiva, quer dizer, há um conjunto de valores e costumes a respeito do que é ou não adequado à vida humana que são partilhados entre várias pessoas, ou que são transmitidos tradicionalmente de um grupo a outro, de uma geração a outra, etc. Ora, se há essa moral coletiva ao mesmo tempo existe a moral individual de cada um, qual a relação que há entre ambas? Quando alguém age por consciência moral, segue qual delas, a individual ou a coletiva? Da análise que Montaigne faz dos costumes humanos, apreende-se que o indivíduo segue sempre a sua moral individual: a moral coletiva é sempre um convívio entre morais individuais que estão em consenso; quando diferentes morais individuais sustentam juízos opostos, não é possível abstrair delas um única moral, nem mesmo uma síntese. Assim, cada pessoa age movida por uma moral individual; quando considera a existência de uma moral coletiva, considera também se a sua moral individual está em concordância ou não com essa moral coletiva.





Isso coloca um problema para as concepções clássicas de moral: se cada pessoa tem uma moral individual, e se as morais individuais apresentam às vezes oposições entre si, então é impossível que uma moral coletiva seja universal, porque nunca será possível construir uma moral coletiva partilhável por todas as pessoas. Todo juízo moral (seja coletivo, seja individual) encontrará em seu caminho alguém que pensa o seu contrário, porque as pessoas têm experiências, naturezas, vidas completamente diferentes, o que as leva a sentir diferentemente o que é ou não é adequado para a própria vida. Ou seja: a nossa consciência moral é resultado da nossa própria experiência de vida, de maneira que é inútil inverter esse processo e propor um modelo de moral ao qual deveriam se adaptar as existências particulares. O que mostra Montaigne, portanto? Que, diante da questão ética sobre quais ações devem ser realizadas, sabe-se de antemão que não se poderá orientar a ação a partir de um modelo coletivo de moral: cada indivíduo sente necessidades diferentes e somente estas devem guiar as suas ações. Ou seja: é no interior de cada pessoa que está o impulso para a sua própria ação e para a sua própria consciência moral. Esse impulso jamais deve vir do exterior; primeiro, porque isso é inútil, se há um confronto entre o desejo interior e a imposição exterior; segundo, porque isso é desnecessário: ao indivíduo, basta somente agir conforme o que considera correto e está exclusivamente em seu poder; isso é a vida ética e a vida feliz (agora, se o que ele considera correto algo que prejudica de fato a outra pessoa, já não é mais uma questão ética apenas: é uma questão política, e aí, necessariamente, coletiva — só que não será mais moral, conforme já ensinara Maquiavel). Étienne de la Boétie, contemporâneo e amigo de Montaigne, inaugura a idéia moderna de democracia. No Discurso da servidão voluntária, La Boétie empreende algo semelhante ao que Maquiavel havia feito em seus textos: analisa a natureza da política, a partir de uma observação da política do seu tempo. Algumas coisas já reveladas por Maquiavel estão bem presentes em La Boétie: a compreensão de que há várias formas diferentes de cidade e Estado, que há várias formas de governo, e que em geral a maior parte dos governos é constituída de monarquias. Agora, La Boétie observará certas coisas que, embora estejam prenunciadas em Maquiavel, não revelam com tanta ênfase o que deverá ser a vida política a liberdade.





