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Artigos-->O QUE SÃO "DIREITOS HUMANOS"? -- 08/03/2003 - 19:39 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O QUE SÃO "DIREITOS HUMANOS"?





Fernando Dias Andrade

Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo

Professor Titular de Filosofia Jurídica na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo





Parte 1





Em razão dos cinqüenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (que se completaram em 10 de dezembro de 1998), começa aqui uma série de artigos a respeito não apenas da própria Declaração, mas principalmente a respeito dessa noção tão importante para a atualidade e, ao mesmo tempo, tão pouco esclarecida e refletida: a noção de "direitos humanos". Ainda que pouco compreendidos e quase nunca discutidos de maneira racional ou objetiva, os "direitos humanos" são um assunto que interessa a cada um de nós: por um lado, porque se referem a uma série de direitos que todas as pessoas, por algum motivo (já direi qual), merecem reclamar para si e, por outro lado, porque também se referem a direitos que, se valem para mim ou para meus entes queridos, devem valer também para toda a humanidade.





Na verdade a expressão "direitos humanos" não é totalmente desconhecida. Embora não se saiba, normalmente, do que se trata com exatidão (ou seja, embora quase ninguém saiba dizer quais são os "direitos humanos", e por que motivo o são), muitos têm, hoje, uma idéia vaga da coisa e, por incrível que pareça, uma idéia negativa. É muito comum, por exemplo, ouvir-se essa expressão quando está sendo posta em questão a condição dos criminosos e dos presos - mas, principalmente, dos criminosos, aquelas pessoas que têm a imagem de terem cometido o que pode haver de pior numa sociedade ou numa comunidade: a violência e o crime. Como assim? Por que ocorre essa associação de algo que aparenta merecer um sentido tão positivo (os "direitos humanos") com algo que parece ser o oposto de tudo o que é humano, algo que faz com que o homem se transforme no seu contrário, no que há de mais "desumano" (o crime, a violência, que transforma os homens em "animais")? Em suma, por que se associa os "direitos humanos" a pessoas que são tão "desumanas"?





Nesse contexto, é muito comum ouvirmos alguém desabafar dessa maneira: "Acho um absurdo essa história de ficarem se preocupando com uma cadeia melhor para os presos, com uma condição mais digna para os presos! Esses animais cometeram seus crimes por aí, ficam comendo e bebendo às nossas custas na cadeia e ainda por cima querem um tratamento melhor? Aliás, nem tem que ficar preso, não!! Tem mais é que pegar esses animais e matar todos de uma vez!! Direitos humanos só existem para esses criminosos! Para o trabalhador, para as pessoas de bem, ninguém fala em direitos humanos!!"





Revoltante, não? Eu também acharia, se tudo isso fosse verdade; mas não é. Não é verdade que "ninguém fala em direitos humanos para as pessoas de bem". Não é verdade que "direitos humanos só existem para os criminosos". É verdade, porém, que os presos normalmente reclamam um tratamento melhor na cadeia, mas por enquanto não tratarei disso.





A reclamação que eu há pouco dei como exemplo é enfática, trazendo o tom de alguém que sabe muito bem o que está dizendo. Parece aliás ser tão clara no seu conteúdo que, dita por aí, obteria com facilidade a concordância de um bom número de pessoas, como se todos estivessem igualmente certos de que o que está sendo dito é a mais pura verdade: "direitos humanos, só para os criminosos", etc.





Ora, até agora eu ainda não introduzi uma definição de direitos humanos, não disse o que são, de fato. Mas gostaria de, por enquanto, colocar alguns problemas sobre a maneira como os direitos humanos são mencionados nesse tipo de reclamação, pois com isso já é possível perceber, pelo menos, a imagem que essa expressão tem vulgarmente. É, como tenho dito, uma imagem muito negativa, ao menos com respeito à maneira como esses tais "direitos humanos" são realizados na prática. De fato, parece ser algo que não é acessível a todas as pessoas. Pior, parece ser algo não acessível às "pessoas de bem", ou, mais claramente, às pessoas pacíficas. No limite, parece ser algo que os "cidadãos" não têm mas os "bandidos" sim. Além disso, parece ser algo controlado por alguém de fora, como uma instituição ou o governo; afinal, se pudesse ser controlado ou determinado por cada um, todos teriam esse direitos humanos assegurados para si, pois todos se dariam direitos humanos... ou será que não?





