Trechos do diário de uma mulher chamada Chiara(pelos meus parcos conhecimentos de italiano sei que esse nome pronuncia-se “Kiara”) que encontrei por sorte num banco de um trem do metro de São Paulo.O diário narra a vida dessa mulher de maneira descontínua, dentro havia ainda muitos objetos que deviam ter muito significado para ela, pensei até em entregar aos achados e perdidos, mas como sou uma pessoa extremamente curiosa, resolvi ler primeiro.
Antes que alguém me acuse de qualquer transgressão, devo dizer que procurei no diário algum telefone ou endereço, qualquer vestígio que me dessem a possibilidade de entregar de volta o diário, mas foi em vão, não havia nada, exceto por uma foto.Mas já perdi as esperanças, como encontrar essa pessoa no meio de milhões de pessoas que vivem nessa cidade só com a referência de seu rosto? Pior e se ela estiver em outra cidade, outro país,sei lá, daí serão bilhões de possibilidades.
Por isso estou publicando esse texto, quem sabe a dona do diário, pelo mesmo acaso que eu encontrei o seu diário, caia aqui nesse ciberendereço e encontre os relatos de sua vida.
Sei não, mas desconfio que ela abandonou de propósito esse diário, como alguém que queria abandonar suas memórias e deixá-las para alguém, sei lá, quem sabe, hoje ela também até tenha um blog e ficou achando o seu diário de papel obsoleto.
A verdade é que eu me lembro que uma vez escrevi um texto no banheiro de um cinema ainda sob o impacto depois de assistir um filme, e que agora não me lembro o nome, e o abandonei por lá mesmo, não tenho certeza se alguém o encontrou, mas eu não queria ficar com aquelas palavras para mim, queria me livrar delas.
A seguir reproduzo somente os trechos que achei mais interessante, vamos lá:
11 de Junho(o ano 1998)
Gosto de olhar as pessoas andando pela rua, fico fitando o rosto delas, o jeito delas andarem.
O rosto de uma pessoa diz 10 % sobre o que ela é e os outros 90% estão lá, escondidos dentro dela, debaixo da pele, das roupas...isso dá uma vontade maior de conhecer pessoas, sem precisar prometer futuro ou escolher nome dos filhos.
Odeio puritanos, cheios de medos e inseguranças, limitados, frustrados, amarrados, aleijados...
12 de agosto(1998)
Gosto de viver intensamente, mas sem drogas pesadas, gosto de me sentir vazia, caminhar pela rua sem destino, olhos perdidos, mas alma encontrada...Hoje caminhei pela avenida Paulista e vi tantas coisas, quando cheguei na consolação já me sentia uma outra pessoa, parece que ali o deserto encontra com as geleiras.Gosto de me sentir sem fronteiras...Ninguém pode me entender, nem mesmo os meus melhores amigos.
06 de outubro(1998)
Hoje o céu está sem estrelas...Acho que me tornei uma destruidora de sonhos, não sonho com nada e mesmo assim não sou pessimista.As pessoas que se ligam a mim emocionalmente são tão sonhadoras, às vezes chego a ter pena delas, iludidas, cegas, acreditando em miragens ou no em castelos de areia a beira do mar.
15 de março(1999)
Sinto-me engolida pela cidade, vivo em suas entranhas..a cidade te devora e te suga as essências e depois te cospe para vida...viver muitos anos numa cidade grande te transforma em restos...viver em cidade grande é uma grande ilusão.
2 de Abril(1999)
Estou me sentindo abandonada, mas com o coração sem donos. Todos meu amores se foram, hoje são apenas retratos na minha gaveta e sei que eu sou o mesmo para eles, nunca busquei ser inesquecível para ninguém.Não gosto de promessas e nem de planejar futuros, Minha vida é como um trem, e as estações são meus destinos, muitos sobem e muitos descem....
23 de junho (1999)
E lá se vai mais um dia...Mas uma noite sem estrelas e sem lua...vazia como eu me sinto, mas não me sinto vazia porque não tenho amores como essas meninas bobas e que só pensam em namorados ou em amores....estou em busca de outras coisas, amores eu tenho, mas eles são só complementos sentimentais...Ontem fiz amor com o meu namorado, ele me ama muito, eu também o amo muito, mas tenho outros interesses, não quero me casar...