Segundo La Boétie, se é verdade que a maioria dos governos são monarquias, é mais verdade que praticamente todos os governos são despóticos, especialmente nas monarquias. O que significa isso? Significa que, embora seja relevante a distinção das diferentes formas de Estado segundo suas formas de governo para perceber como cada Estado é singular na sua forma e constituição, essa forma de governo não é o caráter mais relevante do próprio Estado. O caráter mais relevante é a maneira como o poder é exercido; e o que La Boétie tem a dizer sobre isso é revolucionário. Segundo ele, independente de quais sejam as formas de governo mais ou menos freqüentes, a maior parte dos Estados vive a prática despótica do poder. Assim, o que La Boétie mais percebe de uma observação da história da política do seu tempo e também a partir da observação de exemplos clássicos da história, é que em geral os súditos de cada Estado se sentem servos do seu governante, e o sentem como um déspota: ele governa como bem quer, sem consultá-los e sem respeitá-los. Ao mesmo tempo, os súditos se sentem sem liberdade dentro da condição de súditos: por serem governados e em nada poderem interferir na determinação do poder, não se sentem livres, mas antes sentem-se servos do seu soberano. Mais do que isso: sentem essa situação como angustiante, porque cada indivíduo deseja a liberdade, tem necessidade natural de liberdade. Portanto, a condição do súdito, em geral, é uma condição de angústia, porque vive entre o desejo constante de ser livre e a insatisfação constante desse desejo. Finalmente, ressalta La Boétie, o mais absurdo: os súditos, em tais regimes despóticos, não esboçam reação alguma, nada fazem contra essa angústia, e continuam numa servidão constante.





Por que isso, sendo que os súditos estão em maioria em relação ao soberano (que normalmente é um só), e portanto são mais fortes que ele? Pergunta-se La Boétie: por que os súditos não reagem contra o despotismo, já que são mais fortes que o déspota? Uma resposta que os autores clássicos dariam seria: porque temem ser castigados pelo soberano, ou por Deus. Mas não é essa a resposta de La Boétie. Segundo ele, os súditos, ainda que angustiados com seu estado de servidão, não reagem contra ele porque ao mesmo tempo que desejam naturalmente a liberdade, também desejam ser dominados. Sua servidão é voluntária porque os súditos, apesar de odiarem seus governantes, sentem-se dependentes dele, não se concebem autônomos diante dele ou em relação a ele. Por que isso, porém? Seria porque os homens não podem mesmo governar a si mesmos? A resposta de La Boétie inaugura a concepção moderna de democracia: Os homens têm necessidade de governar a si próprios e têm essa capacidade; mas aceitam ser servos porque não conhecem sua própria capacidade de governar a si mesmos, e estão acostumados à vida na servidão e na falta de liberdade, ainda que tenham, em sua própria natureza, uma necessidade profunda de liberdade. No despotismo, é impossível satisfazer a essa necessidade natural, porque na vida despótica o súdito é mantido num estado de total ignorância quanto à sua capacidade de se autogovernar; na servidão, também, o súdito está tão acostumado a viver sem autonomia e em estado de dependência que passa a aceitar o poder que o domina como necessário, quando, por natureza, não é necessário — necessário, para o súdito, é ser livre. Diante disso, será necessário, para eliminar a angústia em que o súdito é consumido constantemente, acabar não com o tirano (porque depois dele virá um outro tirano), mas com a tirania, isto é: com a prática do despotismo. Será preciso conceber uma prática política na qual as necessidades naturais de liberdades sejam realizadas concretamente, o que, segundo La Boétie, só é possível no horizonte de uma república livre.





La Boétie não utiliza o termo "democracia", mas quando ele fala de "república livre", está concebendo uma prática política onde a liberdade necessária é alcançada pela vontade da própria soberania política (o inverso do despotismo, onde por vontade do soberano a liberdade é impossível). Embora La Boétie não utilize o termo nem faça uma teoria a fundo a favor da democracia (isso será feito pela primeira vez por Espinosa, no século seguinte, ou seja, no século 17), ele é o primeiro autor a mostrar que a liberdade política é uma liberdade republicana e democrática. Para chegar a essa conclusão, em momento algum La Boétie se utiliza de modelos: parte exclusivamente de uma análise da política e da sociedade do tempo; e, como sua análise é uma análise do que é devido segundo a natureza e a necessidade da política, da sociedade e de cada indivíduo, a sua análise é uma análise ética, da mesma forma como a de Maquiavel e a de Montaigne o foram pelo mesmo motivo.