Indo direto ao assunto, todos sabemos que o que há por trás do desabafo que aqui foi tomado como exemplo é uma grande revolta por assistir a uma situação em que certas pessoas que são vistas como inimigas (no caso, os "criminosos", que seriam os "inimigos" dos "cidadãos") recebem benefícios que não são assegurados para a pessoa que está reclamando (no caso, o "cidadão"). Ora, essa pessoa pode ter seus motivos para reclamar, e eles não serão poucos. Mas também não serão poucos os falsos motivos que tem por trás das suas reclamações e, principalmente, não serão poucos os equívocos em seu modo de ver as coisas. Será que essa pessoa é capaz de explicar o motivo pelo qual existe essa idéia de direitos humanos? Será capaz de explicar o que são esses direitos humanos, e o motivo pelo qual eles são válidos para os "criminosos" e não são válidos para os "cidadãos"? Mais do que isso: será que ela tem razão em dizer que eles são válidos para uns e para outros não? Será que ela tem razão em chegar a dizer coisas como, por exemplo, que o criminoso (preso ou não) não é um cidadão ou que, mais do que isso, não é humano? Me parece, aliás, que esta idéia de que o "inimigo do cidadão" não é humano é a mais presente por trás do pensamento vulgar, porque só aquilo que é humano merece tratamento humano. Mas o que é esse tratamento "humano"? O que é, aliás, ser "humano"?





Quase ninguém se dedica a resolver estas questões, até porque considera que são questões que nada valem para a prática, devendo ser deixadas de lado. Ora, isso é um erro fulminante. Tais questões não devem ser deixadas de lado, e isso por dois motivos: primeiro, porque só depois de serem respondidas por cada um será possível passar a definir e questionar o que são os direitos humanos; segundo, porque também só depois de serem respondidas é que será possível pensar essas respostas para a prática: de nada adianta reclamarmos contra supostas injustiças e privilégios, sem sabermos, no fundo, o que estamos falando. É fundamental, pois, que cada um se interesse com seriedade em saber do que se tratam os direitos humanos, para que possa livrar-se das concepções equivocadas desse conceito e, principalmente, para que possa tornar-se uma pessoa mais consciente dos próprios direitos humanos e, graças a isso, mais ativa enquanto cidadão e enquanto pessoa. Mas enfim, do que se trata o objeto dessa interminável polêmica? O que são os direitos humanos?





Os direitos humanos são uma série de direitos reconhecidos oficialmente como devidos a todas as pessoas, pelo simples fato de serem seres humanos. Cada país, cada comunidade, tem suas próprias leis, regras, etc., mas contemporaneamente ocorre que em cada constituição costuma haver alguns artigos que dizem quais são, naquele país, os direitos individuais ou coletivos que devem ser considerados válidos para todas as pessoas e, além disso, devem ser garantidos e concretizados pelo Estado. Na nossa Constituição Federal (que completou seus primeiros dez anos em 5 de outubro), por exemplo, o artigo 5.º diz quais são os direitos e deveres individuais e coletivos reconhecidos neste país, enquanto os artigos 6.º a 11 tratam dos direitos sociais, e seria muito bom que cada brasileiro tivesse a oportunidade de conhecê-los diretamente, de maneira a saber que a lei máxima deste país garante a todos, por exemplo, igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações, livre manifestação do pensamento, livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, etc. Ou, no caso dos direitos sociais, que todos os trabalhadores têm direito a repouso semanal remunerado, salário-família para os dependentes, gozo de férias remuneradas, licença-gestante e assim por diante.





De fato, é importantíssimo conhecer a nossa Constituição e quais são estes direitos e garantias nela previstos, porque nada mais são do que uma espécie de "direitos humanos" reconhecidos oficialmente em nosso país e, muito mais importante que isso, que devem ser garantidos pelo Estado e, por isso, podem ser reclamados por cada cidadão. Há uma pequena diferença, porém, entre esses direitos constitucionais e a idéia geral de direitos humanos: enquanto os direitos constitucionais podem ser reclamados pelos cidadãos, os direitos humanos (eu já disse o que são os direitos humanos, mas ainda não disse quais são estes direitos), que são idealizados como algo válido para qualquer pessoa (cidadão ou não; ou seja, no Brasil, um "direito humano" deve ser válido tanto para um brasileiro quanto para um estrangeiro; tanto para um não criminoso quanto para um criminoso), só podem ser reclamados pelas pessoas se forem, também, direitos constitucionais.





