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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Venusa Dumont- da memória à ressurreição- Parte I -- 12/02/2002 - 15:48 (Carlos Rogério Lima da Mota) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Venusa Dumont
Novela de Carlos Rogério Lima da Mota



ELENCO:

VENUSA DUMONT
LEONARDO DUMONT
CATHARINE DUMONT
GEORGE DUMONT
FLONA DUMONT
TANAKA SANTUKU
RUBENS ARRAIA
GIRIMUNDO ARAÚJO
PAULO EMÍLIO
FRED FUNERAL
EDGAR DE SOUZA
VERÔNICA DE SOUZA
JURUPOCA DA SILVA
JORGE ROMÃO
CARLOS SAMPAIO
GUSTAVO SOARES
JUSSARA AMARAL
ALBERTO CAMPEÃO
CHICO SANTINHO
MÁRIO MANQUINHO
MAURÍCIO CARVALHO
LUARA LIMA


CIDADE CENOGRÁFICA-


Vila dos Princípios, fronteira interiorana do Rio Grande do Sul.


Parte I

DA MEMÓRIA...

I
O jato fretado pelo município de Vila dos Princípios retornou da capital gaúcha às 10 horas , desembarcando no Aeroporto Local- l5 km do centro da cidade.
A comitiva, formada por dois empresários do ramo cultural, o prefeito e quatro vereadores- em destaque o senhor George Dumont – seguiu para a respectiva prefeitura, trazendo ótimas notícias ao patrimônio.
Após rodadas e rodadas de negociações, o governador..., resolveu conceder à cidade, em regime parcelado, quantia necessária para a construção de um Centro de Saúde Escola, na periferia. Isso, ocultamente, propiciava a futura eleição do respeitável vereador, George Dumont, ao cargo máximo do município, o de prefeito. Além, é claro, de favorecer os milhares de famintos - munícipes da região.
Ao chegarem à prefeitura, George sentiu a foice da morte oscular sua alma, levando-o a uma súbita vertigem.
Disse ele ao atual prefeito, Tanaka Santuku, seu melhor amigo:
_____Estranho!
_____O que foi George?- perguntou o prefeito.
_____Não sei!...Está acontecendo alguma coisa, senhor! Está sim! Terrível, por sinal!! Parece aumentar a cada passo que dou. Premonição revel! O que será isto? O quê?
_____Acalme-se!- acudiu assustado o prefeito. Deve ser cansaço...você trabalhou muito esses dias, foram longos períodos de negociações com o governador...Deve ser estafa. É, deve ser!..
Duas horas se foram...
George chegou em sua casa, uma bela mansão, situada à região oeste da cidade. Ao entrar, deu-se ,de frente ,com a vasta solidão que assombrava cada corredor e cômodo daquele palacete. Desesperado, procurou sua esposa.
Não estava! Algo continuava lhe crucificando . A premonição não o deixava, parecia querer levá-lo à loucura. Gritou pela empregada. Esta logo o atendeu.
_____Onde está Catharine, minha esposa? Disse onde iria? Diga-me!
_____O senhor ,realmente, não sabe?- ironizou a criada.
_____Claro que não, caso contrário, não estaria aqui, postado diante de uma qualquer como você...Agora fale, onde está Catharine? Fale!
_____No cemitério, enterrando o corpo de sua filha, ou não sabia?
_____Que petulância é esta? Com quem pensa estar falando? Talvez com uma destas criaturas com quem você anda... agora fora daqui...Fora!!! Antes que minha ira se converta em violência.
_____Não!- desafiou a mucama.
_____Era o que faltava. Eu, político assíduo com os compromissos nacionalistas , defensor nato da Constituição Federal, ser afrontado verbalmente , logo por uma filha da ralé , insignificante peça da falha humana. Hum! Era o que me faltava! Saia daqui! Já!
_____Não fale assim com ela, se é comigo que deseja, aqui estou!
A entrada de Catharine na sala de recepção fora a mais imprevisível já vista. A ira era o principal elo que envolvia estas duas pessoas neste momento. Com a face úmida, aproximou-se do vereador. Olhou-o profundamente mas nada expressou. Encolerizado com a coragem de sua esposa, George também nada falou, pelo contrário, sentou-se em uma poltrona e lá ficou longos segundos, aguardava uma explicação àquela atitude repentina. Como esta permaneceu em silêncio, resolveu arriscar dizer alguma coisa.
____Se continuar a assustar as pessoas, levá-las à ira, perderá essa pose nobre que tanto defende. Hum! Deplorável!! Coisa de gente pobre, leviana, insensível! Incompatível com o nosso padrão de vida...
_____Nem tanto quanto pensa, George! Há maior insensibilidade do que abandonar a esposa durante o enterro da própria filha?! Há? Claro que não! Ó meu senhor, audaciosas são as suas declarações; pena, não passarem de simples fuga de um homem que abandonou a família durante a perda de um ente querido; para viajar à Capital , buscar apoio para se eleger prefeito da cidade! É, o que não faz o homem pelo poder? Mata, rouba, estupra, violenta, e no mais, esquece a filha no leito em que era invadida por uma leucemia...A menina morreu suplicando sua presença e onde estava, senhor meu? Em Porto Alegre! Conseguiu muito dinheiro para fascinar o povo e conquistar os votos que precisava para elegê-lo “dono da cidade”? Estou estarrecida... ainda ouço Flona gritar seu nome! Por que fez isso com ela...comigo? Por que nos odeia tanto? Por quê? Não se arrepende do que fez?
_____Arrependimento!!! Oh Catharine, deixe disso...Não tenho do que me arrepender...todos nós sabíamos que Flona morreria; era certo...Estava tomada pelo câncer! Eu não poderia fazer mais nada por ela .Nada! O que tinha de fazer, eu já fiz! Eu não odeio ninguém.. talvez eu seja até mais puro que Deus!
_____...mais puro que DEUS?- ironizou Catharine.
_____Você não entende, Flona estava entregue aos braços da morte, o que eu poderia fazer para evitar essa fatalidade? Sou tão mortal quanto você!
_____E onde está sua “pureza divina”?
Impressionado com a agilidade intelectiva da mulher, abaixou a cabeça e devolveu a resposta como se fosse vítima da situação.
_____Pare com essa ironia! Entenda, pela nossa filha eu não poderia mover mais um dedo; pelo povo, ainda posso fazer. Veja que bom, logo terão tratamento de primeira no novo Centro de Saúde, com atendimento decente, bem diferente do Hospital Municipal, uma vergonha à cidade. Isso não é bom? Tá, posso ter errado em não ter ficado contigo, auxiliando-a nesta difícil fase de nossas vidas...
_____...nossas vidas? Que ironia!
_____Nossas vidas sim, também estou sofrendo, mas veja pelo lado bom: perdemos uma filha, mas ganharemos novas vidas, que antes estariam condenadas à morte como ela...
_____...Pare com isso, George! Pare com esse cinismo! Pare!! Flona não merece isso...deixe-a descansar em paz...Deixe-a! Você é um...um...monstro!!!
E desabou a chorar.
_____Você nunca amou ninguém. Nunca! Nem quando nos casamos existia amor; tudo foi pelo interesse, pelo meu dinheiro, este mal que me persegue por esses longos trinta anos. Como pode ser tão frio? Flona não merecia esse desprezo, não merecia...não merecia! Espero que um dia, cedo ou tarde, possa reconhecer seu erro e corrigi-lo da melhor maneira possível...que o remorso não o coma até lá!..
_____O povo está acima de qualquer interesse, de qualquer problema familiar !- repetiu George ,duas vezes.
_____O poder está acima dos verdadeiros interesses, não o povo; esta gente simples que continuará morrendo mesmo com a inauguração deste Centro de Saúde. Neste país nada muda! Isso é conversa de político, basta ver o que você faz com a Jurupoca, nossa empregada. Ela é do povo, por que não a trata com respeito? Por que ainda não chegou o dia da eleição, não é ?O poder, como falei, rege as leis deste país cretino, desgastando nossos sonhos e nossa esperança... Vou lhe dar um aviso: “a hipocrisia é um veneno, quando ingerida em altas doses, o efeito é macabro”! Pense nisso! Agora preciso me deitar, estou cansada.
Estava recolhendo a bolsa deixada sobre a mesa de vidro, quando pela cintura foi agarrada e sufocada, sendo jogada em seguida contra a parede. Tomado por uma expressão doentia, o vereador a olhou rapidamente e depois subiu as escadarias ,como se nada houvesse acontecido. Catharine- longe de voltar a ser a dama dos saraus e chás beneficentes - apoiou-se à parede, mas tal fora a intensidade do pranto, que, pouco a pouco, esmoreceu e caiu. Desfalecida, foi socorrida por Joaquim, o motorista da casa, que a conduziu ao seu rústico e macilento quartinho .

II
O simples motorista aquentou-a no próprio peito, fazendo com que o vazio que morava em seu coração fosse, pelo menos, por um instante, sucumbido. Desde que chegou à mansão, quando teve a alegria de vê-la pela primeira vez, sentiu que ela seria aquela que o completaria como homem e o faria viver as maiores aventuras em busca da felicidade. Tinha certeza, amava-a mais do que o ar que respirava... Queria poder tê-la nos braços, amá-la de verdade, sem medo de que isso fosse um erro, algo discriminado por essa sociedade tão cruel. Por mais que fantasiasse , no íntimo sabia, esse amor jamais seria possível! A diferença de classe entre ambos era incomensurável! Ele, pobre , filho da ralé, inculto, sem ambições; ela, uma dama da sociedade, invejada por todos, fina, educada. Se tudo isso pudesse ser mudado, se tivesse uma oportunidade de tocar seus lábios aos dela ou mesmo ouvir de sua boca um simples elogio...Deus meu! Seria fatal, seu coração não agüentaria !.. Como George poderia destratar uma rosa como essa? Como poderia não valorizar aquela cujos olhos lhe substituem o sol em tempos de eclipse? Como?
Com a corrente sangüínea explodindo, atreveu-se a violar as leis da moralidade – sem medir conseqüências – ao tocá-la na face e beijá-la de leve. Mesmo trêmulo, ousou sussurrar-lhe ao ouvido:
_____Se Deus permitisse, queria tê-la somente para mim. Seria só minha! Só minha.. Viveríamos felizes, longe dessa agonia que nos faz vítima da sociedade e de nós mesmos...
Continuou a declaração, tentando conter o choro que já ameaçava tomar-lhe a face .
_____ Oh Catharine, não vivo mais, apenas caminho. Estou morrendo! Quanta é a solidão, quanto é o meu amor, meu carinho por ti...Meu...Deus!!! Livre-me dessa dor, dessa maldição! Sendo mulher casada, estamos tão distante em todos os aspectos, ainda assim, continuo amando-a mais do que tudo nesta vida...Não agüento mais!!! Tudo está desmoronando ao meu redor! Não consigo viver sem você...não consigo...Maldição! Só me resta a mort...
Minutos depois, ao recobrar os sentidos, ajudada por Joaquim, Catharine retornou à mansão, apesar dos enormes constrangimentos que isso lhe causaria...


III
No dia seguinte...
Irritado com as exigências matrimoniais feitas pela esposa, George se refugiou no jardim. Fez valer seus conhecimentos em botânica, dando instruções modernas ao jardineiro quanto à manutenção e o cultivo das plantas, principalmente, as ameaçadas de extinção, chamariz do enorme jardim.
O sol estava no centro de si mesmo, quando o telefone tocou. Atendeu Jurupoca, a mucama. A ligação era para o vereador. O prefeito o convocava para uma reunião extraordinária, em que seriam acertados os últimos detalhes da coligação partidária, responsável ( e há dúvida?) pela reestruturação dos fracos pilares que sustentavam a política administrativa de Vila dos Princípios.
Disse à mucama, adentrando o automóvel:
_____Diga à Catharine, que assim que eu voltar, não aceitarei sua ausência. Quero vê-la mais deslumbrante e atraente do que nunca! A contradição desta ordem, levar-me-á a tomar atitudes mais drásticas e violentas do que as de ontem.

