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Contos-->O último oboio -- 19/05/2017 - 16:01 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 O relógio de parede pinga reticente... Euzébia reza o terço das três da tarde, e põe-se a pensar: Logo ela, que tanto queria  guardar as melhores lembranças do  filho, tinha agora a triste sensação de perda. Morte trágica... Não podia ser! Seu filho único, morto! Se o pai estivesse com ele, o filho não teria morrido. João Velho  é respeitado, não bole com ninguém, mas só de ouvir seu verdadeiro nome — João Ferreira da Silva — até cachorro treme,  mete o rabo entre as pernas e foge  choramingando. João nunca foi bate-pau de ninguém. Só dele mesmo. Não foge nem do trem  carregado de dinamite. Homem de palavra e coragem aquele velho... Mas pra brigar com onça? Tem mais idade não! Ele mesmo contava que voltando da Vila Mimosa, topou com dois malfazejos na Afonso Pena, e abaixo de Deus, a salvação foi uma faquinha que ele carregava na cintura. Não teve outro recurso, senão reagir. Defender-se.  Medir forças, e por fim, o trágico episódio : um meliante correu, o outro ficou teso. Esticado na praça depois de receber uma cutilada no peito.  Por causa deste disso, largara o serviço de jardineiro no colégio dos padres, sem avisar. Precisava voltar  às origens, onde a paz promete reinar por mais algum tempo. Agora, embrenhado na mata, João matutava; e suas  lembranças remontavam momentos a sós com Euzébia, trazendo à baila travessuras  contadas por ele mesmo, quando se deitava com ela para dormir. Contava das idas e vindas à Vila Mimosa, o incidente na Afonso Pena... Mas as bestialidades no sítio em Petrópolis ele nunca contou.
— Somos uma só carne e um só corpo, João. Sinto a culpa de suas traquinagens pesando em meus ombros.
Não perguntou se a mulher se referia ao dano que  ele praticara na Afonso Pena,  ou a outras tolices que fizera quando jovem. Limitou-se em acrescentar:
— Eu ainda era solteiro, minha santa. A culpa é só minha.
— Pecados, pecados, quem não os tem — disse Euzébia. 
João não sofria mais remorso algum por causa de seus pecados. Confessara e pagara penitências, leves e pesadas conforme a gravidade da falta. No entanto, recordava-se com simpatia de uma confissão no Rio de Janeiro. O padre  atendia na capela do Marista, todas as tardes de terça e quintas-feiras. João se confessara na terça, e na quinta-feira da mesma semana, estava novamente, aos pés do confessionário.
— Quando foi sua última confissão, João Velho? Conte seus pecados, depois da última confissão.
— Pecado grave depois da confissão de anteontem, nenhum. Mas deixei de contar um pecado antigo...
O padre mexeu-se no assento e ajustou  a almofada.
— Se o escondeste com vergonha de confessar, acrescentaste mais peso à tua cruz, mas se o esqueceste...
Agora o castigo vai ser ajoelhar sobre caroços de milho — imaginou o penitente — Mas... o padre  sorriu docemente:
— Naquele dia, coloquei todos os teus pecados num saco e mandei embora. Vá em paz.
Depois de tantos anos, por que pensar agora nessas coisas? Descansou a cabeça numa pedra e dormiu. Ali, longe de qualquer presença humana, sonhou que Euzébia dormia sobre o velho catre. ‘Como ela poderia dormir tendo como  travesseiro a dor da perda de um filho?’  
Euzébia não dormia.
— Coma logo, senão a canja esfria. Faça sua parte,  o resto, Deus proverá. 
— Posso eu ainda conceber um filho na velhice? Nhô está velho. E eu passei da idade. Ainda que pudesse apanhar cria,  o lugar de José Lino, só ele pode ocupar. 
— No coração de mãe tem lugar para muitos filhos.
As palavras de Nhá Santa, embora bem intencionadas, não reconfortaram a alma de Euzébia.
— Olha, Nhá! Esses dias, o padre dizia na missa: ‘Deus reservou uma cadeira no céu para cada um de nós. Se você não for pra lá, sua cadeira continuará, eternamente, vazia. A vaga é sua. O lugar no coração de Deus é seu. Nem precisa disputa, tem vaga pra todo mundo’. Meu caso é diferente: Não posso mais ter filhos, e mesmo que pudesse ter, o lugar de Jose Lino em meu coração permanecerá desocupado, esperando que ele chegue, como de costume, pedindo a bênção.
— Adote um filho!
 Euzébia bebericou a comida. Vomitou o pouco que comeu  e dormiu. Em sonho, ouviu como que a voz de um anjo a sussurrar em seu ouvido: ‘Aprouve a Deus não poupar o próprio filho.’ 
Acordou.
Sentiu o  perfume adocicado de canela e jasmim penetrar no quarto. Era Nhá Santa chegando com uma caneca de chá.
O som do berrante fez-se ouvir longe. Deduziu que fosse  Onofre chamando o gado. E com os olhos do coração Euzébia  via José Lima montado num cavalo, afoito e  ligeiro. Seu filho era  o melhor vaqueiro da fazenda, depois do pai, é claro!
— São José dos Vaqueiros   proteja meu filho — disse ela no silencio de seu coração.
 Fez cinco minutos de silêncio e prosseguiu:
— A montaria de José Lino não retornou ao pátio da fazenda. Será que a onça comeu também o cavalo do vaqueiro? Será que os bichos vão para o céu?  — indaga sua alma — que pecado pode ter um animal selvagem?