Parte 2: os artigos 1.º e 2.º





A Declaração Universal dos Direitos Humanos define aqueles que são, digamos assim, os direitos humanos reconhecidos internacionalmente. Os direitos humanos são, em suma, aqueles direitos que devem ser reconhecidos como fundamentais e superiores a qualquer direito escrito: são os direitos que toda nação deve garantir aos seus cidadãos, porque são direitos que todo ser humano merece pelo simples fato de ser um ser humano. Como mencionei na edição anterior, o conhecimento e a discussão desses direitos tem sido motivada especialmente pelos 50 anos da Declaração (completados em 10 de dezembro); os direitos ali identificados são direitos que receberam reconhecimento internacional (a ponto de serem convencionados pelas Nações Unidas), e essa mesma comunidade internacional sugere a sua oficialização e aplicação em cada país. Diante desse importantíssimo documento, temos o desafio de constatar até que ponto os direitos expressos na Declaração são direitos concretizados (ou, quase sempre, desrespeitados) na prática e, a partir disso, discutir e descobrir o caminho a ser seguido para que os direitos humanos sejam tornados a realidade sonhada por toda a humanidade.





A Declaração é formada por 30 artigos. Os artigos 1.º e 2.º apresentam direitos que são devidos à espécie humana: igualdade de direitos, racionalidade, concórdia, ausência de qualquer tipo de discriminação. Os artigos 3.º a 21 apresentam os direitos consagrados pela época moderna, e ainda se tratam de direitos individuais: direito à vida, liberdade, segurança pessoal, integridade física, tratamento digno, igual proteção e tratamento diante da lei, privacidade, livre locomoção, asilo civil, nacionalidade, formação de família, propriedade, liberdade de expressão e pensamento, liberdade de associação, atividade política. Os artigos 22 a 27 tratam dos direitos sociais: direito à segurança social, livre escolha da profissão, condições justas de trabalho, remuneração, sindicalização, repouso e lazer, padrão de vida satisfatório, educação, livre participação na vida cultural da comunidade. Os artigos 28 a 30, finalmente, enunciam as conseqüências políticas dos artigos anteriores: deveres diante da comunidade, preservação dos direitos expressos na própria Declaração. Durante este ano, esta série cuidará de apreciar cada um desses direitos, a começar pelos dois primeiros:





Artigo 1.º Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.





Artigo 2.º



I. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.



II. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.





Os dois primeiros artigos afirmam algo importantíssimo, que é a marca de qualquer comunidade pacífica: as diferenças entre os seres humanos não devem significar uma desigualdade de direitos. Todos os seres humanos, embora possam ser diferenciados por questões naturais (homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, negros e brancos) ou por questões culturais e materiais (ricos e pobres, protestantes e judeus, religiosos e não religosos, trabalhadores e desempregados, etc.), não podem ser tidos como desiguais enquanto seres humanos. Embora todas as pessoas se diferenciem no que respeita à capacidade física ou material, à personalidade cultural ou ideológica, todas elas possuem em comum as mesmas características que as designam como seres humanos. Por uma questão de direitos fundamentais, pois, não importa se existem diferenças culturais ou naturais tais como as que acabam de ser mencionadas. Em matéria de direitos fundamentais (direitos que dizem respeito a todos os seres humanos, ou que devem dizer respeito a eles), é preciso partir daquilo que todos os seres humanos têm em comum: sua própria humanidade.





A igualdade entre os seres humanos tem como alicerce aquilo que, na natureza humana, é comum a todos os seres humanos. A Declaração menciona o principal conteúdo dessa humanidade: a racionalidade e a consciência. Eis por que todos os seres humanos são iguais, e talvez por que todos são "humanos": é porque todos eles possuem a mesma razão, a mesma consciência. A idéia de que existe uma humanidade tem por trás de si a idéia de que existe algo em comum entre os seus integrantes. Pois bem, o que caracteriza alguém como humano não é o fato de ser homem ou mulher, de ter ou não bens, de trabalhar ou não, de ter bons ou maus sentimentos, de praticar boas ou más ações, de ser ou não uma criatura de Deus, etc. Tudo isso de nada importa. Tanto o velho quanto a criança são seres humanos. Tanto quem trabalha quanto quem é inativo (seja por incapacidade, seja por uma eventualidade) é um ser humano. Tanto o homem é humano quanto a mulher é humana (e é por isso que tanto os homens quanto as mulheres merecem os mesmos direitos fundamentais, de modo que a discriminação contra a mulher, assim como a discriminação contra o homem, são inaceitáveis e odiosas). Tanto o religioso quanto o ateu são humanos (e odiosa a discriminação de um ou de outro em matéria de direitos fundamentais). Tanto o cidadão pacífico quanto o cidadão violento são humanos (de modo que o criminoso não deixa de merecer os mesmos direitos fundamentais devidos ao não criminoso, embora deva ser punido - por outros motivos, e sob outro sentido - pelas suas ações socialmente inaceitáveis).