IV
Catharine levantou às l3 horas. Sentou-se em um sofá e chorou. Estava com a foto da filha, Flona Dumont, nas mãos. Não conseguia esquecê-la, era a primogênita. A leucemia a levara, mas sua presença insistia viver dentro dela. Como uma chama , queimava-lhe o coração, sufocava-a de dor , medo, revolta.
Do lado de fora do casarão, a brisa fria e zangada batia no semblante atordoado de Joaquim, fazendo-o refletir sua terrível suscetibilidade diante da situação amorosa em que se encontrava. Sentado nas muretas do jardim, tramava uma forma de poupar-lhe desta infinita facada chamada “amor”.
O medo de um dia vir a ser escravo completo desse “vírus” era o que o repelia - ainda que inconscientemente- da beleza audaz e veemente de Catharine. Tinha plena consciência deste problema e sabia, pelo menos intrinsecamente, que era incapaz de mudar os rumos dessa trama.
A volúpia consumia-o como os tumores da lepra. Macambúzio, arrastou-se até a piscina, do outro lado da casa. Olhando o céu, expressou:
_____Ela é minha deusa e eu, somente seu criado! O que me vale um obrigado se eu poderia ter dela muito mais do que isso? Aquele seu intenso fogaréu, poderia aquecer minha alma durante as longas noites de inverno...O que falo? Meu Deus, estou enlouquecendo! Estou! Prefiro morrer a viver esta estagnação de sentimentos; prefiro morrer a ver minha força desfalecida nos profundos buracos da depressão; prefiro morrer esperançoso de que um dia, em qualquer lugar deste mundo, desta galáxia, seremos únicos, nascido um para completar o outro...Prefiro...
Retirando um punhal do bolso da calça, levou-o em direção ao corroído coração. Antes de despedaçá-lo, perpetuou:
_____Eu sempre a amarei! E é em nome desse enlouquecido amor que me entrego a este ato insano, sem volta, não digno de repreensão . Se um dia ela olhar para o céu, lá estarei, queimando em saudades, pronto para atender a um simples capricho seu. Cumpre-se dessa forma a profecia de que esta platônica paixão seria minha própria morte...
Lágrima quente despencou-lhe da pálpebra esquerda, levando sua alma ao desespero. Decidido, deu início ao suicídio. Se houver alguém contrário a esse ato: fale agora ou cale-se para sempre!
E houve!
A magia do amor é incompreensível , até mesmo para os aclamados seres de pensamento futurista, e para a comprovação dessa afirmação, no exato momento da execução , ela apareceu.
Catharine Dumont, aquela mulher - há pouco mortificada pela grosseria do esposo- linda e encantadora, estava lá, postada somente a alguns passos. Seus trajes de linho balançavam incessantes com a forte aura desprendida do trono celestial , enviada para completar de forma ideal a essência clássica dessa cena.
Aproximou-se, paulatinamente , do já arrependido motorista. A face- mesmo castigada pela violência do vereador- emitia o brilho tocante e maravilhoso do renascer espiritual. Os lábios, quentes e desejosos, liberavam o hálito gostoso e sensual, atiçando os irrefreados instintos da carne.
Disse-lhe somente duas ou três palavras, todavia, suficientes para acreditar-se que um dia- cedo ou tarde, neste mundo ou no outro, onde quer que seja- o amor superará barreiras, destruirá preconceitos e enlaçará pessoas, muitas vezes, aparentemente, desiguais em tudo.
_____EU TE AMO!..

V
Depois do jantar, Catharine recolheu-se à biblioteca, de onde somente saiu para recepcionar o malquisto esposo.
George traçou o rol de entrada, subiu as escadarias e isolou-se em seu aposento, desprezando a mulher que o havia esperado.
Seu gesto, no mínimo desumano, resultou na abertura de uma enorme cratera no coração desta dama, que, deprimida, apenas arfou. Sinal de que a morte desse casamento de interesses, cujo passado um dia conheceremos, se aproximava...
Isso inspirava e alimentava, ainda que oculto, o amor proibido de Joaquim, o qual se construía, ausente de atos físicos, mas repleto de fantasias e ardentes desejos...
Para aliviar o bombardeado coração, Catharine foi em direção ao jardim. Lá permaneceu 30 minutos.
O sereno banhava-lhe a beleza, ressaltando-lhe a vivacidade outrora apagada. A lua iluminava a face envelhecida pelo sofrimento, presenteando-a com o poder do espírito e o fortalecimento do corpo e da mente.
George acompanhava-a , através das brechas da janela do quarto, tentava deduzir qual seria seu próximo passo.
Ela estava macilenta, atordoada e como consolo, teria os vistosos braços da madrugada, que não ousaram deixá-la momento algum.
Esse capítulo poderia ser considerado a Hégira dos anos 90. Ela fora humilhada pelo esposo, agredida fisicamente, e para suportar tudo isso, refugiara-se nos braços do motorista e nas entranhas do extenso universo introspectivo, de onde sairia para exigir justiça pelo que seu esposo lhe fizera.
Catharine, frágil mulher da sociedade capitalista, sonhadora, traumatizada com a perda da filha , com a brutalidade do esposo e com o esfacelamento do matrimônio, diga-se de passagem, costurado todos esses anos por interesse , nunca hesitaria declinar-se aos apelos de George. Se hoje o afronta, ainda que verbalmente, sabemos , é por Flona, exclusivamente por ela, e não por si. Afinal, ama-o muito, por isso o comprou e o fez ser o que hoje é, inclusive no que se refere ao comportamento.
A vida às vezes não é um conto de fadas e nem todos os contos são de fadas!
Retornando ao aposento de George o encontramos decaído ao colchão . Aflito, vasculhava o próprio coração. Almejava encontrar a coragem que precisava para ir buscá-la no jardim , dizer-lhe quão forte eram as flâmulas de seu amor, estando disposto a enterrar o que se passou, desde que ela o aceitasse novamente como seu marido.
Este homem, como qualquer outro, quando impulsionado pelo amor , é capaz de renunciar ao orgulho, ao machismo desenfreado, à doutrinação social, e entregar-se aos braços daquela, cujo coração dilata e anseia, só tranqüilizado com o orgasmo e com a satisfação da carne e do espírito.
Essa mudança fora principiada pelo medo que sentira ao perceber que ficaria sozinho, sem ninguém para acompanhá-lo pelo mundo afora, durante os longos anos que viriam...Agora nunca se sabe se o dinheiro e a política o deixariam manter-se nessa condição por muito tempo. Vindo de uma família humilde e desestruturada, o único desejo desse mancebo era o dinheiro, o vil metal, aquela peça de troca que o permitiria ter tudo e todos, ser dono do Céu e da terra. A ambição descomunal o impedia de ver o quanto Catharine o amava e o queria. Instável, o vereador não conseguia discernir o dinheiro do poder, o amor do ódio, a vida da morte, e quando o fazia, não era prudente! Seu casamento estava em ruínas, a sensibilidade em extinção! Estava tão cego que nem a própria filha conseguiu enxergar quando a mesma ainda arfava em dor , vitimada pelo câncer. Vê-lo agora tomado por esse nobre sentimento, misto de amor e arrependimento era, no mínimo, surpreendente!
De volta às brechas da janela, não mais a encontrou. Havia partido para algum lugar distante dali.
Apoquentado, caiu ao chão e lamentou-se . Resposta humilde de um homem arrogante e determinado- acostumado ao frutífero poder burocrático e ao demasiado descontrole sentimental - à necessidade da mudança comportamental , exigido há muito pelo quase esfacelado matrimônio.
Reconhecia a necessidade da mudança, todavia, evitaria realizá-la, afinal, mudar exige humildade, coragem de mexer em antigas feridas, o que ele não estava disposto a fazer no momento. Preferia permanecer como estava, era menos desgastante ...

VI
O galo ainda cantava, quando a neblina, densa ao extremo, resolveu dispersar, dando lugar ao sol, que preguiçosamente renascia entre as imensas montanhas da cidade.
Pouco a pouco o comércio se aquecia para mais um dia de vendas neste sistema de política neoliberal.
Retornando ao casarão, encontramos Catharine e George sentados à mesa da sala de jantar. Deliciavam-se ante às variáveis comestíveis - frutas, queijo do sul, presunto, chá de camomila, pão, mel e requeijão - apresentadas também durante o café da manhã.
O vereador observava alguns editoriais jornalísticos de um dos periódicos da cidade, enquanto degustava. Sua principal mania era o de após efetuar a leitura a um artigo, compará-lo a outro artigo de mesmo tema, só que no jornal concorrente. Catharine o observava com os olhos a correr, recuando-os quando o via álacre e desdenhoso demais.
O clima estava pesado quando ,repentinamente , modificou-se, e pelo que parece, para melhor. O diário “Tributo ao Povo” , trazia em destaque, artigo assinado pelo jornalista Cláudio Cunha - perseguido pela polícia secreta no início dos anos 70; por defender a liberdade de criação e propor a redemocratizacão do país, acabou contrariando o Ato Institucional n. 05, regime defendido a fogo e ferro por Garrastazu, Geisel e amigos. Obstrução intelectual, jamais!- elogiando o homem e político George Dumont, por sua eficiência política junto ao governador, ao conquistar o tão sonhado Centro de Saúde Escola para o município.
Um dos trechos do texto, dizia:
“...É, pela primeira vez, tive a honra de ver um político de verdade; e trabalhando!
E político trabalha? Rouba! E ladrão rouba? Quem sabe trabalha. Milagre, mas é verdade meus leitores. Vi com esses próprios olhos que a terra há de comer...e digo estar enfeitiçado por isso..
O senhor vereador George Dumont , estando em visita à Capital, conseguiu tirar do bolso do ‘corrupto’ governador, quantia necessária à construção do tão almejado Centro de Saúde Escola que, sem sombra de dúvida, beneficiará milhares de munícipes.
É , pelo menos um neste país controlado pelas lideranças corporativistas e clientelistas do sistema”.
A postura mesquinha renasceu sobre os traços fisionômicos do vereador, e sua antipatia, enfim, fora reacendida.
Catharine não deu o devido valor ao célebre acontecimento, permanecendo a degustar o vasto café.
Bem, é verdade que o seu pensamento não estava ali, mas longe...a causa desta “fuga” era interessante. Quando ouviu a confidência do amor de Joaquim e o viu buscando a morte como uma fuga precipitada, teve a certeza de que , para alguém, tinha algum valor, e isso a reanimava depois de longo período de depressão por causa do adoecimento inesperado e da morte precoce de Flona . Notou que a paixão que ele sentia era o conforto que precisava para manter-se viva e dona de si.
Bem, também o...o...amava, não com a mesma intensidade que ele, mas se levarmos em conta, sua paixão é maior que a que sente hoje por George.
O vereador, notando o desprezo, assim que terminou o café, dirigiu-lhe as seguintes palavras:
_____Minha dama...sinto não ser o dono de seu pensamento neste momento...sinto! Sinto mesmo! E sinto mais , muito mais, por não ter me parabenizado pelo artigo que saiu a respeito de minha conquista política para a cidade...É, mas como diria o poeta : “nem tudo é agradável a todos”.
Catharine olhou-o fixamente, depois retirou-se da mesa, indo ao toalete. Sentia ânsia só em ouvi-lo. Lutava, mesmo sem forças, contra a imagem daquele homem, infelizmente, seu marido.
Tinha decidido ignorá-lo. Insistia na concepção de que o poder o havia corrompido, tornando-o indigno de receber sequer um bom dia.

VII
O dia ia por onde vinha...
O relógio da sala de estar- importado da Espanha, nos seus ricos detalhes em ouro anunciava ser o apogeu das 20 horas.
O sereno caia incessante e viçoso, completando com harmonia o clima clássico desta noite de inverno que se iniciava.
A lua respirava tranqüila e maquinalmente a voluptuosidade cansada da envelhecida mulher, tentando compreendê-la neste difícil momento de sua vida.
Como uma maneira de descontração cultural, Catharine foi à saleta de música.
Ao servir-se de uma pequena dose do mais puro vinho do Porto, sentou-se na terceira poltrona do lado direito e ouviu vasta coleção de músicas clássicas. No ápice do sucesso estavam a “Cavalgada das Valquírias”, “A Primavera”, e finalmente, “Ária na Corda Sol”.
Sentia ser esta última canção, o refúgio , tão necessário ao desgastado e quase mortificado coração.
Ali permaneceu duas horas. Apesar das músicas acalmarem-na, ainda continuava depressiva. Tudo que avistava, por mais lindo que fosse, era escuro...terrível!
Desde a partida de Flona, não sentia mais nada, nem ao menos ser mulher. Perdia aos poucos o gosto por tudo, inclusive pela vida.
Tinha nojo de muita coisa. Da última vez que fez amor com George, sentiu-se a mais podre das mulheres e, para superar essa estranha sensação que lhe florescia n’alma, somente morrendo!
Perdia aos poucos a personalidade inusitada que lhe era a marca registrada desde o nascimento.
Por instante, retraiu a tez da face, como se tivesse pronta para sofrer mais uma decepção. Terminada a primeira dose do vinho, levantou-se, quando uma vertigem fatal a atacou .
Macilenta, tentou segurar-se a um pilar, debalde, caiu .
A respiração, os sentidos, as aspirações, a coragem e a própria vida, enfim, escapavam-lhe temerosos do holocausto íntimo em que virava seu coração.
Inerte, desmaiou.