O que traz, portanto, o pensamento renascentista, em termos de pensamento político? Não apenas a fundação de uma prática revolucionária de pensamento político — que não busca estabelecer modelos ideais, mas busca apenas dizer o que é necessário segundo a experiência e a natureza humanas, tanto na ética como na política —, mas o impulso para uma idéia que a partir daí se desenvolverá cada vez mais, especialmente a partir de Espinosa no século 17 e, no século 18, de Montaigne e Rousseau: a idéia de que a liberdade é a liberdade política na vida democrática. Assim, se gregos, romanos e medievais tinham como idéia de democracia simplesmente o governo da maioria ou o governo de todos (e não é à toa que consideravam uma forma praticamente impossível de concretização pacífica), o que é mostrado a partir dos modernos como sendo a democracia? A partir dos modernos (mas principalmente nos modernos; nos contemporâneos essa idéia será um tanto vituperada), a democracia não é mais concebida como uma forma de governo. A partir dos modernos, a democracia é uma qualidade da política: é uma vida política na qual o poder político é criação e preservação de direitos. Isto está já em Maquiavel, quando mostra que o Estado é uma sociedade organizada a partir da criação e preservação de liberdades e do próprio poder; está em Montaigne, quando mostra que cada indivíduo deve agir não sendo guiado pelos seus próprios valores e necessidades; e está principalmente em La Boétie, quando mostra que em qualquer vida política na qual o súdito não realiza a sua (desconhecida) capacidade para autonomia é uma vida na angústia e na servidão. estes autores, que estão empreendendo uma teoria geral da política e do Estado, e também uma teoria da moral, insistem nessa necessidade de autonomia porque pessoalmente a conhecem muito bem: estão entre os primeiros autores que se põem a escrever sobre o justo e o devido, a política e a ética, sem o apego à religião ou à teologia — e nem, também, o apego à moral e à superstição. Diante das suas constatações — rigorosamente científicas, contra as quais não existe contraprova —, a ideologia do poder teológico-político desaba por completo, e abre-se espaço para a trilha da ciência política e da filosofia política moderna e racionalista. O único lugar onde continuará a ideologia teológica da supremacia da moral sobre a política será, não por acaso, o autoritarismo: assim, em qualquer lugar em que o autoritarismo continuar sendo exercido como prática de dominação e administração, continuará sendo impossível a democracia, porque (como demonstra La Boétie) aí não se percebe o quanto é preciso instaurar a vida autônoma, já que normalmente não se sabe da própria capacidade de viver fora da vida autoritária e despótica. Daí por diante, o pensamento político se envolverá menos na definição da melhor forma de governo e mais na demonstração de como deve ser o poder (e de como pode-se escapar do despotismo). Ao mesmo tempo, é verdade que a religião perderá cada vez mais força sobre a prática política secular, mas de maneira alguma é verdade que desaparecerá o poder teológico-político e, principalmente, sempre haverá a presença de uma ideologia vulgar segundo a qual a vontade do mais forte é a legítima. Essa idéia de que a vontade do mais forte é a legítima era o principal argumento dos sofistas para justificar que nada adianta fazer contra o déspota ou tirano; o que os filósofos do próprio período já haviam demonstrado é que a vontade do tirano só é tomada como legítima quando se aceita a prática da violência. Se a violência não é tida como uma prática aceitável — e numa perspectiva racionalista definitivamente não há nada que justifique a prática da violência; nem mesmo a guerra —, então pode ser verdade que o tirano domine e seja mais forte; mas de forma alguma isso é benéfico ou justo, porque não realiza uma necessidade coletiva ou pública, mas apenas uma necessidade particular. Atualmente, quando se concebe de forma vulgar que uma vontade coletiva é legítima ou democrática porque é vontade da maioria, isso é uma retomada do mesmo argumento que sempre motivou todas as formas do despotismo: simplesmente por ser vontade de uma maioria que é fisicamente mais forte, deve ser imposta, mesmo se isso envolver passar por cima da integridade das minorias ou (o que é o mesmo) da necessidade pública (que é diferente da necessidade da maioria, que é uma necessidade particular). O que torna uma ação democrática não é, pois, o fato de ser a ação de um ser mais forte (porque este pode ser o déspota, ou pode ser um grupo despótico e violento), mas sim uma ação cujo realizador (independente do seu número) age em função do que é bem comum, bem público: seja uma finalidade válida realmente para todos, seja uma necessidade existente realmente em todos. É por isso que a idéia racional de democracia incomoda tanto: porque ela envolve dominar a nossa própria violência, e exige respeitar a integridade de quem é o nosso diferente.