Nós vivemos a todo momento banhados com as mil formas de discriminação, preconceito, violência, que definem muito do nosso comportamento social. Tanto ficamos abalados pela discriminação ou violência que sofremos, quanto somos praticantes dessas mesmas aberrações contra a paz. Dificilmente o reconhecemos, porém, e isso porque, dificilmente, somos capazes de ver o quanto certas de nossas ações, ou certas de nossas concepções, são violentas por serem preconceituosas, socialmente discriminantes: em suma, ações e concepções que afrontam a igual humanidade presente em cada um de nós, seres humanos. Historicamente, socialmente, o maior de todos os preconceitos e violências é a idéia de que certas pessoas são mais (ou menos) humanas do que outras. A idéia de que podemos passar por cima da humanidade dos outros, essa idéia é a mãe da violência; ao contrário, a idéia de que devemos reconhecer os outros como nossos iguais (em direitos, capacidades, oportunidades), é a única fonte possível de paz. Não é possível conceber ou praticar uma sociedade pacífica sem partir do princípio de que todos as pessoas devem ser reconhecidas como merecedoras de direitos iguais, assim como não é possível fundamentar ou garantir essa igualdade de direitos sem reconhecer que o que fundamenta essa mesma humanidade em todas as pessoas é a sua igual, real e concreta capacidade racional.





O reconhecimento dessa racionalidade em todos os seres humanos pede, em primeiro lugar, um "espírito de fraternidade". O que é isso? Não é um pedido para que todos tenham os mesmos princípios ideológicos, a mesma fé, a mesma personalidade política ou partidária, as mesmas preferências; é simplesmente um pedido por uma postura coletiva sem a qual qualquer projeto de uma sociedade pacífica não sairá do projeto: uma atitude prática em favor da concórdia social, em favor da paz social, em favor exatamente do reconhecimento público ou pessoal de que todos são seres humanos e que, assim, todos merecem os mesmos direitos fundamentais, e em função deles um igual tratamento. Sem essa base, qualquer proposta de direitos iguais será mera hipocrisia. Deve-se propor a igualdade de direitos sem considerar aquela cadeia de distinções culturais, ideológicas, materiais. Deve-se reconhecer que a razão (que todos os seres humanos possuem e que nenhum ser humano perde) é o fundamento para a liberdade sem a qual não é possível exercer a própria cidadania ou conquistar a própria felicidade. A pergunta que resta, antes de qualquer outra, é esta: até que ponto adotamos essa postura por nós mesmos, na prática? Até que ponto olhamos para o outro e o vemos como alguém que tem os mesmos atributos que nós? Ou até que ponto olhamos para esse outro e ousamos vê-lo como alguém que é inferior a nós, que é menos humano que nós, a ponto de merecermos passar por cima da sua dignidade e individualidade? Foi uma resposta positiva a esta última pergunta que tomou conta da cabeça dos nazistas e dos fascistas deste século que agora chega ao fim.





Parte 3: os artigos 3.º a 5.º





A liberdade é a marca maior da dignidade humana e social. Uma comunidade que faz da liberdade seu fundamento, é uma comunidade preparada para a democracia e para a prática da justiça.





Continuamos nossa análise da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujos 50 anos se completaram em 10 de dezembro. No último artigo, pude dizer algo a respeito de um dos princípios mais importantes da Declaração, a idéia de que todos os seres humanos merecem o mesmo tratamento e os mesmos direitos básicos em função de serem, todos, racionais. A racionalidade humana é o que torna humanos os seres humanos, igualando a todos em algo essencial, apesar de todas as diferenças culturais, religiosas, de gênero, materiais, etc. Reconhecer cada ser humano como racional é um passo primordial, sem o qual não é possível falar em direitos nem deveres. Os artigos 3º, 4º e 5º tocam, agora, num ponto delicadíssimo, talvez o mais delicado de toda a Declaração, pois se referem àquilo que é a condição mais preciosa da vida humana: a liberdade.





Artigo 3º Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.





Artigo 4º Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas.





Artigo 5º Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.





Esses artigos tratam daqueles que talvez sejam os direitos mais importantes para o ser humano, tendo à frente sua liberdade e, principalmente, sua própria vida.





Todos sabemos que a vida e a liberdade, enquanto direitos expressos dessa maneira, ou seja, enquanto direitos válidos universalmente a toda a espécie humana, são uma conquista extremamente recente. Embora pareça evidente, hoje, a idéia comum de que todos os seres humanos merecem não apenas viver, como merecem também viver em liberdade e com dignidade, nem sempre foi assim. Historicamente, tal formulação data das declarações dos direitos humanos escritas na idade contemporânea, assim como a sua concretização eficiente e em escala mundial ainda está por ser vista. De fato, o significado desses direitos é algo acerca do que precisamos refletir com muita profundidade, pois há muitos outros direitos em jogo quando se fala deles: numa palavra, todos os outros direitos não têm sentido nenhum se não forem baseados na vida e na liberdade.