Pecar todo mundo peca. Até os animais pecaram. Quando Adão pecou, os animais foram atingidos pela culpa do pecado. Não seria justo que na remissão dos pecados, eles também fossem alcançados pela graça do perdão? Será que tem animal no céu? O céu cheio de bichos deve ser  bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso... Se existe bicho que João Velho quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nem um. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou duas onças por se achar  no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida. Se gambá for para o céu leva o fedor?
—  Não, o céu não tem mau cheiro. Só cheiro bom.
 Pobre João Velho... agora se põe a conversar só?
 — Nunca estamos só — disse em voz alta para si mesmo — quando conversamos sozinhos, conversamos com o anjo da guarda. E o anjo responde e leva notícia e traz respostas às nossas indagações.
— Rico usa perfume caro. Pobre compra perfume barato, que fede. Se pobre for para o céu leva o fedor de seu perfume ruim?...
— Deixa de pensar besteira, João! Tem mais pobre no céu que rico no inferno. Ninguém vai para o céu por ser rico ou por ser pobre.   
O gado berrou no pátio do curral. Fujão foi o primeiro a chegar, mas a escolha não poderia recair sobre ele. Era pertença de Onofre, dada pelo patrão, boi marcado e ferrado com o sinal do vaqueiro, podia morrer de velho, ninguém punha a mão.
  Naquele dia, como nos tempos de Josué, o sol não se apressou a pôr-se, quase o dia inteiro, gastou apenas metade do céu. Sombra? Só a do burrinho. O pobre animal  dava coices ao vento e batia com o rabo, tangendo mutuca. Pau alto tinha na beira da grota, ali na aba do morro, só mata rala, e o verde, pouco.
Na fazenda Campo Grade, Euzébia lamenta a morte do filho: ‘Meu Deus, meu Deus! Não poderia o Senhor ter poupado a vida de  José Lino? Não poderia ter dado  um cordeiro no lugar de meu filho? Ou mesmo a vida do pai? João é velho e suas forças estão diminuídas, mas meu filho? Tão novo! Meu Deus, por que não ouves um coração que sangrado  e grita de dor, pedindo socorro? Acaso és surdo! É curto teu braço para alcançar-me, resgatar-me deste vale de lágrimas? Reconheço a minha fraqueza; mas tu és Deus e senhor! Faze-me ouvir uma palavra de alegria, porque meu coração conheceu o sofrimento e a dor.’
Nhá Santa entrou pisando macio.
— Já acordou?
—Não sei se dormi!
— O patrão mandou juntar o gado.
— Acho que acordei com o berrante tocando!
Campo Grande era só silêncio, parecia  Sexta-feira da paixão. Muitos camaradas, no entanto, quebraram o jejum de língua  para conversar baixinho  com Onofre:
— Chegaram a ver a onça?
— A onça que vimos é aquela que está amarrada na casinha de  curral.
— A índia?
— Podia ser outra coisa? Acaso José Lino tá amarrado lá. Já deve estar no céu!
— No céu da boca da onça!— disse outro.
— E se José Lino fundeou no grotão atrás dela e matou a bicha? O patrão disse que é  pra trazer o couro. Ele deve ter feito o serviço completo!
— Pode ser também que estava tirando o couro da pintada, e chegou o companheiro dela!...
— Arrenego! Vira essa boca pra lá.
— Se a onça comeu o vaqueiro, num vai ter enterro.
— Sê besta, homem!
— É verdade que o patrão mandou Pururuca embora?
— Pururuca está com o pé na espora. Japuaçu também!
— Se Japuaçu for mandado embora. Turíbio Soberbo e Amarildo vão juntos. São unha e carne.
— Uma carga dupla de preguiça, você quer dizer.
— Dinotério também é morto de preguiça. Até parece que é mulher do outro... Onde Turíbio está Dinotério aparece como quem não quer nada e se mete na conversa. Falam em criar peixe-leiteiro. Quem já viu uma loucura dessas! Deve ser código, para que os outros não entenderem.
— Arrenego! Quem diacho é Dinotério?
— Ô fi’duma quenga! Dinotério é Amarildo. Se falar o nome verdadeiro, na frente dele, dá morte.
— Quem já se viu ter vergonha do nome?
— Com um nome desses até porco anda de cabeça baixa.
O silêncio foi quebrado por uma gargalhada que ecoou contagiante como o bocejar e o  cantar do  galo nas primeiras horas da matina.
— Não é hora de falar  essas coisas não. Nem de rir. Patrão disse que se recuperar o vaqueiro com vida, vai mandar abater um boi gordo. Tocar viola e cantar inté o dia amanhecer.
— Mandou juntar o gado.
— Homem de muita fé, seu Generoso! Nem acharam o vaqueiro ainda e já mandou juntar o gado?
— O patrão é prevenindo. Pensa tudo com antecedência.  Se José Lino for encontrado. Tem festa. Se não. Vende a carne em Juramento.
— João Velho tá demorando!
— A onça quando pega o cabrito, quer também o pai-de-chiqueiro.
— Se não pararem com essa conversa, vou acabar metendo a mão no pé da lata de um prosa ruim!
— Se agaste não, Onofre! Se for mandada a vaqueirama embora, certeza que você fica!
— Sei não! Sei se fico não! Mandado embora ou ido por gosto meu. Sei se fico aqui não...
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento sopro, 
Imagem internet
 
Enviado por Adalberto Lima em 19/05/2017
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