Esses princípios da política e da democracia desenvolvidos já no século 16, colocam sempre a necessidade de distinguir a ação política (ou ética) violenta da ação política (ou ética) livre. E tratam de fazer uma denúncia radical da idéia de que a violência e o autoritarismo são naturais. É a liberdade que está na nossa natureza, como uma necessidade que devemos realizar. Se ela não é realizada, isso se deve porque não conhecemos a sua necessidade, e porque as nossas forças naturais para realizá-la estão sendo oprimidas por um aparelho autoritário de dominação. Não será à toa que, sempre que se coloca que a democracia é irrealizável, esse discurso é acompanhado de um ceticismo não somente em relação à democracia, mas em relação à política e à vida pacífica. Entretanto, apesar dessa imagem de impossibilidade da democracia, ela já é existente enquanto uma necessidade natural de toda sociedade, e embora seja de difícil realização, não é impossível, porque por nossa própria natureza estamos felizmente condenados a desejá-la. Como dirá Espinosa no Tratado político (cap. VI, § 4), contra a idéia de que a paz só é possível num sistema autoritário e, portanto, fora da democracia:





A experiência parece ensinar que, no interesse da paz e da concórdia, é conveniente que todo poder pertença a um só. Nenhum Estado, com efeito, permaneceu tanto tempo sem nenhuma alteração notável como o dos turcos e, em contrapartida, nenhuma cidade foi menos estável do que as cidades populares ou democráticas, nem onde se tenham dado tantas sedições. Mas se a paz tem de possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz. Entre pais e filhos há certamente mais disputas e discussões mais ásperas que entre senhores e escravos e, todavia, não é do interesse da família, nem do seu governo, que a autoridade paterna seja um domínio e que os filhos sejam como escravos. É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas, isto é, na concórdia. Se a ética dos antigos e dos medievais é uma ética da finalidade, surge nos modernos uma ética da necessidade. Do que se trata? Os antigos e medievais tinham diferenciado dois tipos de impulso para a ação — desejo e vontade —, e tinham, ambos, privilegiado a vontade como guia da ação, mesmo nos casos em que era necessário respeitar as necessidades naturais do agente. De qualquer maneira, nos gregos e nos medievais, sempre a ação é concebida como meio para se atingir determinado fim e sempre é realização de uma ação escolhida pela vontade dentre várias possíveis. A partir dos renascentistas, muda a concepção da liberdade, porque não apenas passa a ser entendida como liberdade política, mas principalmente é compreendida como uma capacidade autônoma do agente em agir por sua própria força interior — sem nenhuma dependência de algo exterior a ele. Se para os renascentistas é assim, então a ação moral humana não pode ser considerada livre porque seja submetida a uma moral coletiva, mas deve ser considerada livre porque decorre do que o agente realmente sente e deseja como válido. Também, se a ação política válida é aquela que realiza finalidades públicas, essas finalidades não são válidas porque sejam vontades de particulares que são impostas a outros particulares (como quando um governante impõe sua vontade ao governado; ou quando uma autoridade impõe sua vontade ao seu servo), mas só podem ser válidas porque são realização de uma necessidade e desejo da própria política: a produção de uma ação coletiva, causada autonomamente por todos os indivíduos porque eles realmente desejam causar essa ação coletiva; e se houver representação política, a ação do representante só deverá ser válida caso consiga produzir o efeito desejado e necessitado pelos representados.