Esses artigos colocam num mesmo conjunto a vida, a liberdade e a segurança. Quando se fala de um desses termos, deve-se necessariamente incluir os demais. Não é possível falar de direito à vida sem incluir nessa idéia o princípio de uma existência digna, livre e que tenha seu início e continuidade garantidos pelo Estado. Ou seja: o Estado deve garantir, em primeiro lugar, a consumação do dom da vida, da existência, o que envolve, de início, a garantia do direito de nascer e, a partir daí, a garantia de um desenvolvimento vital e social saudável. Num Estado democrático, a existência humana não é pode ser uma questão sem importância: ela deve ser a maior preocupação da sociedade política, maior mesmo do que as demais preocupações cotidianas da história política desse Estado. A vida humana deve ser o princípio primordial pelo qual o Estado e a sociedade devem orientar o seu próprio destino. Hoje, quando se fala de direito à vida, tem-se em mente muito a idéia de direito ao nascimento, apenas, e põe-se muito em questão algo como o aborto, por exemplo. O aborto, essa questão tão delicada, é apenas um instante no interior do conceito de direito à vida, ainda que constitua uma das suas questões mais importantes (e à qual não procurarei responder aqui). Importante é ressaltar que, quando falamos em direito à vida, isso significa de uma maneira geral o direito a iniciar e desenvolver uma existência humana completamente livre e digna, sem entraves ao desenvolvimento de todas as potencialidades naturais e racionais do homem, assim como ao seu desenvolvimento social, político, cultural. Em suma, quando se concebe, no mundo contemporâneo, uma existência digna, uma existência adequada para o desenvolvimento dessas potencialidades todas, está envolvida a idéia de garantir os elementos necessários para a realização dessa realidade. Assim, quando se fala em direito à vida, isso significa direito a uma vida digna, sempre. Assim como significa que a vida sem dignidade não é vida, e não merece ser vivida. Esta é uma afirmação de conseqüências complexas: Por um lado, ela pode ser interpretada de uma maneira absolutamente nefasta: "Já que a vida indigna não é vida, então vamos impedir que essa criança venha a nascer, para não cair nesse mundo cheio de desigualdades e injustiças; vamos dar um fim à vida daquele doente, mesmo contra a sua vontade, para que não sofra mais as dificuldades de uma vida com dor; vamos matar esse criminoso, já que o fato de ser um criminoso mostra que não dá dignidade à sua própria vida, assim como é um perigo para a vida dos outros etc." Enfim, intepretada da pior maneira (aquela maneira segundo a qual o conceito de dignidade é exclusivamente daquele que julga, e não daquele cuja vida recebe uma sentença), a afirmação de que "vida sem dignidade não é vida" pode se tornar um instrumento de repressão e afronta à própria vida, porque é uma afronta à liberdade. A maneira racional de interpretar essa afirmação é outra, e une, justamente, a idéia de vida e a idéia de liberdade. O homem não deseja apenas viver: porque esse é um desejo pacífico, ele o merece por completo e não há nenhum outro direito que possa passar por cima desse desejo. Mais do que simplesmente desejar ter vindo ao mundo, desejar estar vivo, o homem desejo uma vida livre, isto é, uma existência em que tenha em mãos todas as oportunidades para desenvolver os seus dons pessoais, as suas potencialidades individuais e sociais. Todo indivíduo deseja intensamente uma realidade de vida que lhe permita realizar os seus objetivos pessoais; se tais objetivos são pacíficos e há meios de realizá-los, por que não fazê-lo? Por tudo isso, todo ser humano merece não só viver, mas especialmente viver uma vida livre, no que tanto a vida quanto a liberdade devem ser garantidos pelo Estado. Mais do que simplesmente garantir o nascimento, o Estado democrático tem o objetivo e a obrigação de prover condições adequadas para a garantia da atividade e do trabalho, da saúde e da educação, da atividade política e da atividade racional.