30 de junho(1999)
O século está acabando bem rápido...Eu percebi os olhares dela para ele e eu nem sinto ciúmes dele, não gosto de prender ninguém, não me sinto dona de ninguém, não sou mais uma garota insegura e cheia de medos, penso que o que tiver que ser será.
08 janeiro(2000)
Mudei de novo, acho que tenho alma cigana, já é o terceiro lugar que moro aqui nessa cidade gigante...ela te pisa, ela é tão grande e você tão pequena.As boates dessa cidade são lamentáveis, as pessoas são tão iguais uma as outras na noite de São Paulo, como se estivessem olhando para si mesmas no espelho do banheiro.
05 de fevereiro(2001)
Ouvi uma canção de amor no rádio que me fez lembrar de ontem.Bebemos vinho e esqueci por alguns momentos das minhas barreiras, dei um beijo nele, mas não foi bom, quis embora no minuto seguinte, acho que ele ficou chateado, mas fazer aqui, foi só ilusão, atração momentânea.Nós mulheres encantamos os homens, mas não tenho e nem sinto tanta necessidade deles como eles sentem de mim.
29 de dezembro(2001)
Estou tão cansada...mas não vou deixar de dizer...que não acredito mais nessa cidade, nesse estado, nesse país, nesse continente e nesse mundo..graças a Deus então não preciso de muito dinheiro para ser feliz. Todas os dias aqui parecem iguais exceto aqueles que estou à beira do lago do Ibirapuera.As ruas são todas iguais e não importa os nomes que elas tenham.
Aqui todo mundo parece estar perdido e ao mesmo tempo saber onde quer ir, mas nunca chegam, mesmo estando com tanta pressa e na verdade nunca chegarão a lugar nenhum.
17 de Julho(2002)
São Paulo é como o mundo todo, sonha ser Nova Iorque, mas é como Nova Déli na índia.
Gosto do amor e ele gosta de mim, namorei bons rapazes e eles me tiverem dos melhores jeitos, nunca traí nenhum deles, quando não gostava mais terminava.Mas essas mulheres....aquelas que trabalham comigo sempre as voltas com amores, só pensam nisso, acham que o casamento vai suprir todas as suas carências e tapar todos os seus buracos literalmente...gosto muito das minhas lágrimas, mas gosto ainda mais da minha risada para elas.
23 de setembro(2003)
Todos os chefes que eu tive parecem ser a mesma pessoa, não tem tato, se acham superiores, se prostituem pelo poder.Escritórios com chão de carpete e almas empoeiradas.
Nas cidades grande somos como uma manda pela manhã indo pastar em seus empregos e no final da tarde somos a mesma manada voltando para os seus currais.
Ontem estive na praia e gostei de sentir a brisa que soprava em meu rosto e balançava meus cabelos, o mar estava bonito, verde como a cor dos olhos de minha irmã.
03 de janeiro(2004)
As pessoas mais sensatas dessa cidade são os mendigos, basta olhar como todos os outros se comportam no trânsito caótico..paulistanos se odeiam com tanto amor.Sou uma pessoa passional, tímida, mas não retraída.Sou nessa cidade uma nuvem passageira, sou na vida das pessoas um cavalo sem sela...estou a flor da pele cheia de desejos, mas tão cansada de tudo e mesmo assim continua inteira...minhas saias são azuis e meus sonhos são vermelhos.
Sou dona do castelo de cartas marcadas do amor dele, mas não sou o porto seguro que ele tanto procura, eu não acredito no amor como salvação e nem como objetivo, acredito no amor como um complemento da vida.
14 de maio(2004)
Essa foi a minha ultima chuva e ela deve ter lavado todos os meus pecados...nunca gostei de andar em linha reta...não sei que caminho tomar, talvez tome o caminho do mar ou suba mais a serra...vou fazer como as andorinhas, buscar um lugar mais quente para quem sabe me reproduzir e quando for vou levar comigo todos os meus pedaços.
Talvez um dia eu volte, quem sabe um dia eu volte...mas agora, Chiara não mora mais aqui.