VIII
Alguns minutos depois...
A pedido da mucama, chegava à mansão o médico da família, doutor Rubens Arraia. Afobado, desajeitado, correu pelas escadarias. Entrando no quarto, flagrou Joaquim debruçado sobre os ardentes e sufocados seios de Catharine.
O motorista martizava-se pelo adoecimento de sua musa. Queria poder fazer algo mais por ela, mas o quê? Simples servo , o quê poderia fazer para ajudá-la? Nem ao menos beijá-la, pois isso seria um crime. Só lhe restava o pranto, essa dura arte que usamos quando os problemas nos parecem sem soluções...
Rubens o retirou do quarto, ficando a só com ela.
Quinze minutos depois... Sala de recepção.
Dizia o doutor à mucama e ao motorista:
_____Dona Catharine Dumont estará em observação pelas próximas vinte quatro horas, ficam dessa forma, proibidas visitas de amigos e parentes. Quero vê-la recuperada o mais breve possível e conto com a ajuda de vocês...
Aflito, interveio o motorista:
_____O que tem ela doutor?
_____É difícil responder no momento, Joaquim...pelos sintomas iniciais, suspeito de depressão. Só pode! Depois da morte de Flona, Catharine isolou-se do mundo, prendendo-se a lembranças muito fortes que a fazem entrar num ciclo de dor incomensurável. Aquela mulher, invejada por toda a sociedade, que dava charme às festas do salão dos Princípios, já não existe mais; aliás, em seu lugar, encontramos uma outra, incapaz de ser alguém ou alguma coisa, incapaz de voltar a amar e ser amada. Catharine, se nada fizermos, estará condenada ao sofrimento e a morte. Por isso, ela não deve ser perturbada, em hipótese alguma, nem mesmo por seu respeitável e nobre esposo, senhor vereador George Dumont... aproveitando a situação, onde estará este cavalheiro?
_____Viajou para Vila Bonita , em busca de apoio ao seu projeto de refortalecimento do Comércio Comum Regional (COMCOREG). Mais um trunfo em sua desesperada luta pela cadeira de chefe do executivo do município. Voltará assim que o sol raiar. Mais alguma coisa, senhor Rubens Arraia?- concluiu a criada.
_____Não, já basta! Como sempre, ele nunca está presente na alegria e na dor desta mulher! Hum!!! Inacreditável! Agora, não esqueçam de minhas instruções, é importante no processo de reestruturação orgânica e psicológica de Dona Catharine Dumont. Ah! Ia me esquecendo...Joaquim, poupe sua emoção e mesmo seus desejos íntimos, evitando cair sobre ela, como o ocorrido há pouco. Poderá trazer profundas seqüelas a ambos. Não se esqueça, o.k.?
_____Sim senhor!
_____Pois não! Pois não! Deixe-me ir! Não há mais o que fazer senão aguardar seu restabelecimento. Qualquer coisa , basta ligarem. Até!


IX
Amanheceu...
Ao abrir os grandes olhos, Catharine recebeu as boas-vindas do astro sol, que avançava no cumprimento de suas atividades.
Ao arrastar-se pela cama, sentiu alguma coisa tocá-la. . Receosa, puxou devagar as longas pontas do lençol de cetim e sorriu, aliviada, vendo Joaquim adormecido nos pé da cama. Ele a acompanhou durante toda a noite, dispondo do precioso tempo de descanso.
Ela valia para ele mais do que imaginava!!! O amor pode ter seus defeitos, mas é o único remédio capaz de curar sem dor e trauma.
Comovida? Estava sim! Não acreditava que aquele homem tinha tido a coragem de abandonar a tudo, a todos e a si mesmo, somente para lhe cuidar . Inacreditável!
E o que não faz uma paixão? Matar e morrer? As duas coisas!
A flor da existência de Catharine “parecia” novamente ter desabrochado, exalando perfume, fazendo por dominar, ou mesmo escravizar este benquisto homem, presente do céu a sua reestabilizacão psíquica. Pena, aparentara desabrochar , no fundo estava maculada pelo sofrimento.
Sentou-se ao lado de Joaquim e o visualizou. Tentou tocá-lo, infelizmente não teve coragem. Seu casamento, ainda que depreciado, proibia-a deste ato impuro. Mesmo que seu instinto fosse incessante, incontrolável, insaciável, não ousaria trair o vereador.
Isso não fazia parte de sua conduta. Apesar da carência afetiva, preferia aguardar o momento adequado e saciá-lo nos braços do esposo que o dinheiro lhe dera. O dinheiro, personagem atroz desta trama, como sempre, interagia feito deus na vida das personagens, tentando manipulá-las da melhor maneira possível. E o casamento de George e Catharine era uma prova disso.
Leonardo Dumont, pai de Catharine, jamais pensaria que o rapaz que escolhera para ser seu genro, fosse tão ganancioso, a ponto de exterminar a própria sensibilidade em prol da promoção pessoal. Quando o comprou, tinha em mente fazê-lo grande, mas não à custa do sofrimento de sua filha e neta.
Se estivesse vivo, na certa, teria expulso George de sua família e assumido o controle da casa. Catharine não estaria neste estado depressivo, pelo contrário, bela como só ela, desfilaria pelos palcos da sociedade gaúcha, destilando o ar da graça e da elegância.
Apesar de perfeita, uma situação impossível!


X
Cindo dias depois....
Catedral São Jerônimo dos aflitos...
O padre José Mateus - formado recentemente pelo seminário de Porto Alegre - conduzia missa em memória de Flona Dumont.
Lá estavam políticos, plebeus e até mesmo os abastados da sociedade. Para espanto, o encontro destas tão diferentes classes sociais fora calma e sem maiores seqüelas.
Durante o longo período de orações, Catharine teve nova vertigem, só que desta vez, acompanhada de alucinação.
“Ajoelhada, viu uma das estátuas laterais transformar-se numa mulher, indo ao seu encontro.
Flona! Era ela! Sim!!! Era...mais linda e graciosa do que nunca.
Sorria a menina, tentando chamá-la. Precisava dizer-lhe coisas importantes!!! Mas Catharine, amedrontada, perdeu de vez o controle psíquico e , sem prévia comunicação, retirou-se do âmbito, causando estranheza aos amigos e parentes que ali estavam “.
Vendo-a sumir entre as escadarias, o vereador ali permaneceu, tentando - com a máscara que usava- elevar aos demais a credibilidade que se abalara com a atitude repentina de sua esposa.
George sentia-se massacrado a cada vez que um olhar indiferente o encontrava e isso o enraivecia.
Desvairada, Catharine entrou na limusine, blaterando:
_____Vamos! Vamos Joaquim! Vamos! Por favor!.. Eu ordeno...vamos! Eu tenho que sair daqui agora...por favor, vamos!
Levou as mãos à face, dizendo:
_____Meu Deus...estou enlouquecendo! Estou!...Vamos Joaquim, dê partida neste carro...vamos! Por favor...
Joaquim percebeu ser sua dama inspiradora, neste momento, a escultura do próprio medo.
Trêmula, abriu a bolsa e retirou um pequeno retrato. Era de Flona quando ainda bebê.
“A menina estava linda naquela roupinha de linho. Com muito charme, posava para foto nos braços do padrinho, Rogério Dumont. Era o dia de seu batismo. Catharine e George assistiam àquela cena com muito orgulho e carinho. Rogério, irmão de Leonardo, muito contente, encomendara um belo churrasco e todos ficaram a tarde inteira na maior festança, bebendo e comendo à vontade...”
Toda alegria dessa foto foi-se com o vento, hoje aquela extrovertida mulher, decaía ao último degrau da lamúria.
Dúvidas acerca do aparecimento de Flona? Muitas!
Explicações? Poucas!

XI
A seara por onde Joaquim conduzia o automóvel era extensa ,volumosa e se espremia inadequadamente nas encostas da rodovia. A visão da região era bucólica e tipicamente trovadoresca. Homens de família conduzindo o gado, outros roçando a soja - alavanca do ainda crescente desenvolvimento desta terra sem sonhos e sem “lei” .
Ao contornarem a rotatória que ligava o norte ao oeste, chegaram ao casarão.
Apeou a mulher, dizendo ao motorista:
_____Pode ir, não preciso mais de seus serviços, Joaquim!.. Não, espere um pouco. Saiba, sou grata por sua preocupação para com minha pessoa...Você é muito importante pra mim! É, sem sua amizade, carinho e afeto eu não seria nada! Nada!...Obrigado por tudo, meu...amigo. AMIGO! Se continuo vivendo, tenha certeza, você tem grande participação nisso...É..!
Absorveu pequena quantidade de ar, dando seqüência ao diálogo:
_____...Obrigado!
Com os olhos contornados por lágrimas, fechou a porta do carro e a passos lentos se foi...
Abrindo a porta de entrada do casarão, a primeira pessoa a avistar foi a simplória mucama, que aos berros tentava informá-la do grave fato acontecido instantes antes de sua chegada ao casarão.
_____Senhora! Ó minha senhora, sinto muito...muito!
_____Do que você está falando? - perguntou Catharine ainda mais apreensiva.
_____...Senhora! Senhora minha, há pouco fui informada pelo delegado Chico Santinho, do 3º Distrito Policial, de um crime praticamente imperdoável...
Interveio a mulher:
_____Fale! Que crime é este? Quem morreu? Fale criatura, fale!
_____Ninguém! Ninguém morreu! Senhora...é muito mais grave do que realmente pensa....é gravíssimo...!
_____Fale! Falllleeeeee!!!!!!- Exigiu severamente Catharine.
_____A sepultura de Flona foi arrombada durante a noite passada...E não há vestígios do criminoso. Seu corpinho, graças a Deus, foi encontrado a alguns metros dali...Quem poderá ter feito isso? Quem será o desumano capaz de perturbar o sono eterno de nossa pequena menina?
_____Tem certeza do que diz, Jurupoca?
_____Absoluta, senhora! E hei de cortar minha língua se provado o contrário.
Catharine não tinha mais força para reagir. Quedava, sentada em uma das poltronas do sofá, digerindo os enigmas que ousavam arrastá-la de vez a uma catastrófica crise emocional.
Comovida com o estado de sua senhora, a mucama acariciou-lhe os longos cabelos negros, dizendo palavras de consolo. Cabisbaixa, Catharine apenas sussurrou:
_____Chame o doutor Rubens Arraia...ppor favor!!!...
Joaquim acompanhava-a do rol de entrada, temendo que ela também buscasse a morte como forma de saldar sua enorme dívida com a dor e a amargura.
Outrora rainha das saudosas festanças ocorridas no nobre salão dos Princípios, Catharine agora se via só diante dos muitos obstáculos que lhe premiava o destino- este cruel personagem que nos revela, dia a dia, a continuidade de nossas vidas.
Queria Joaquim confortá-la nos largos e musculosos braços, pena o destino estar se opondo sadicamente ao caminho de ambos, impedindo o que poderia ser aclamado como o novo romance - fonte do fortalecimento físico e espiritual de duas pessoas cansadas de reverenciarem o conflito e repelirem o calor subtil e ardente do amor.