Os artigos 4º e 5º mostram o outro lado da moeda, aquilo que o Estado deve garantir de jamais ocorra: a transformação da vida humana numa vida indigna, exemplificada, no texto da Declaração, pelas práticas perversas da escravidão, da servidão, da tortura e de todas as formas de tratamento desumano ou degradante. Faz todo o sentido que tais monstruosidades inventadas pela bestialidade humana sejam recusadas no mundo da liberdade e da democracia (afinal, são práticas absolutamente contrárias a ela), mas é surpreendente que todas elas sejam uma realidade constante ainda hoje em dia, no nosso país. Não é escravidão a prática do trabalho infantil nas minas de carvão no sertão ou nas sapatarias do interior de São Paulo? Não é servidão a recusa de direitos trabalhistas (ou suas garantias) a um trabalhador em qualquer profissão? Não é tortura o que se pratica, sistematicamente, nas nossas prisões e delegacias? Não é tratamento desumano o que se dá aos famintos dos interiores e das metrópoles, quando não se pratica neste país uma distribuição de renda sem desvios nem corrupção? Não é tratamento degradante o que se pratica sobre a população que precisa de atendimento adequado nos serviços essenciais como saúde e educação, e descobre que nada daquilo é realizado na prática como deveria? Não é este, enfim, o país da impunidade? Mesmo que o nosso país seja oficialmente democrático, mesmo que nossas leis nacionais também defendam os "direitos humanos", nós todos sabemos que, infelizmente, o Brasil é ainda um país moldado pelas desigualdades sociais e pelo surpreendente desrespeito aos direitos civis e à dignidade humana. E isso tudo não apenas por haver na nossa história diária a realização marginal ou declarada dessas práticas perversas, mas principalmente porque este é um país no qual não existem ainda instrumentos eficazes para garantir esse tratamento digno para qualquer pessoa em qualquer situação. É uma questão, fundamentalmente, de educação e investimento na razão, de maneira que deixemos de lado a prática da violência, em qualquer nível. Mas é, ao final, uma necessidade de descobrirmos o que é ser um país democrático, coisa que só seremos quando houver, para cada direito, uma garantia que não pode deixar de ser dada; e para cada liberdade, a oportunidade de se tornar um direito.





Parte 4: os artigos 6.º a 11





Assim como todo cidadão, na democracia, deve ter iguais direitos diante da lei, o Estado deve garantir que tais direitos sejam igualmente exercidos, sem discriminação nem privilégios.





Continuamos nossa leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 50 anos em dezembro último. As partes anteriores desta série apresentaram os direitos que a Declaração entende como fundamentais e prioritários em qualquer mundo democrático (direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à integridade física, a um tratamento digno sempre), mas ainda não se falou sobre a postura que o Estado deve ter diante de tais direitos. O Estado deve, justamente, não apenas garantir a sua existência na lei como deve, também, providenciar um sistema jurídico justo, onde os diferentes cidadãos sejam tratados num mesmo nível de igualdade, sem discriminações nem privilégios. Os artigos enfocados aqui (6º a 11) tratam exatamente dessa garantias devidas por parte do Estado:





Artigo 6º Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.





Artigo 7º Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.





Artigo 8º Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.





Artigo 9º Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.





Artigo 10 Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.





Artigo 11



I. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.



II. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.





Os artigos 6º a 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos procuram explicitar um significado fundamental da cidadania: o cidadão não é, apenas, alguém com direitos que devem ser reconhecidos e oficializados pelo Estado e pela sociedade; ele também deve receber, da parte do Estado e da sociedade, as garantias e meios necessários para que exerça devidamente tais direitos. Esse passo é muitíssimo importante para a consolidação de uma sociedade democrática. Se a criação dos direitos é resultado de uma difícil e interminável luta, desta luta faz parte também a garantia de que o cidadão pode reclamar seus direitos sem medo na sociedade em que vive. Já mencionei em outra ocasião uma idéia equivocada de cidadania, na qual o cidadão é concebido como, simplesmente, alguém que tem o direito de votar (porque alguém pode votar e escolher seus representantes políticos, é um cidadão). Ora, a cidadania é algo muito mais complexo e profundo, e é uma condição política devida a todos os seres humanos, independentemente de idade, sexo, religião, cor, posição social. Todos são cidadãos porque todos são seres humanos dotados de direitos e deveres dentro da sociedade em que vivem; sendo assim, todo ser humano deve, numa democracia, ter seus direitos criados, reconhecidos e respeitados. Mais do que isso: deve ter respeitada a sua posição de alguém que é um sujeito de direitos.





Temos nossos representantes políticos, sim (nossos vereadores, prefeitos, deputados, senadores, presidentes), em quem votamos, ou em quem não votamos, mas cujo governo afeta nossas vidas. Entretanto, ainda que existam tais representantes, isso não significa que não podemos exercer diretamente a nossa vida política. Pelo contrário: é uma necessidade de cada um de nós enquanto ser humano e enquanto cidadão. O destino político da nossa sociedade nos afeta diretamente, determina diretamente a nossa situação social, e devemos tomar parte na resolução dos rumos que o Estado e a sociedade devem tomar.





Passando da política ao direito, ocorre exatamente a mesma coisa. Também temos os nossos representantes jurídicos (advogados, delegados, procuradores, promotores), assim como tantos outros profissionais do direito em quem depositamos nossa confiança, nossos recursos e nossas dúvidas em diversos momentos da vida. Assim como devemos ficar atentos à maneira como atuam os nossos políticos, devemos ficar atentos quanto à maneira como atuam esses profissionais do direito, pois, já que nossos direitos individuais são manejados pela prática desses profissionais (dos quais, por determinação da própria lei, somos quase sempre dependentes para resolver nossas disputas, desentendimentos, acordos e outras relações sociais).