Nos renascentistas, surge, em suma, a idéia de que uma ação realizada por um impulso fora do que é necessidade do agente não pode ser ação livre. Por que o súdito é angustiado, servo, não livre, segundo La Boétie? Porque só obedece (uma ação) por não seguir a sua necessidade (que é não obedecer, e sim ser autônomo). Por que não segue sua necessidade? Porque é enganado por uma vontade que não é a sua, vontade despótica que o impede de observar a sua própria necessidade e reagir contra essa contradição entre a vontade alheia e a necessidade interna. Por que a moral individual não deve ser considerada válida só se for validada pela moral coletiva, segundo Montaigne? Porque a moral individual, sendo vontade autenticamente individual, nada mais é do que manifestação do próprio desejo individual, ou seja, do que se sente pessoalmente como necessário ou devido. O que provocaria uma incompatibilidade entre a moral individual e uma moral externa? O fato dessa moral externa ser contrária ao que é necessidade individual do agente. Portanto, considerar que a ação só pode ser válida porque é adequada a uma moral coletiva, que é externa necessariamente, é por definição ir contra aquilo que é necessidade verdadeira do indivíduo.





Quanto a Maquiavel, por que, nele, a moral não deve orientar a política, e sim o poder é que deve fazê-lo? Porque o poder (isto é, a potência da comunidade política em organizar a si mesma) é a própria necessidade da política, ao passo que a moral, por apresentar apenas modelos de ação e conduta, nada pode responder a respeito da peculiaridade de cada sociedade e cada problema prático da política. Ainda em Maquiavel: por que essa concepção é ética, embora seja uma crítica de toda forma de moralismo? Justamente porque é uma crítica a toda forma de moralismo. Reconhecer que o poder é o centro da política é deixar de lado a opção de avaliar a política a partir de modelos morais (sem nenhuma relação real com as singularidades empíricas dos Estados) e, ao mesmo tempo, é mostrar que as estratégias para a adequada ação na política dependem de um conhecimento da sua necessidade interna, que é manter o próprio poder ao mesmo tempo que envolve criar e manter direitos e liberdades.





Ou seja: o olhar moderno acerca da política e da ética mostra que a necessidade interna dos indivíduos é um fundamento imprescindível para a ação individual e para a liberdade. Também, mostra que, quando a vontade é contrária à necessidade, isso significa que é uma vontade externa e, pior, contrária ao que é realmente necessário. De maneira que deixar de seguir as próprias necessidades para seguir uma vontade contrária a tais necessidades não seria uma atitude prudente, mas, na verdade, será uma atitude destrutiva do próprio agente, porque trata de enfraquecê-lo e desnaturá-lo. Numa palavra, deixar de atender às próprias necessidades para atender a uma vontade contrária a elas é ser tratado com violência, ou mesmo agir de forma violenta. Pode ser uma ação, mas de forma alguma pode ser uma ação livre, nem uma liberdade válida.





O que essa ética da necessidade estabelece é que a ação deve buscar seguir não uma boa vontade, ou uma vontade que não nos permite ser dominados pelas nossas paixões, mas sim as nossas necessidades, de fato. Não há nada de errado em fazer isso, se essas necessidades são necessidades contidas na nossa própria natureza. O súdito pode escolher por si mesmo viver na servidão? Pode. Mas o que o leva a isso não é uma necessidade natural de ser servo, mas sim um desconhecimento da sua necessidade natural de ser causa da sua própria ação e da sua própria liberdade. Diante disso, que tipo de ação é orientada por uma ética da finalidade e que tipo de ação é orientada pela ética da necessidade? A pergunta na verdade está mal formulada e não deve ser essa. A questão correta seria: o que é a ação livre para a ética da finalidade e o que é a ação livre para a ética da necessidade? Para a primeira, a ação livre é aquela resultante de uma escolha livre entre várias ações concebidas como possíveis. Para a segunda, a ação livre é aquela concebida como devendo ser realizada por uma necessidade da própria natureza (de modo que ainda que se conceba outras opções possíveis, realizá-las é não agir segundo o que pede a nossa natureza, e sim agir segundo o que uma vontade externa nos exige).