XII
Doutor Rubens Arraia entrou no aposento de D. Catharine com sua tradicional maleta azul. Vendo-a depressiva, aproximou-se e num gesto comovente, perguntou:
_____D. Catharine, o que a senhora tem? Está tão triste, decaída, como se tivesse perdida em sua própria vida!
Ela rapidamente o visualizou. Com os olhos dilatados pelo pranto, perguntou:
_____Será que vale mesmo apenas viver neste mundo tão...tão tenebroso?
_____Por que me pergunta isso? A vida é tão bela, tão...
_____...triste! Gostaria de pensar assim como você, mas hoje, aqui nesta triste alcova, esquecida, vejo o quanto é triste e difícil viver.
Olhando-a mui forte, Rubens perguntou :
_____O que a faz pensar assim, D. Catharine?
_____Tudo!!! A minha vida não faz mais sentido. Viver para mim se tornou um pesadelo cuja dimensão extrapola até mesmo os limites da fantasia. Não tenho mais esperança de nada! Tudo ao meu redor desabou...Estou sozinha...não vê, minha única companheira é a solidão, mal que leva ao desespero e a morte. Viver é tão belo assim, doutor?
_____Onde está seu esposo? A senhora...
Cabisbaixa, a filha de Leonardo Dumont suspirou e respondeu numa voz tomada pela emoção:
_____Cuidando de seus interesses! É só nisso que ele pensa...só! Eu não agüento mais seu desprezo...parece que não existo! Sua ambição superou todas as escalas da demasia!!! Se não fosse o meu bondoso motorista, não sei o que seria de mim...Estou morrendo! E nada posso fazer para impedir! Nada! Ajude-me doutor! O que fazer?
_____Bem, você sabe!
_____Não! Não sei!
_____Catharine, eu a conheço desde pequena, tenho-a como uma filha e digo mais, desde que casou-se com George, não teve mais sossego. Por que não se separa? Não adianta mais ficar sofrendo.. você não merece isso! Se não tem coragem, ao menos faça isso por sua filha, a quem ele desprezou e de forma desumana , naquela tarde, dia de seu enterro. Filha, chegou a hora de lutar...começar , quem sabe , uma nova vida, diferente dessa em que vive. Se não fizer nada para mudar o caminho o qual percorri, cairá em um abismo, cuja volta será impossível!
_____Eu...não posso, senhor!
_____E por que não? Será pelo escândalo que causará? Isso vale mais do que a felicidade que terá ao separar-se desse...desse...bem, desse senhor?
_____Vá embora doutor! Precisa partir, logo George chegará e terei de enfrentá-lo...Vá!
_____Catharine, por que foge desse problema? Pensa resolvê-lo de que maneira? Onde pensa chegar? Está morrendo, como disse há pouco, e mesmo assim , prefere sustentar o falso casório, e a troco do quê? O que teme?
_____Eu vi minha filha!- disse ela, mudando de assunto.
_____O quê?- perguntou assustado o doutor.
_____Sim! Ela estava na igreja e queria me dizer alguma coisa, mas fui covarde e corri de lá...Estava linda! Como sempre! Parecia uma boneca, envolta a uma forte luz celestial. Sorria com aquele doce olhar parado em mim....
Interveio o doutor:
_____...do que você está falando? Eu não a compreendo! Flona, na igreja?
_____Sim!
Doutor Rubens Arraia não se conformava em vê-la naquele estado deprimente. Deu-lhe um antidepressivo.
_____Doutor Rubens, eu estou morrendo, não estou?
Rubens sabia que estava, entretanto, preferiu mudar a conduta ante aos acontecimentos.
_____Não diga bobagens! Está mais viva do que nunca!
_____Não! Não estou! Vou morrer, sei disso, sinto a morte se aproximando...ouço sua carruagem...levar-me-á ao encontro de minha filhinha...
_____Deixe disso, por favor! Não fale assim, envergonha a memória de seu pai...Ele sempre achou você forte o suficiente para lutar em prol dos próprios objetivos; onde estiver, estará sofrendo em vê-la fraca e amargurada como está. Incapaz até mesmo de lutar pela própria vida.
_____...Doutor, me ajude!
Ele a colocou contra o peito, dizendo:
_____Claro! Farei algo para tirá-la dessa dor...prometo!
_____Doutor, minha filhinha apareceu para me dizer que seu túmulo havia sido arrombado, não acredita?
Rubens olhou-a profundamente, mas nada expressou. Tinha pena em vê-la naquele triste estado. Pegou a maleta, beijou-a na testa e partiu. Não agüentaria ver a filha de seu melhor amigo diluindo-se daquele jeito. Enquanto dirigia o carro, matutava uma maneira de ajudá-la.
Mas fazer o quê? Ela era a única capaz de resolver todos os problemas, ainda sim, resistia fortemente à separação. Por que será? O que a fazia presa a este casamento cruel se não a aliança? E por que não destituí-la em troca de um futuro melhor ?
XIII
Na cozinha da mansão...
A conselho do doutor, Jurupoca preparava uma jarra de chá de camomila para Catharine, enquanto conversava com Joaquim.
_____...Sabe Joaquim, D. Catharine sempre foi frágil, talvez pelo fato de sua mãe, D. Venusa, tê-la deixado com o pai e fugido com o amante pelo mundo afora... Coitadinha ! Quando penso o quanto essa menina já sofreu, me dá uma dor no coração...
_____D. Catharine então não teve mãe?
_____Até poderia ter tido, mas aquele brutamontes do seu pai não deixou que D. Venusa a visse mais, e prometeu, caso ela aparecesse em suas terras, escorraçá-la a pauladas. Seu Leonardo era como George, só pensava no poder, esquecendo a mulher. Esta, muito mais esperta que a filha ,quando pode, na primeira oportunidade, o chifrou. Ela é a cara de D. Catharine, somente diferenciada nas atitudes... D. Venusa era forte, tinha vontade de vencer na vida, ser feliz, não se sujeitando às arbitrariedades do matrimônio. Apanhava muito de Leonardo, todavia, não mudava as decisões que volta e meia tomava. Era atrevida como o capeta!
_____D. Venusa!..
_____Aquilo era patroa, Joaquim. Defendia os criados com a própria vida, e digo mais, se ela estivesse viva, George seria tocado daqui a balas...
_____Por que, ela morreu?
_____Não sei! O povo daqui diz que sim. Muitos dizem que ela foi morta pelo amante, depois, quando ele se enjoou dela, porém, isso é boato, e boato não se leva em conta, o povo fala demais!
_____Você mora há muito tempo aqui?
_____Cheguei quando D. Catharine estava com apenas um mês de vida, e tudo isso que lhe falei, tenha certeza, foi assistido por esses olhos que a terra há de comer. O casamento de George e D. Catharine é reprise ao de D. Venusa e Leonardo, apenas com pequenas mudanças.
_____Eu estou preocupado com D. Catharine, Jurupoca, mas o que fazer para ajudá-la?
_____Conter seu coração já é o suficiente...
_____Hãã? – assustou-se o motorista.
_____Isso mesmo Joaquim!
_____Mas...mas...bem, deixa prá lá...você tem razão...
_____Se tenho!. Agora estou preocupada com o senhor Rubens Arraia. Ele está muito próximo de nossa patroa e isso não é bom.
_____Por quê? - questionou assustado o motorista.
_____Porque sim! Esse medicozinho de araque é um salafrário daqueles...lembro-me bem daquele dia em que tentou seduzir D. Venusa em seu aposento, quando doutor Leonardo encontrava-se fora da cidade. Ela o “venceu” , entretanto, como vingança, fez a cabeça de seu Leonardo ao dizer que ela o estava traindo, e realmente estava, com o peão da fazenda. Acha? Leonardo, enlouquecido, prometeu matá-la, não o fez porque eu o adverti dessa façanha...após se acalmar, apenas a expulsou. D. Venusa queria levar D. Catharine junto, só que este não deixou. Doutor Rubens, satisfeito, sócio nas fazendas de Leonardo, saiu pela cidade esbanjando o dinheiro que a riqueza lhe proporcionava.
_____E como ficaram sócios?
_____Isso é uma longa história. Seu Leonardo, ao chegar acompanhado de D. Venusa em Vila dos Princípios, por volta de l955, não tinha nada. A muito custo comprou uma casinha na periferia da cidade. Começou trabalhando como assistente na farmácia de seu Rubens, que notando grandes habilidades no novo funcionário, comprou uma terrinha e o colocou como proprietário, na condição de que trabalhasse para ele, plantando soja- cultura na época bem apreciada, rendendo lucros exorbitantes. Em 5 anos, já eram conhecidos como os propulsores da economia local, só que tudo que cresce esbarra em alguém ou alguma coisa, e isso não deixaria de acontecer nesta história, não é?
Doutor Leonardo incomodou a fortuna dos Alfman - família também produtora da soja, justamente por isso, travaram uma luta pelo poder econômico da cidade. Isso aqui parecia cena de bang-bang. Doutor Rubens Arraia, Leonardo e muitos capangas, adentraram a fazenda de seu Ricardo Alfman, matando toda a família. Apossaram-se de suas terras, e aí você me pergunta: onde estava a lei que não os puniu com a prisão? Aqui não existiam princípios, não existia lei! Quem mandava eram eles, e ai de quem os afrontasse, poderia contar nos dedos, não teria 24 horas de vida. Em meio a esse clima, D. Catharine foi crescendo. Via seu pai cada vez mais rico, destruindo famílias e bairros inteiros. Em poucos anos, lá estavam eles, os donos da soja. Invejados no município e em toda região. Mas as leis de Deus tardam mas não falham. Quando D. Catharine havia completado 15 anos, Leonardo, como o fez doutor Rubens, tentou cantar a mulher de um compadre distante, pra quê, morreu com uma bala na cabeça, antes mesmo de tentar buscar um meio de se defender. Esse compadre, um tal de Marcozinho do Mato, foi preso dias depois, confessando a autoria do crime e o motivo que o levou a cometer a respectiva barbárie. Foi absolvido pelo Tribunal , e depois disso, nunca mais ninguém ouviu falar dele...Essa é a origem de toda essa desgraça que cerca há anos a alma desta família...Mas a história de seu Leonardo não acaba aqui não. Depois que o enterraram, abriram seu testamento, e para o espanto de todos, Rubens não poderia meter a mão na parte que lhe cabia na sociedade sem a permissão de D. Catharine , que buscava nos braços do homem que o pai lhe comprou dias antes de morrer, o conforto necessário. George Dumont, eleito seu tutor, herdou tudo até que ela completasse a maioridade. Doutor Rubens, homem que lhe confiou toda vida, indignado, partiu para Portugal, onde ficou algum tempo. Tenho certeza Joaquim, Leonardo sempre soube que Rubens havia mesmo cantado sua esposa e se vingou dessa forma ...
_____Mas hoje, depois de mais de uma década, D. Catharine devolveu-lhe aquilo que lhe era de direito, Jurupoca?
_____Isso é uma outra história Joaquim, que prefiro não contar...Tenho medo de acordar amanhã sem língua...
_____Por quê?
_____Marque o que eu digo: “Isso tudo vai acabar ainda em uma guerra”.
_____Guerra? - Interrogou assustado Joaquim.
_____D. Venusa, sinto isso, voltará!
_____Hãã?!?
_____Isso mesmo , Joaquim. Passado e presente juntar-se-ão novamente, disso resultará o fim de toda essa trama folhetinesca. D. Venusa vingar-se-á desse “medicozinho” e o mesmo sucederá com D. Catharine. Quando ela se fortalecer, descontará em George a dor que vem acumulando no peito...Mortes virão!!!

XIV
Fazenda Bom Jesus do Sacramento...
O prefeito Tanaka Santuku e o vereador George Dumont cavalgavam pela mata, enquanto proseavam acerca do que D. Catharine havia feito na missa de sétimo dia, ocorrida esta manhã.
_____Catharine quase acabou com minha reputação, Tanaka. O que não dirão meus adversários? Tolo, imbecil, deixado pela própria mulher em plena missa de sétimo dia da filhota. Deus...minha campanha está arruinada, logo agora que havíamos conseguido vários pontos na disputa com Zé dos Cobres, o primeiro nas pesquisas...
Tanaka, coçando a barbicha, rasgou a face com um malicioso sorriso, dizendo:
_____Não penso dessa forma!..
_____Como não?- Perguntou George num misto de susto e desconfiança.
_____Meu caro amigo, isso é ótimo para todos nós. Mostra que Catharine não está muito bem da cabeça, podemos embargá-la psíquica e intelectivamente , e como você é o único beneficiário, herdaremos tudo. Toda a soja da região será nossa... Não precisaremos mais mendigar verbas na Capital, teremos o suficiente para vencermos qualquer Zé dos Cobres...Ganharemos essas eleições a qualquer custo, comprando ou não leitores, alterando urnas, seja lá como for, sei que venceremos!!! E aí, quando eu o fizer prefeito, juntos, se meu amigo geólogo, Dr. Paulo Emílio, estiver certo, seremos donos da maior jazida de petróleo já existente nas terras deste país...
_____Isso...bem, Catharine, coitada!..
Tanaka interveio com um baita sermão.
_____Coitada?! Não devo estar ouvindo bem. Você tem pena daquela mulher? Ela receberá o que merece, afinal, quem mandou comprá-lo ? Deixe que ela se dane! Não chegamos até aqui por pena, George. Pare com esse sentimentalismo barato...Pare!
_____Tem razão!.. Confirmou George ainda que um pouco atordoado.
_____Ótimo! Logo, logo estas terras serão nossas e teremos a maior riqueza que um homem jamais pode sonhar...
_____Esse Dr. Paulo Emílio tem certeza do que diz? Debaixo das terras de Vila dos Princípios existe mesmo uma bacia petrolífera?
_____Segundo ele, sim! E quando nos apossarmos dela, poderemos exigir muitos reais para cedê-la à exploração governamental...Enquanto todos imaginam que estamos preocupados com esse povinho e seus medíocres problemas, planejamos abocanhar a cadeira de chefe do executivo do município e usufruir de seu poder de comprar, corromper e roubar pelos próximos anos...Coisas de política! Uma arte!...