Uma sociedade só poderá ser justa se construir um direito justo e, principalmente, só será democrática se a sua própria justiça for democrática. Temos nossos direitos escritos na lei. Mas eles estão lá não porque seriam invenção de algum legislador, mas sim porque são nossa necessidade enquanto seres humanos, e o fato de estarem lá apenas os torna oficiais (o que é necessário para que sejam praticados no mundo do direito). Não é o homem que existe para servir o direito, e sim o direito que existe para servir ao homem; e, como estamos querendo ser uma democracia, devemos sempre ter em mente que a prática do direito nos tribunais e na sociedade como um todo deve sempre ser algo racional, que busque suprir essa necessidade de uma prática jurídica em que o cidadão seja respeitado como merece ser, e não, jamais, alguém que deva ser enganado ou prejudicado pelo fato de não ser um "especialista" ou um "profissional" do direito. Sabemos que, infelizmente, existe corrupção tanto na política quanto no direito. A corrupção, no direito, é nada mais que qualquer violência ou injustiça que seja praticada pelos profissionais do direito sobre os outros cidadãos. É aquela prática infame, pois, que passa por cima da dignidade humana e o vitima com a violência institucional que por vezes os operadores do direito exercem sobre as pessoas comuns, e com isso aquela dependência que todo cidadão tem diante do apelo a tais profissionais se torna uma verdadeira tragédia. Faz sentido que um advogado, um procurador, um delegado, um juiz, ou qualquer outro operador do direito, se aproveitem da sua vantagem institucional para ofender, humilhar, enganar, prejudicar de qualquer maneira que seja um cidadão? Entretanto, é infelizmente isso o que também ocorre com freqüência na nossa sociedade. Assim como a política vai sendo absurdamente afastada de cada um de nós, cidadãos (porque se pratica a idéia nefasta de que política é coisa só de político), também o direito e a justiça, na prática, vão sendo por vezes separados da figura do cidadão (porque se pratica a idéia igualmente nefasta de que a autoridade do jurista vale mais que a racionalidade do cidadão que é parte nos processos jurídicos). O cidadão depende dos operadores do direito, mas está à mercê, também, dos maus operadores do direito. É preciso vigiá-los, pois, e denunciar a prática, por parte de tais operadores, da corrupção e do desrespeito aos direitos humanos dos próprios cidadãos, quando ela existir. Os profissionais do direito têm o dever de tratar todos os cidadãos de maneira justa e igualitária, sem jamais desrespeitar sua dignidade pessoal nem prejudicá-lo de maneira covarde. Se não houver essa prática justa e racional da técnica jurídica, simplesmente de nada adiantarão, novamente, os direitos individuais e coletivos expressos por escritos em nossas leis: o direito na prática, que é o direito que de fato existe e é realizado, será algo completamente diferente e, pior, será completamente inadequado para a democracia, assim como perigoso para a vida da própria sociedade. É preciso um direito justo para que se construa uma sociedade democrática, e é preciso, também, uma prática jurídica institucional justa e sem nenhum tipo de corrupção. Enquanto isso não for uma realidade, também estaremos longe de nos considerarmos uma sociedade democrática.





Parte 5: os artigos 12 e 17





Numa democracia, tão importante quanto garantir as liberdades no espaço público, importa garantir liberdades para o espaço privado (propriedade) e no espaço privado (privacidade).





Os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que serão analisados desta vez (os artigos 12 e 17) não estão juntos no texto, mas dizem respeito a um mesmo grupo de direitos: os direitos ao espaço privado, que envolvem o direito à preservação do que é pessoal e, também, do que é particular. São coisas que devem asseguradas tanto pelo Estado quanto pela sociedade:





Artigo 12 Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.





Artigo 17



I. Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.



II. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.





Quando pensamos nos direitos que normalmente são tema da Declaração, quando pensamos nos chamados "direitos humanos", vêm-nos à mente, principalmente, o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à liberdade e assim por diante. Ou seja, vêm-nos à mente direitos que certamente são tidos como válidos universalmente, para todos os seres humanos, e acima de tudo (como foi dito no começo desta série) pelo fato de serem seres humanos.