Das duas éticas, porém, considero que só a ética da necessidade (cuja formulação completa e cristalina, repito, me parece ser a filosofia espinosana) faz sentido. Ela vem, justamente, demonstrar o erro da ética da finalidade: quando esta concebe que há sempre várias opções possíveis para se chegar a um mesmo fim, o que está querendo dizer com isso, na verdade, é que não é preciso atender à nossa natureza, mas basta encontrar uma justificação qualquer (isto é, uma "finalidade") para qualquer opção que possamos eleger.





Assim, graças à ética da finalidade, toda ação pode encontrar justificação: basta inventar-lhe uma finalidade. Todo o discurso da ética grega e da ética medieval queria fazer entender que se escolhe uma ação dentre várias possíveis porque existe uma finalidade a ser atingida e, por isso, existe sempre uma determinada ação a ser de fato escolhida porque é a mais útil em função daquela finalidade. Ocorre que o mesmo raciocínio pode funcionar para se dizer que, se tal ação foi realizada, ela acabará produzindo determinado efeito e, assim, não é impossível considerar que esse efeito pode ser explicado como uma finalidade para tal fim. Parece um nominalismo, mas é exatamente dessa forma que o pensamento vulgar explica o funcionamento da ação. Por exemplo, se num curso universitário um aluno, devendo entregar uma dissertação, simplesmente copia o trabalho de um outro aluno, como explicar uma tal ação? De forma vulgar, cabe um argumento da finalidade: a finalidade era tirar nota, o aluno considera possível para isso apresentar um trabalho qualquer, considera também desnecessário escrever um trabalho próprio e pronto. Se são apenas estes os critérios, nada há que se dizer da esperteza do aluno em aplicar a Lei de Gérson (principalmente se o professor não perceber). Agora, se é o caso de avaliar isso a partir de uma necessidade da ação, o que era necessário nesse processo? Depende do ponto de vista. No caso, para esse agente (o aluno que entrega uma cópia de trabalho em ver de produzir um trabalho próprio), a necessidade é apenas entregar um trabalho. De acordo com essa concepção, a atitude do aluno é adequada. Só que não se trata de uma situação individual, e sim de uma situação pública, onde uma instituição pública — a educação — é desprezada por um dos seus participantes, e o efeito que se deve produzir — pensamento, e não nota — não se produz autenticamente.





Se fosse verdade, portanto, que para qualquer situação basta a apresentação de uma desculpa (na forma de finalidade) para uma ação, então a violência seria justificável tanto na vida ética quanto na vida política. O que é a violência? É uma prática na qual um ser dotado de sensibilidade é tratado como se fosse uma coisa. Ou seja, é uma prática na qual um ser é tratado sem que sua natureza seja respeitada. Por definição, portanto, nenhum ser tem necessidade de violência, porque violência é desnaturação, antinatureza. Para que seja possível, pois, achar uma desculpa para a ação violenta e, no caso da política, para o autoritarismo, é necessário permitir que não se dê atenção à necessidade da natureza. Não foi por outro motivo que a ética da finalidade caiu como uma luva para a teologia medieval, e que é um instrumento sempre útil para qualquer concepção autoritária da política. Por isso, a ética da finalidade é inviável para a produção de uma liberdade política moderna. Esta exige que toda ação política, assim como toda ação humana, seja considerada válida em função de atender às necessidades de cada situação individual. Por que nunca se deve agir de forma violenta, segundo a visão dessa ética? Porque nenhum ser tem necessidade natural de ser tratado de forma violenta, da mesma forma como nenhum ser tem necessidade de agir violentamente diante de outro ser. Quando alguém age violentamente, não apenas está concebendo a pior forma de ação, como não conhece sua própria capacidade de agir pacificamente. E quem mostrará isso de forma minuciosa, inclusive no que respeita ao direito, será Espinosa, com quem tanto a ética da necessidade quanto a teoria da democracia se estabelecem em definitivo no pensamento racionalista.





Texto escrito em 22-23 de setembro de 2000, para fins didáticos, para meus alunos de Filosofia Jurídica na graduação em direito na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; publicado exclusivamente na internet, no endereço http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm





Fonte: http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm

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