XV
O relógio da sala de estar anunciava o início do entardecer...
Catharine estava na alcova.
Chorava, acolhida à cabeceira da cama. Joaquim a espreitava , minuciosamente, pelo buraco da fechadura, quando a viu desfalecer.
Estava partindo...Morrendo!!?
Descontrolado, invadiu o lugar .
Após alguns minutos...
Vendo-o, disse ela, recobrando os sentidos:
_____Meu Joaquim...adeus!
_____Senhora!- exclamou amedrontado o motorista
_____Tenho de ir...me espera...Flora me chama...
_____Do que fala?
_____Não importa...Estava sem forças para continuar . Não importa. Perdi tudo! Não existo mais! Não! Não vivo!
_____Não! Está linda...sim, e viva, junto e aqui do meu lado.
_____O que está diante de ti foi o que a terra rejeitou por tão podre que estava.
_____Não fale isso!
_____Não tenho mais nada...
_____Tem a mim...
_____Oh, meu Joaquim...nem a ti...
_____Tem!- disse ele com os olhos mesclados em lágrimas.
_____Não!
_____Pare com isso! A senhora tem e terá a mim quando e onde quiser....Sou seu! Todo seu! D’alma ao corpo, do coração à mente! Tudo é seu! Tudo lhe pertence ! Tudo! Eu...a amo!!! Sou todo seu!...
Aproximou-se dela com o coração a galopar e a alma a gritar.
Abraçaram-se...

XVI
O sino da paróquia mais próxima badalava...
Eram 17 horas.
Mesmo vitimada pela inconstância psíquica, lá estava Catharine, sentada à mesa de vidro, na vasta varanda que outrora serviu para inspirar as cenas mais lascivas do casamento de seus progenitores. Enquanto bebericava, apreciava com desvelo os montes virgens e repletos do mais profundo verdor, que de forma fantástica, circundavam o casarão.
O olhar dessa mulher ultrapassava fronteiras inexplicáveis para expor à sociedade um pedido de socorro, ainda que muito fraco...
Habitualmente à distância, o motorista a observava, amando seus leves e supremos toques. Sua pupila intensa e efervescente, como as flâmulas da tentação. Em lábios delicados e dóceis , o sumo da laranja. Seu movimento calmo e invejável, não se igualando a de um mortal e sim ao de uma deusa.
Sim, de uma deusa!.
Ela era uma deusa. Sua alviceleste beleza dizia isso. Sua alma gritava por isso.
Sim, esta frágil criatura, a quem Deus idolatrou até conceber, era, a priori , uma deusa.
Uma deusa!
Joaquim a esculpia com os olhos ingênuos de um menino que se apaixona pela primeira namorada, em desencontro aos instintos de homem que afloravam-lhe do coração, devorando-a em cenas pecaminosas cuja carne apetecia. Era uma luta. Menino de um lado, homem de outro.
O desejo, essa febre inconteste que sentimos quando nos aproximamos daquela a quem amamos e fomos feitos, implodia-lhe todo. Seu coração estava acelerado. O pulso tórrido como a brasa. Os olhos esbugalhados, enfim, sintomas evidentes de quem ama.
Apesar das infindáveis cenas de beleza ao redor do casarão, o vírus da apreensão e da fúria insistia em habitar o quase esfacelado coração de Catharine. Os nervos, de quando em quando, rendiam-se ao desequilíbrio, isso ocorria toda vez que a imagem de Flona ousava ressurgir-lhe ante os olhos.
Para tentar retornar ao equilíbrio e à paz que há muito não sentia, resolveu refugiar-se no imenso bosque, interior da propriedade.
Desceu as escadarias da varanda, caminhou lentamente até aos domínios do verde, via o corredor à esquerda do casarão.
As folhas das árvores e o orvalho ainda não evaporado a noite anterior, levaram-na à presença da solidão.
O escapismo - antigo método dos poetas românticos para sobressaltar a luz deprimente da realidade e invadir o inspirativo mundo ficcional- foi enfim utilizado por esta alviceleste dama da paixão, da tentação e do célebre amor- que um dia, com certeza, voltará a sentir.
Eram pontualmente 18 horas...
O luar emergia dos lagos do horizonte, enquanto o sol se despedia mais uma vez daqueles que durante uma parte do dia o tiveram como o centro das atenções.
Não dando conta da hora, Catharine ali permaneceu, banhando-se nas águas de um riacho. Sua vivacidade parecia ressurgir, dando cor àquela face divina- desejo intrínseco de qualquer artista contemporâneo.
Parecia, porque na realidade, continuava a mesma mulher triste de sempre. E os secos lábios provavam isso. Era com muito esforço que conseguia pronunciar alguma palavra de esperança, de fé...
Haviam passado 4h30min. Eram 22horas e 30 minutos.
Chegava o vereador à mansão. O semblante estava rude e sarcástico, preço ao qual cobraria da volúvel mulher que ele aos poucos estava destruindo. Esta que o fez perder preciosos votos na corrida pela sucessão municipal e que o faria rico, assim que ele impetrasse ação na justiça, contestando-lhe a sanidade mental.
Na sua concepção, a violência seria uma maneira de fazê-la explicar o acontecimento da manhã. Sua compostura política estava mais que massacrada pela humilhação que passara na igreja, todavia, ela iria pagar por tudo que fizera.
Ah, isso sim! Ele não a perdoaria!
A vergonha era agora o combustível que movia esse homem doentio, capaz de violentar ou mesmo matar pelo poder e pela ganância. Estava certo o Sr. Tanaka: “...ter pena dessa coitada, por quê? Que se dane!”
Joaquim recebeu o carro das mãos do vereador e o conduziu até a garagem. Estava também preocupado com o que poderia acontecer com D. Catharine, assim que o vereador a encontrasse. Não sabia o que seria capaz de fazer para defendê-la caso visse George cometendo única e insignificante agressão.
A coruja saltou de uma árvore a outra, descrevendo no trajeto o suspense que atormentava cada um dos ilustres personagens dessa trama.
Seguiu em direção ao bosque, assim que foi avisado por Jurupoca que lá se encontrava Catharine. Cada passo que dava significava para o mórbido coração de sua esposa, o desfecho de uma história que lhe custou o último sorriso.
George sabia aonde iria finalizar a cena seguinte, entretanto, preferia ignorar, obedecendo a fúria monstruosa que lhe nascia no peito e o fazia descontrolado por causa da perda de alguns votos, se é que realmente os havia perdido.
A escassa sensibilidade é a latente prova do que o dinheiro pode fazer na vida de um homem domado pela ambição e pelo poder.
Chegou aonde ela estava.
A primeira impressão foi a mais inefável e ardente já sentida neste folhetim.
Catharine, vendo-o, disse com calma e frieza:
_____Veio para me matar, pois o faça, cumpra rigorosamente o que nos foi designado. Não o impedirei! Ordinária seria se o impedisse de praticar o que nos foi determinado pelas mãos do destino. Sabia de sua vinda e a este bosque penetrei para o preparo de minha alma- logo póstuma deste mundo materialista. Vi-me aqui como o sol descambando entre as serras...Vi-me , pelo menos uma vez, forte o suficiente para encará-lo de frente e esperar pela morte...Olhando a lua, tive a certeza de que o nosso casamento foi um erro, erro de quem achou que o dinheiro comprava tudo... Eu era tola! Eu o amava...tanto, que cheguei a implorar para que meu pai o tirasse daquela pobreza em que vivia, unicamente para ser meu. Meu! Qualquer homem em seu lugar George, daria a própria vida para ter a mulher, cuja sociedade amava e venerava...mas ambicioso, sem escrúpulos, você preferiu ignorar todo esse amor em troca do dinheiro- esse mal que carrego nas veias, não é? Ó!..
Suspirou profundamente, dando continuidade à cena:
_____...Já não resta mais nada! Nosso casamento morreu, aliás, quando devera ter existido?.. Morreram as últimas esperanças!.. Tudo! Saiba, George, quero morrer...sim, não tenho mais nada...nem você, nem ninguém...O meu amor se foi, e com a morte de Flona, perdi o único sentido de vida do qual me restava...
Retirou do seio um velho punhal. Dando-o, disse:
_____Pegue e não me tenha pena. Estará me dando aquilo que minhas mãos não tiveram coragem de praticar. Cumpra! Abro-lhe os domínios da cima de minha dor e dou-lhe a oportunidade de tirar de cena esta mulher de poderio inigualável, de beleza incomparável, de dor profunda e morte certa.. Ó George, mate-me agora! Mate-me! Respeite este meu último pedido! Mate-me! Mate-me! Tire-me dessa angústia...tire-me...Mate-me!!! Mate-me!!! Matttteeeeee-mmmmmmmeeeeee!!!!!!!!!
Ela deixou o punhal cair propositadamente ao chão. Por alguns minutos ouvimos somente o suspiro acelerado e a altissonância agressiva , repousada sobre o semblante do vereador.
A magia desta cena quebrou-lhe o persistente obstáculo que, em um dia não muito longe, proibira-o de sentir a fragilidade e a hostilidade que vivia em seu meio.
O mais importante estaria por vir...
Cabisbaixo, ele refletiu .Após alguns minutos, decidiu pegar o punhal. Estava tudo caminhando para uma tragédia shakespereana.
A fisionomia de Catharine era o reflexo de uma trajetória pouco festiva. Política, ódio, suspense, amor e insensibilidade contemplaram-na durante os poucos anos de vida, e justo era o destino a realizar este seu último pedido.
Castrados foram os seus passos e imobilizadas as suas esperanças!..
Seu fim se aproximava!...
George, posto estava a resgatar o punhal. Quando o tocou, sentiu o gelo da lâmina escalar-lhe a espinha, ativando a ardente volúpia que um dia também sentira por essa mulher, agora à sua frente, suplicando-lhe para que a matasse...sim, ele agora se dava conta de que ela era sua vida, era o seu tudo, e que todo esse tempo, cego pela ganância e pelo egoísmo, pouco a valorizara... Aquela que o tirou da sarjeta, da pobreza e que lhe deu uma vida digna, honrada, era agora esbofeteada, sugada e no final das contas, seria assassinada por ele! Logo ele, a quem ela amara e por quem lutara. Logo ele, homem que decidira salvar do lixo em que vivia...Logo ele...
Vagarosamente, levantou-se.
O lábio carnudo e avermelhado secou. A face rica e bem construída envelheceu. O espírito se apagou de vez- amargo retrocesso, o remédio indispensável à transformação de qualquer ser humano, principalmente daqueles que consideramos ser irrecuperáveis...
O punhal , levado ao ar, refletiu a claridade de uma distante luzerna. Estava tudo preparado...A desgraça iniciar-se-ia! A ópera do desespero surgia no ar, como se quisesse avisar que a carruagem da Morte se aproximava...
De súbito, ele deixou o punhal desaparecer nas ondas do solo. E num gesto comovente, de quem realmente se redime dos pecados , pegou-a pela cintura, dizendo:
_____Nãããoooo!!!! Eu te amo!!!! Nãããooo!!!!! Nãããoooooooo!!!!!!!
E ali, exatamente às 23h30min., no sétimo dia da morte de Flona, renascia o amor enlouquecido, que o destino , por pouco, muito pouco, não destruiu.
As mãos trêmulas e convulsas do vereador caíram delicadas sobre a pele suave da digna mulher, fonte de inspiração de poetas contemporâneos.
Instigante era a fome do vereador em querer logo amá-la... Sua carne, limpa da sujeira da arrogante política, respirava e desejava aquela outra metade, durante anos, substituída pelo brutal instinto materialista que o dominava.
Era a vitória do amor sobre todas as coisas, sobre todos os valores imorais desta decadente sociedade capitalista.
Ávida, Catharine cedeu aos braços do ardiloso rapaz, criador de suas mais alucinantes fantasias e maiores desgraças.
Bem ser o fim!
Como esta mulher entregara-se fácil aos apelos deste homem vil, ao qual o poder manipulava e o dinheiro movia?
O desconforto causaria tão profundas mudanças no caráter e na personalidade de uma pessoa?
É difícil prever!
Catharine fora subestimada pela ganância, corroída pela perda, pelo aparecimento e pelo arrombamento do túmulo de sua filha, desatinada pela paixão do motorista e menosprezada pela violência do esposo George Dumont, este mesmo que agora ela aceitava nos delicados braços como se fosse um ser digno de ser amado e respeitado, como se todo o mal que ele já lhe havia feito não passasse de fantasias de sua imaginação...
A textura da face foi abalada pelo beijo arrebatador de George, que a sugou desde a essência do coração à raiz da alma.
Que dizer desta cena?
Mostra-se a fraqueza da carne ante ao instinto humano...
Uma névoa fina e fria desceu do céu como o primeiro sinal da repreensão celestial...
Estava se aproximando a fusão psíquica e espiritual destes dois personagens, destas duas ilustres figuras neste romance folhetinesco. Durante anos, peças de uma guerra conjugal, no momento , cessada, para que a seiva do amor pudesse ser novamente plantada e colhida, quem sabe , restaurando-se de vez a estrutura podrificada desta que um dia fora uma invejável família de Vila dos Princípios.
George pegou-a pelos braços e a levou para o aposento nupcial- enterrado ao final de um corredor escuro...
A natureza respirava o ar descarregado do ódio e da tristeza, há anos acumulados em volta do casarão...

XVII
O prefeito Tanaka Santuku estava sentado em uma poltrona na sala de estar do apartamento de seu amigo geólogo. Enquanto fumava um charuto, proseava com o doutor Paulo Emílio a respeito da tão almejada bacia petrolífera, confirmada nas terras de Vila dos Princípios.
_____Então, doutor, se o senhor estiver mesmo certo, teremos nas mãos uma das maiores riquezas subterrâneas do mundo e aí, bem, a julgar por mim, seremos os homens mais ricos destas bandas...
Interveio o doutor, sorrindo:
_____Destas bandas não, seu prefeito, deste país!
_____É assim que se fala seu...seu coisa! Tô vendo que o senhor é mesmo dos meus!.. Aliás, o senhor já está preparando a equipe que irá perfurar o solo assim que ganharmos as eleições?
_____Não! Mas nós ainda não ganhamos, e o senhor sabe, se não elegermos George para o cargo de prefeito, pouco êxito teremos na conduta de nosso plano. A três meses das eleições, resta-nos jogar todas as fichas...Qualquer um à frente desta prefeitura, caso saiba da existência dessa riqueza negra, encherá o bolso de verdinhas...E que Deus nos proteja e que sejamos nós os únicos a lucrarem com esta fabulosa descoberta...
_____Quanto à eleição, dou minha palavra, George já está eleito.
_____E quem garante? Ouvi rumores na cidade de que ele passou por uma profunda humilhação hoje de manhã, durante a missa de sétimo dia de sua filha. Disseram que sua esposa, aquela “boazuda” da D. Catharine, deixou-o só , partindo sabe lá pra onde. E veja, as notícias estão correndo de que Zé dos Cobres usará deste acontecimento para neutralizar a moral e os pontinhos preciosos conseguidos por George nas pesquisas, após a doação do Posto de Saúde Escola pelo governador à cidade. E aí ,seu Tanaka, as eleições, estão ganhas?
_____Intriga da oposição, doutor Paulo Emílio. Intriga da oposição! Esta gente fala muito, e muito me espanta o senhor, homem de pose, inteligente, apreciador do luxo , da riqueza e dos bons costumes, preocupar-se com detalhezinhos...Intriga desta gentalha que a todo custo tentará nos derrotar. Posso lhe assegurar, será debalde!
_____Bem, é de detalhezinhos que se perde uma eleição!
_____E é de detalhezinhos que se ganha uma eleição!- Ironizou o prefeito.
Paulo Emílio correu a mão esquerda pela face em gesto de desconfiança, procurando não contrariar o prefeito .
_____Doutor Paulo Emílio, George ganhará estas eleições. Ele um tolo, nós sabemos, porém, está sendo controlado minuciosamente por minhas mãos, e quando lá chegar, conseguiremos obter uma boa grana, suficiente para nos dar uma vida digna, cheia de mulheres e bebidas. Coitado do nosso amigo , doutor, acha que também terá parte em nosso negócio...acha que conseguirá algumas verdinhas às nossas custas!.. Acha! Falei bem, acha!
_____E como o senhor pretende ...bem, despistá-lo a respeito deste assunto?
_____Deixa comigo!
_____Estou curioso!- insistiu o geólogo.
_____Ficará pelo tempo que eu quiser, esse tipo de assunto não se discute antes de por em prática.
_____Talvez o senhor tenha razão!
_____E ainda duvida? Essa é boa! Hum! Mas vamos deixar de conversa fiada e discutir o que está ocorrendo agora. Seu Paulo, já temos um meio de apagar a humilhação desta manhã, sem que a imagem de George sofra sequer um arranhão...
_____Como?
_____Todo mundo sabe que depois da morte de Flona, D. Catharine não é mais a mesma. Vive murcha, solitária, depressiva, enfim, ante a esse quadro psicológico em que ela se encontra, qualquer juiz a julgará incapaz de decidir sobre qualquer coisa, então atestaremos diante de todo esse povinho sua insanidade mental. George, como legítimo herdeiro, apropriar-se-á da fortuna, comprará tudo e todos e nem que for a pau, chegaremos lá. Com todo o dinheiro de Catharine disponível, ninguém nos impedirá de mais nada!...Falando em nada, só agora me lembrei, esqueci de dar ao George a pasta que ele havia me pedido...
_____Que pasta, se mal lhe pergunto?
_____Uma branca que deixei lá no gabinete. São documentos de um amigo , explica como procedermos em casos de pedido por insanidade. Bem, o papo está bom, mas eu preciso ir até a casa dele, prometi que levaria esta pasta ainda hoje.
_____Deixa pra amanhã, seu Tanaka!
_____Não! Não senhor, amanhã é um outro dia, e espero já estar com a papelada pronta para solicitar o embargo psíquico...


XVIII
Biblioteca da casa do doutor Rubens Arraia...
Rubens, ainda que um pouco exausto, lia parte do canto primeiro de “Os Lusíadas”, o clássico épico de Luiz Vaz de Camões.
Na realidade , sua atenção não estava presa aos fatos da epopéia portuguesa, mas no sofrimento de Catharine.
Ele não conseguia esquecê-la um só minuto. Havia se comovido com a cena presenciada, à tarde, na mansão. Aquele rostinho lindo, bem construído, muito parecido com o de sua mãe, suplicava-lhe por socorro.
E o que fazer para ajudá-la?
Realmente não sabia! Mas ficar parado não poderia, havia prometido ajudá-la a sair desta difícil fase em que se encontrava...
Fechando o livro, decidiu levantar-se e ir ao aposento, onde passou minutos refletindo sobre uma maneira capaz de sanar a dor cruel vivida pela musa inspiradora de Joaquim...
Resolveu vestir-se a caráter, partindo em seguida ao casarão...
Alguma coisa íntima o puxava pra lá...como se Catharine estivesse precisando dele, de seu amparo, de seu carinho e afeto, enfim, de sua pessoa- um escudo nato nesta terrível guerra conjugal .

XIX
De volta ao casarão...
Apesar da reconciliação de George e Catharine e da volta dos bons e velhos tempos à mansão, existia um ser que entregava-se ao pranto, ao sofrimento e à morte , o motorista Joaquim.
Após assistir a cena do congraçamento de ambos, detrás de uma distante roseira, viu-se morto e crucificado...Não acreditava, aquilo parecia mais alucinação, pesadelo!...
A dor imensa , quase não contida no peito, acabou ativando o orgulho- irmão nato do machismo desenfreado- o qual o incumbiu de cometer ato qualquer, desde que ágil, que pudesse limpar sua honra e exterminar de uma só vez as raízes desse pesadelo, outrora acudido de amor.
Acompanhou-os até que seus olhos já não podiam mais encontrá-los...
Cumpria-se dessa forma, o que lhe havia designado o tribunal indecifrável do futuro...
O velho punhal, deixado no chão por George, foi o maior pretexto do destino, para forçar uma terrível desgraça.
De posse da faca e preparado para cumprir mais um ato desse drama, voltou a cabeça para o céu e despejou:
_____Acabam aqui os meus sonhos, a veemente esperança de um dia tê-la como mulher em meus braços!.. Tudo acabado! Não me resta mais nada se não morrer! Morrer!!! Ó dor que me corrói, ó sina que carrego, ó vida terrível, ó... Por que tenho de perdê-la? Por quê? Por quê Deus? Ó , isso me apoquenta, me destrói...Me destrói! Eu que a amava tanto não merecia isso...Catharine...aquela...não! Nãoo!!! Pare, Joaquim!!! Pare! Ela não merece todo esse sofrimento, não merece! Pare!
Inspirou profundamente.
_____...Ó , como eu me odeio! Como me odeio!...Me...odeio!.. Por que acreditei nesta mulher – devoradora insana de minha alegria? Por quê? Por que acreditei na melodia suave de sua voz, quando disse também me amar , minutos antes de eu tentar o suicídio dias atrás? Por quê?...Sim... por quê?...
Caiu ao chão, derrubado por uma ira descomunal.
_____Oh Catharine, sua flâmula voluptuosa pairou sobre meu ingênuo coração e o queimou completamente...a morte era o último recurso para que eu não sofresse por esse amor proibido, mas você, assassina fria e calculista, pôs-se a minha frente como vítima, fazendo-me crer no sonho de um dia...um único dia...tê-la só para mim. Disse também me querer, e hoje, aqui, não a vejo, está nos braços daquele homem grosseiro , que tanto a maltratou e desprezou...Já não sou mais necessário! Tem de volta seu queridinho , por isso descarta esse vulgo motoristazinho, cujos sonhos foram maiores do que poderia sonhar. É isso que recebo, uma punhalada como traição!..
Mesmo caindo na realidade, houve momentos rápidos em que atreveu-se a voltar a sonhar...
_____...Deus me dera ser o vereador um só minuto, reter o seu beijo, tão quente e excitante como o indomável instinto que me come por dentro e que me faz delirar de desejos !..Pare Joaquim! Pareee!!! Ela não merece o prazer dessa sua recaída, não merece!
Levarei em meu espírito, não o ódio acumulado por sua traição, mas seu amor falso, frio e insensato, para que me sirva de consolo quando a saudade for insuportável e maior que as minha forças...Não chore ao ver este corpo estirado ao chão, pelo contrário, sorria. Terá conseguido tirar de cena aquele pobre rapaz, de alma fraca e mente fértil, que tanta pena causara ao ponto de confundi-la a respeito de seu amor por George...A erva daninha, com êxito, será exterminada!..
Far-se-á o início do fim!..
Exatamente às 00h00, a morte incluiu em sua lista macabra o nome deste cruel homicida, nosso, entretanto, estimado Joaquim.
O punhal rasgou-lhe os sensíveis tecidos da carne. Grito horripilante fora ouvido à distância quando esta ao seu coração partiu.
Prólogo deste enlouquecido amor platônico, devorador insano de um homem íntegro e decidido, cujo erro foi o de amar e logo uma ingrata.
Coisas da vida!
A lua encobriu o cadáver deixado sobre a relva- personagem ilustre, testemunha ocular do reencontro das protagonistas e do suicídio do motorista...
As nuvens umedeceram a madrugada, dificultando a terra de sugar o sangue , jorrado incessante, das veias ingênuas deste servil motorista, projeto findado de uma paixão sem limites.
O bárbaro ritual do suicídio se cumpria!
Com o grito de Joaquim, a bela e envelhecida senhora vestiu apressada o penhoar negro ,de seda francesa e, contrariando as ordens de George, desceu as escadarias de acesso ao bosque. Queria saber a origem daquele grito, intimamente sabia, algo havia acontecido com Joaquim. Tinha medo só em imaginar o que era. Próxima ao local do crime, sentiu uma violenta pontada advir ao coração. Teve vontade de gritar, todavia, preferiu conter-se e agüentar a misteriosa dor, que agora se diluía...
George dirigiu-se ao escritório, pegou o celular e informou ao delegado Chico Santinho que algum eco vindo das adjacências os havia amedrontado. Poderia ser um ladrão, lutando contra algum dos sistemas de segurança do casarão.
A névoa fria envolvia Catharine; como uma serpente, sufocava-a, deixando-a mais tensa e desconcertada. Aos poucos era atraída ao local do crime, também palco de sua harmonização.
Mal poderia imaginar que a poucos passos dali, caído em sinal de rendição, estaria Joaquim, aquele motoristazinho que aventurou sonhar mais do que podia, pagando por esse erro com a própria vida.
O premeditado suicídio foi o único remédio encontrado por ele para amenizar em parte o sofrimento que sentia por saber que sua musa, na certa, jamais voltaria a ser sua, se é que um dia o foi.
O escapismo, risco comentado páginas atrás, tornou-se agora mais complexo e feroz do que nunca, usado como refúgio por mais um dos personagens deste drama.
Durante o decorrer da tragédia, algumas contradições ficaram evidentes. O velho punhal, importante instrumento na aproximação do casal Dumont, forjou, assassino brutal e sem alma , a maior ameaça dessa reconciliação, ou seja, o próprio motorista.
As estrelas, em luto fechado pela severidade das leis votadas , sancionadas pelo júri designado pelo destino, apagavam-se diante dos passos silenciosos de Catharine.
Decididamente, ela se aproximava de Joaquim...
A poucos metros do cadáver, resolveu parar, como se alguma coisa dentro dela tentasse alertar para a terrível tragédia que visualizaria...
Possivelmente a voz de Deus, vinda em gotas de orvalho para tentar impedi-la de nova decepção sentimental, cuja essência arrastá-la-ia às raias da loucura.
Decidiu menosprezar o aviso, impondo a alviceleste postura ao medo que tentava a muito custo dominá-la.
A poeira batia e levantava. O vento agitava e sumia. A lua cheia, de quando em quando, desaparecia entre as nuvens...
Cada passo era o final de uma movimentada paixão irreal. Após a última árvore, um coqueiro, teve o desprazer de se ver presente ali diante dos restos daquele motorista, que tanto lutou para amá-la e a quem ela na realidade pouco se importou.
Ele fora!...Joaquim, se fora!.. Vítima sua! Exclusivamente sua...de seu desenfreado desejo de encontrar, ainda que oculto, amor capaz de sanar a carência matrimonial que então sentia por causa do desprezo de seu esposo.
Catharine, ainda não acreditando no que seus olhos viam, afastou-se um, para serem exatos, dois passos. Desesperada, foi aos poucos perdendo o brilho... Estava enlouquecendo!...A dor era grande demais! Sufocava-a; pouco a pouco a comeria, o que fazer para mudar ou mesmo apagar de sua história este triste fato?
Com os nervos imobilizados, caiu próxima ao corpo do motoristazinho, a quem cultivava ainda estima, talvez não ao ponto de amá-lo, como afirmara. Parada no tempo e no espaço, recapitulava tudo o que lhe havia acontecido até hoje em sua vida.
Como por encanto ou castigo, no exato momento, doze minutos do novo dia, sua vida miserável- da infância à velhice, como em uma filmagem hollywoodiana, corria-lhe diante dos olhos, incriminando feroz e continuamente a tragédia então abatida sobre toda a maldita família Dumont.
Era inevitável o desmoronamento psíquico desta mulher.
Após muito esforço, conseguiu novamente se levantar. Fitando Joaquim, declamou o que sentia.
_____Enfim, cumpriu-se o que eu previa...e não consegui impedir. Se aí está, é por minha causa, e devo pagar, se não com a alma, mas com o corpo! Devo ser molestada, desprezada, odiada e cuspida...Quero sentir a dor, dobro da sua, seja ela como for, quando e onde estiver!!! Tenho de morrer!!! Devo pagar por esse mal, sou a culpada, ...sou!...Meu Deus...sou a culpada! Meu Deus, leve-me, jogue-me aos braços da sorte, pela qual me sugará, até que a última gota de vida se esvaia de mim...
Doidivanas, gritou:
_____ “...A vida é um lixo e, como tal, um dia, aqui ou acolá, na presença de Deus ou do diabo, no céu ou no inferno, incinerada será!!!”
Vitimada por mais uma vertigem, caiu dessa vez em cima do peito frio de Joaquim. Desatinada, ofegou cansadas palavras ao ouvido de seu ex-servo:
_____Quando estive em busca de meu reequilibro psíquico, aqui mesmo neste bosque, tive a impressão de que algo...de muito longe, como se estivesse sendo ainda traçado por um bisonho escritor de pena em punho, aconteceria. Não sabia o que era...estava cada vez mais próximo, girando meu sistema normal de pensamento, sugando minha essência. E, da mesma forma que me fisgavam os primeiros sinais de suspeita, logo desapareciam...Pista alguma deixavam!...Eu achava estar louca!!! Qual outra explicação, senão esta, para tudo isso que me ocorria? Pensei em várias hipóteses, descartando-as em seguida, pouco tinham de fundamental. Quanto sofrimento!.. Hoje, depois de enérgico tempo, por sensatez ou loucura, vejo que aquilo que me amedrontava eram os espinhos da morte, atirados de algum beco ou lugar, caindo sobre mim, para que minha alma fosse despedaçada...De alguma forma, queriam talvez me avisar de sua partida...
Arfou com dificuldades, dando seqüência ao diálogo:
_____...Ai meu Deus, o que falo? Devo não, estou completamente louca!!!! Como dói minh’alma... quase não suporto...estraçalha as ainda resistentes migalhas de vida, ousadas, a sobreviverem neste estarrecido coração, mantém-me acordada! Não! Tudo é encenação, porque na verdade, durmo há dias, semanas, meses e anos, sem caixão, debaixo não da terra, mas dos olhos insensíveis desta infame sociedade...Não agüentarei ficar aqui sozinha Joaquim, longe de teus delicados lábios e sedentos olhares...leve-me! Não me deixe aqui!!! Leve-me com você!!! Leve-me!!! Por favor!!!
Sabe, você foi o único que realmente sentiu algo por mim, que não me desprezou, pelo contrário, amou-me tanto a ponto de cometer esse ato insano...você foi o meu homem, aquele que sempre esteve do meu lado, quando meu esposo, enraivecido por algum motivo tolo, espancava-me. Você foi meu tudo!...E o que o reservou o destino, senão sua morte? Vi o céu acabar bem diante de meus olhos, quando não mais senti seu hálito másculo e penetrante vascular minuciosa e contundente as estruturas então frágeis de meu coração. Você...você foi aquele no qual amei e muito! Pena os fatores morais e sociais terem se postos como vilões em nosso caminho. Pena! Meu Joaquim, estou cansada!!! Demais!!! Sem força, enterrar-me-ei no sepulcro do esquecimento, de lá, não haverá homem ou criatura sequer para me retirar. Meu seio chora amargamente, mostrando o quanto eu o amava.
Oh, Joaquim, porque tinha de ceder ao desejo cruel de morrer? Por quê? Por quê, por meu beijo...meu beijo e calor? Não devia! Se hoje me desfaço em remorso, talvez seja por essa sua...loucura! Não, não, não quero culpá-lo, mas a mim, por não ter tido coragem de desfazer este falso casamento com George e me deixar ser amada por você... Joaquim, leve-me!!! Leve-me!!! Ouça aquela que o desprezou, venerou, sugou , amou...e matou!!! Ouça , por favor! Oh Joaquim...leve-me daqui...leve-me...
Fino e estridente assobio se fez por ouvir, quebrando os melodramáticos apelos de Catharine, que assustada, levantou-se de ímpeto, apoiou-se em uma luminária, enquanto seus olhos corriam rápidos e afoitos pelo bosque. Novo assobio estremeceu-lhe o corpo e o espírito. Deu alguns passos em direção à emissão do misterioso barulho. A brisa fria e irascível batia-lhe na face com o gosto- o sinal de que nova tragédia se aproximava!
Trêmula, agitada, exigiu:
_____Quem está aí?
Viu faíscas de uma lamparina brilhar a alguns metros dali. Aproximou-se dela, paulatinamente. Quando perto, vulto surgido de algum lugar, pegou-a insensível pelo pescoço. Fez que ia gritar, todavia, foi surpreendida pela mesma mão que lhe havia apertado o pescoço..
Por ironia do destino, próxima à luz, ela reconheceu que aquela mão era do vereador George Dumont . Empurrando-o , indagou severamente:
_____Está louco?!?
_____Acalme-se! Desculpe Catharine, desculpe! Eu podia jurar ser você um ladrãozinho...um destes fugitivos à procura de pão e água para matar a fome...desculpe! Aproveitando o momento, o que faz aqui? Deveria estar me esperando no aposento, não neste lugar, debaixo do sereno, expondo-se a tudo quanto é perigo. Volte para dentro...vá meu amor - Viram como ele se modificou? Hoje, por mais incrível que possa parecer, depois de incontáveis crises matrimoniais, chama-a de “meu amor”! O que não faz o amor quando se é ressuscitado!...Vá! Logo estarei lá, assim que se fizer presente o senhor delegado Chico Santinho. Vá! Vá, Catharine! Vá!
Numa voz quase inaudível, retrucou a mulher:
_____Eu...eu...eu não posso, George!!! Eu...eu não...posso!!! Não...
Desconfiado, interveio o vereador:
_____E por que não?
Desabando em lágrimas, respondeu a rapariga:
_____...Dói demais!!! Muito!!! Muito!!! Muitíssimo!!!
_____E o que dói demais? O que você tem Catharine? O que aconteceu com você? Fale meu amor...
_____Amor?
Tomada por uma estranha personalidade- aflorada de súbito de algum dos desconhecidos becos intrínsecos de sua alma, bramiu:
_____Amor? Que amor? Tenho ódio de você...nojo...nojo...ahahaha...vomito o que disse, como se fosse praga do céu a esta terra de ímpios...
Não reconhecendo a postura atual da mulher, questionou o vereador:
_____O que...que você tem Catharine? Por que me trata dessa forma? O que lhe fiz? Há pouco estávamos felizes, em nossa casa. Nós nos amávamos muito! De repente, por algum motivo, trata-me com essa frieza. E por quê? Enlouqueceu?
_____Não...é muito pior que isso...Minha vida chegou ao fim! Morrerei! E por sua culpa...
_____Hã?!?- Interrogou o vereador. Do que fala? Morrerá? E por minha culpa? Não a entendo! Enlouqueceu de vez, só pode!
---_____Pelo contrário, estou mais lúcida do que nunca...
_____Então?
_____...Não sabe mesmo?- satirizou a mulher.
_____Não!
Observando-a dos pés à cabeça, perguntou:
_____Por que está assim..? O que lhe fizeram Catharine? Por que afirmou que morrerá? Quero e exijo, já!
Pegando-a violentamente pelos braços, exigiu:
_____Fale!!! Não me desafie. Fale! Fale, antes que...
_____...Me bata?- Concluiu Catharine.
Os olhos de ambos se encontraram. Os dele estavam vermelhos e preenchidos de cólera. Os dela, livres e profundamente sarcásticos. O atrito firmado pela inconstância dos fatos, produziu um tremendo suspense, cujo fim estaria vinculado às cenas futuras.
Completamente transformada, Catharine sorria...
Não compreendendo o estado atual da mulher , questionou o vereador pela última vez:
_____O que se passa?
O sorriso satírico fora saindo da face da enlouquecida mulher, por fim, emudeceu, como se as estacas da morte lhe pesassem nos lábios.
Cabisbaixa, apontou-lhe com o braço o lugar de onde saíra o motivo dessa estranha transformação.
Foi ele na respectiva direção.
A bomba-relógio, caracterizada na figura daquela tragédia, logo explodiria.
E não demorou muito!
Alguns metros à frente, fora o vereador atingido de súbito pelo estouro da referida bomba.
Joaquim estava morto e ali do seu lado.
Realidade ou ficção?
Infelizmente , realidade!
O punhal, cravado no coração do motorista, refletia a ardente e incessante luzerna, emitida pelas dilatadas pupilas do malogrado representante público. Altissonante, atormentado, sem o ar que faltava-lhe aos pulmões, virou-se para ela. Levando a mão à testa, confidenciou consigo: “Meu Deus!..”
Ao fitá-la, perguntou irado:
_____O que aconteceu aqui? Como...surgiu esta tragédia e justo no mesmo lugar onde nos reconciliamos? Fale!!! Foi você a praticante deste horrendo crime? Foi você? Fale! Foi? Oh Catharine, por que isso? Por quê? E justamente com uma criatura tão sem importância aos olhares da sociedade, o motoristazinho de fundo de boteco? Há esperança ainda, então fale, foi você? E por que, Catharine? Eu não compreendo! Por quê? Oh piedade! A única cousa que entendo neste momento é que minha eleição como prefeito de Vila dos Princípios está perdida! Qual escândalo será, quando esta notícia se espalhar. E meus concorrentes? Estes, com gosto, crucificar-me-ão. Que fim! Quanta humilhação terei eu de passar, na busca pelos votos destes famintos. Quantos terei de comprar? Será a vitória mais fácil na carreira do Zé dos Cobres. Este sim, está feito! Ao fim..! Fale, foi você a responsável pelo assassinato deste infame projeto de gente?
_____Dor!!!- única resposta da rapariga.
_____Dor?!? Isso é uma brincadeira? Fale logo! Foi ou não você a assassina deste chulo, grotesco e demente pobretão, filho dessa classe de mendigos, que só nos serve para fornecer votos e nada mais? Fale, por favor! Por favor não, quero e agora! Fale! Fale o que aconteceu aqui. Por que mataria este...este sujeitinho?
_____Você já sabe, caro esposo! E mesmo assim, por que insiste?
_____Eu? Eu? Do que está falando? Eu, você mesma sabe, jamais soube de absolutamente nada, ainda assim, incrimina-me propositadamente por essa crueldade, pondo-se como vítima diante do próprio erro?
_____Eu pedi para que me matasse, mas não, preferiu me seduzir...Eu temia que isso acontecesse! Minha consciência exigia libertação deste mundo o mais rápido possível. Era a única maneira dele continuar vivendo!.. Era! Oh George, não tenho mais força para delatar explicação alguma. Deixe-me em paz!
Soluçou. Depois decidiu continuar.
_____Sinto dizer, mas um dia, não faz muito tempo, visualizei meu semblante nas límpidas águas deste bosque, por mais difícil que fosse, tive a certeza de que o enlouquecido amor que antigamente lhe sentia, estava sendo levado pela mesma correnteza que alimenta esse chão... Tanto foi o desgaste de nosso matrimônio, que me vi presa ao sofrimento. E através deste homem, a quem classifica de filho da ralé, tive a oportunidade de voltar a sonhar... Imaginar o dia em que seria feliz de verdade... O dia em que você deixaria de lado a ganância, o poder e o dinheiro para ser meu, exclusivamente meu. Como vê, tudo não passava de sonho, afinal, enquanto sua insolente índole adormecia confortavelmente no desejo sagaz da riqueza, eu penava no vazio deste casarão, acreditando que um dia tudo isso fosse mudar. Mentira! Enganava-me, pudera, seria a única forma de continuar viva, mesmo morta intimamente como estava. E graças a Joaquim, voltei a sorrir...amar...mas tudo que é bom desfaz-se com o ar, e ele se foi, levado pelo desejo ingênuo que lhe neguei. Eu não soube lhe dar o merecido valor , cá está, sufocado pela própria paixão que sentia por mim...
Seus olhos foram inundados por ódio e desespero.
_____George, você tanto me machucou, pouco a pouco, sentiria na carne o que eu pretendia fazer. Deixá-lo-ia por Joaquim, este a quem eu deveria ter amado deste o início, quando ainda sonhava em comprá-lo. Mas fui tola, deixei me levar pelo preconceito barato e por tanto tempo adiei esta decisão. Aqui está o preço por minha demora. Joaquim está morto! E nada posso fazer para mudar isso. Nada! Eu...eu o amava, e como! Só que o trai, e justo com você!... Quando me seduziu, imaginava tudo que naquele momento se passava, com este homem ,que agora perdi de vez...Vai embora daqui! Vai! Deixe-me chorar, por favor! Deixe-me chorar pela perda deste ser- vítima cruel de meu coração doentio...Vá embora, não suportarei mais falar sobre nosso falecido casamento...Você...não se humilhe mais, vá embora...vá! Por favor! O senhor teve anteriormente a chance de ser o homem, o líder, o imbatível ser, dono único e exclusivo de minh’alma...
Irrigou os pulmões de ar , dando prosseguimento ao diálogo:
_____...mesmo assim, preferiu rastejar-se como verme a procura do nutriente podre e inesgotável da política aristocrática . Tem em mim agora uma inimiga!
Fitando-o severa e pejorativamente, concluiu:
_____Não o quero mais perto de mim...odeio-o...odeio-o! Vá embora daqui! Vá! Já não basta o sofrimento que me deu a vida toda, ainda quer mais o quê? O quê? Já sabe de tudo! Tudo! Não o matei, ele suicidou-se...por mim. O que mais quer? Arrastar-me ao poço da desgraça total? É isso que quer? É? Mas eu o liberto desta obrigação, lá já me encontro...Vá embora! Vá! Por favor! Imploro, por favor! Retire-se daqui...A perda...a sua perda, de Flona ,e agora de Joaquim, levaram-me a refletir sobre todas as leviandades praticadas durante boa parte de minha vida...e não tenho mais força para lhe dizer quanta foi a dor desse retrocesso..! Vá embora! Vá!
Levando a mão direita ao ventre, deu nítidos sinais de que não estava bem, mesmo assim, prosseguiu:
_____Não!.. Não!- fora obrigada a parar por causa de uma forte dor advinda do ventre. A muito custo continuou: não tente compreender a minha repentina mudança de personalidade e muito menos os...os...os meus astuciosos desejos. Não tente, talvez não valha a pena. Louca, é o que pensa?
_____Claro!- exclamou sereno e autoritário o vereador.
_____Pois eu esclareço estar apta para tomar qualquer tipo de decisão, e a primeira será a de desfazer completamente os laços dessa falsa união conjugal, encenada durante tantos anos para manter as aparências e levá-lo ao cargo de vereador, pois agora chega! Nunca mais sujeitar-me-ei a essa escravidão. Nunca mais! Agora vá embora, deixe-me velar os restos deste homem...Vá!
George, ao contrário do que imaginamos, havia se acalmado. Retirou uma caixa de cigarros do bolso, sacou-se de um. Ao acendê-lo, revelou , em pausas, sua linha de raciocínio.
_____ “A vingança é lenta como o ódio e agressiva como o perfurar da carne nos leitos da procriação” . Difícil é acreditar no que você disse, suas palavras soaram falsas...é, você mente Catharine, nunca deixou de me amar, tentou se enganar por meio do amor deste subserviente criado, fruto da tragédia que se abatera sobre nós...- deu duas ou três tragadas, expelindo-as em uma única baforada- Oh Catharine, sei que lhe fiz tanto mal, mas a tal ponto de me trair? E justo com esse “escarro da pobreza”? Tudo bem! Tudo bem! Está correta em querer me punir por não comparecer ao funeral de Flona, daí a dizer que deixou de me amar?! Há uma grande distância entre uma coisa e outra...E, mediante tal situação, só me resta afirmar sua anomalia psíquica!..
Apagou o cigarro com os próprios dedos, dando seqüência ao diálogo.
_____Louca! Vá, morra também, não terei pena alguma. Você, bem... também direi o que me vier à cabeça!.. Fique sabendo, sempre foi e sempre será o meu banco particular, nada mais. Nunca a amei! Nunca! Quando aceitei o convite de seu pai para casar-me contigo, visei o dinheiro e o conforto que esse casamento me traria e nunca o amor que talvez um dia poderia vir a sentir por ti. Com exceção do dinheiro, você não vale nada! Nada! Minha preocupação neste instante é com a campanha à prefeitura. Que abalo sofrerá minha imagem diante desse episódio!
Catharine interveio.
_____Pare! Pare! Pare com isso! Pare!!! Tenho nojo de sua voz, de você, de tudo que o completa. Nojo! Como posso ter amado um homem tão frio, insensível e egoísta como você, George? Como? Saia daqui!!!!! Vá viver sua demagogia no incomensurável paraíso da corrupção , suborno, extravio de verbas governamentais, assalto aos contribuintes, que tanto maravilham seus olhos. Mas cuidado, a política é uma faca de dois gumes. Num dia se venera, noutro se mutila...Vá embora! Vá!
_____Não, minha bela envelhecida senhora, não irei! E aproveitando, não fale dessa forma, é vulgar demais. Não cai bem para a ex-rainha dos saraus. Aliás, voltando ao assunto principal: você nunca amou este motoristazinho, ao contrário, continua me amando...com amor tão ou maior do que antes...tenta ocultar esse sentimento; não consegue! Vendo-se derrotada, parte para o tudo ou nada, no fim da linha: a vingança! Não é? Sim! Não adianta se enganar, a verdade se consome, não há volta. Ama-me demais! Dizer o contrário é ser fraca e deixar de assumir a paixão que a consome!.. Ia me esquecendo, o crime praticado...perdão, o caracterizado suicídio, até ser comprovado, levará muito tempo. Até lá, você cairá como a principal suspeita, ameaçada de condenação. Certeza, certeza não tenho, mas se efetivada a pena, morrerá na cadeia. A cela a espera, e pode contar com isso...Se depender de mim, isso ocorrerá muito breve. Sua assassina!!! Ahahahahahahaha!!!!
Ferida n’alma , a pobre mulher o olhou fixamente, decidida do que faria em seguida.
Já se passavam das 00h40min...
Ela caminhou lentamente ao encontro do corpo de Joaquim. Deixou as brancas e altissonantes mãos caírem sobre a face dele. Sentiu a mesma emoção que antigamente a abalara. Voltando-se para George, atacou:
_____Pare! Tenho forças para vencê-lo. A vida me ensinou um dia sobre as vis qualidades do homem, e eu não acreditei. As horas se foram e os dias esquecidos, mas as teses sobreviveram, e hoje , aqui, dão-me a prova de que estavam certas. Postado a minha frente , está você , George. Um homem frio, calculista, severo na busca desenfreada pelo dinheiro fácil e incapaz de amar alguém. Não adianta soberbo e onipotentemente retrucar sobre o que lhe disse a seu respeito e de Joaquim. Não retirarei sequer uma afirmação.
Passou ligeiramente a mão direita sobre a testa. Estava cansada!
_____Sei que está enraivecido, e que tudo o que fez, não passou de uma cena de ciúmes. Sim! Ciúmes! E diz que não me ama. Oh George, você mente e como um ator veterano. Deveria ter se engajado nessa profissão, olhe, cairia muito bem na pele de alguma maquiavélica personagem de Janete Clair. Hum! Você, George, durante toda a vida, só soube destruir aqueles que o amavam, nem a própria filha poupou. Ignorou-a quando mais precisava, alegando estar tentando buscar na Capital , verba à construção do posto de saúde que iria salvar milhares de vidas. Que desculpa infame. Assassinou-a, lentamente, como está fazendo comigo. Mas deixe estar, neste mundo se faz e nele próprio se paga. Seu fim será triste, saiba disso. Pagará com o corpo os erros que cometeu. Sei disso! Agora , vá embora! Vá! Quero vê-lo distante daqui, queimando na fogueira dos próprios pecados. Odeio-o! Amo! Amo sim ,meu Joaquim. Amo-o. Amo-o com a alma que lhe foi sua um dia. Amo-o! E ninguém, inclusive você, duvidará.
Manipulado pelo instinto animalesco que move o machismo desenfreado, o vereador a pegou pelo pescoço, dizendo:
_____Meretriz! Fruto do sexo! Prazer consumido pela estaca da esbórnia.
Esbofeteou-a.
Caída ao chão, ainda sofreu dois chutes. Um no ventre, outro na cabeça.
Este foi o remédio encontrado pelo vereador para cessar de vez a humilhação que sentira ao ver a esposa declamando amor eterno a um pobre filho da ralé e esgoto da elitizada sociedade principiense...
Enquanto o desaguisado desenvolvia-se em terra, as estrelas oravam pela preservação da alma de Catharine. As nuvens choravam... Apesar de todo o apelo, o som da carruagem da morte se aproximava...! Os anjos tocavam as cornetas, sinal de que logo a conduziriam ao paraíso!.. O fim estava próximo!..
Invocando uma coragem então desconhecida, Catharine novamente se levantou . Com a mesma postura que a levou a assumir o amor pelo proletário, disse a George:
_____ A violência jamais voltará a destituir meu brilho, jamais!
Num ato inesperado, retirou o punhal do peito de Joaquim. Ao encontrar os olhos do vereador, disparou:
_____Disse eu comigo mesma: “ nunca mais deixarei George utilizar-se da violência, seja ela qual for e em que grau estiver, para proibir a liberdade que é minha por direito; caso essa promessa seja quebrada, ele será penalizado com a perda da própria vida”... Pois então, agora morrerá. Morrerá! Não conseguirá escapar...não conseguirá!!!
Estava completamente desvairada.
Seus olhos, dilatados, comprovavam isso.
O punhal, desembainhado, dava seqüência ao ato contestável.
Queria o coração do vereador. Seria o pagamento pelas crises que passara, pela ausência no funeral de Flona Dumont e pelo suicídio de Joaquim.
Não há palavras para descrever os vultosos calafrios sentidos pelo futuro prefeito (será?), quando Catharine o atacou pela primeira vez.
Os golpes ligeiros e o riso provocante foram as únicas lembranças da efetivação do segundo ataque.
O terceiro seria fatal se não fosse o disparo certeiro de uma arma de fogo, que perfurou o tórax da sofrida senhora, alojando-se ao lado direito do peito. Salvo estava o coração, a chamada “bomba amorosa”.
Caiu sobre os braços do renegado marido. Para a maior veracidade da cena, ouviu-se o aproximar lento do misterioso atirador.
Quem seria?
Algum amigo do vereador ou algum desconhecido, nascido para auxiliar no desfecho das futuras cenas dessa história?
Duas pistas. Primeira: o indivíduo usava botas de couro. Segunda: era alto.
O suspense predominava!
Alguns minutos depois, lá estava o atirador, portando em punho o objeto deste ato criminoso.
Dando mais dois passos se revelou. Era o delegado Chico Santinho.
Ao vê-lo, gritou George, envolto em um estranho desespero:
_____VOCÊ A MATOU!.. VOCÊ A MATOU!.. ASSASSINO!!!!
Neste instante , chegava à mansão o doutor Rubens Arraia e o prefeito Tanaka Santuku.
Ambos se viram, mas não se cumprimentaram. Eram inimigos declarados , desde a época de Venusa.
Adentraram afoitos as dependências do casarão. Pela frente encontraram Jurupoca, que devido ao sono profundo, nada pode fazer para evitar que mais essa desgraça caísse sobre a família Dumont. Atordoada , indicou-lhes o local da tragédia.
Assustados, os dois se olharam e depois correram ao encontro dos demais . Quando lá chegaram, o medo foi inevitável.
Catharine caída no chão, perdendo muito sangue. George de seu lado, chorando como criança, sendo confortado pelo delegado. E Joaquim, um pouco mais distante, morto.
Tanaka, coçando a cabeça, sussurrou:
_____Perdemos a eleição! Foi pras cucuias nosso petróleo. Droga!
Doutor Rubens, sabendo que poderia ter feito algo para impedir o desenrolar dessa tragédia, conteve o soluço que ameaçou vir à boca, e tratou de socorrê-la. Felizmente, ainda estava viva.
E essa inesquecível noite foi se findando...

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