Tais direitos, normalmente, trazem a idéia de um espaço público. Ou seja, um espaço onde as ações trazem conseqüências para todas as pessoas, ou em que devem ser tomadas levando-se em consideração a sociedade como um todo, ou a comunidade a que se pertence etc. A vida humana, objeto do direito à vida, é uma questão coletiva, e não individual: é uma preocupação de todas as pessoas ou que atinge a todas elas, e não assunto exclusivo de uma pessoa ou grupo. O mesmo pode ser dito a respeito da liberdade, do trabalho, da segurança e de todos os outros princípios que são, simplesmente, necessidades individuais, políticas, sociais que atingem todos os seres humanos. Por isso, quando se trata de tais assuntos, trata-se de uma preocupação pública, de um assunto acerca do qual todas as pessoas devem ter sua opinião pessoal considerada. Mas não apenas sua opinião; se estamos numa democracia, além da opinião é importante garantir que todas as pessoas possam agir de maneira autônoma da manifestação dessas necessidades, na indicação de quais direitos devem ser criados e sempre respeitados.





Ora, se existe o espaço público, existe também, em contraposição a ele, o que se pode chamar de espaço privado. Complementando o que acaba de ser dito, o espaço público é aquele onde todos os acontecimentos são realizados seja pelas pessoas em sociedade ou comunidade, seja porque tudo o que ali ocorre afeta ou afetará essa sociedade ou comunidade. Assim, a garantia da vida afeta a todas as pessoas diretamente. A garantia e a concretização das condições de segurança social, saúde e higiene, educação e expressão cultural e política, tudo isso se realiza no espaço público e vê suas causas e seus efeitos ocorrendo nele. Entretanto, embora cada pessoa seja sempre integrante de uma sociedade e de comunidades (e, por isso, esteja sempre vivendo as realidades operadas no espaço público), ao mesmo tempo cada um, também, é uma pessoa que tem uma parte de sua existência separada dessa realidade pública. Em contraposição à sua existência social, política, pública enfim, cada pessoa tem uma existência particular ou pessoal, tematizada pelos artigos 12 e 17 da Declaração: enquanto o artigo 12 trata da necessidade (e, conseqüentemente, o direito) de garantir a privacidade, o artigo 17 reconhece a necessidade (e o direito, sempre) de garantir a propriedade.





Verdade é que, quando se toca nesse assunto (o dos direitos que devem existir na esfera privada), costuma-se pensar mais no conteúdo do artigo 17 do que no do artigo 12. De fato, a idéia de reconhecer direitos que já não constituem uma necessidade social ou coletiva, mas sim uma necessidade individual (não no sentido de que só algumas pessoas podem ter essa necessidade, pois tais direitos se referem a necessidades que são sentidas por todas as pessoas; ocorre que esse sentimento é individual, não coletivo, e sua realização também é particularizada, e não coletiva) faz pensar, na nossa cultura capitalista, principalmente na idéia de propriedade. A propriedade, que é sempre uma propriedade particular (pois uma propriedade que é pública - por exemplo, as ruas, os prédios oficiais, as escolas, os museus, os hospitais, etc., sem falar na própria natureza, que é uma estrutura que deve ser protegida pelo Estado - constitui, na verdade, um patrimônio público que deve ser utilizado por todos, ou para o bem de todos), é uma necessidade humana, como todas as demais que são mencionadas na Declaração (ou que deveriam estar lá e ainda não estão), pois nenhuma existência humana pode ser construída com dignidade sem que sejam realmente garantidos os meios e recursos econômicos para que cada um possa investir no seu próprio sustento e, tão importante quanto isso, no suprimento de todas as suas necessidades materiais e no desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Ou seja, não vivemos para sobreviver, apenas; se nos sustentamos, o motivo para isso não é apenas a nossa sobrevivência. É preciso que seja garantida a cada um a liberdade de construir seu próprio patrimônio pessoal, assim como ter protegido esse patrimônio e essa propriedade. O que o artigo 17 da Declaração vem mostrar nem é a necessidade de se possibilitar a aquisição da propriedade, mas explicitamente a garantia de que a propriedade ou o patrimônio conquistados não sejam retirados arbitrariamente, violentamente, injustificadamente de seus donos. Nisso, convenhamos, a Declaração está sendo um tanto omissa: embora seja uma necessidade completamente racional a manutenção da propriedade conquistada, antes dela e como base para ela deve estar o direito a conquistar essa propriedade, o que, evidentemente, não é uma capacidade material de que todas as pessoas dispõem na nossa realidade histórica, econômica e política. Diante disso, sugiro que apreciemos o imenso valor que o artigo 17 tem em nossas realidades (pois a construção de um patrimônio é obra sempre de uma vida, não importa o tempo que tenha levado, se décadas ou semanas), pois que é realmente um direito que deve ser sempre garantido a cada indivíduo, mas que, para além disso, pensemos no que é que está por trás dessa necessidade individual, e que se opera (ei-lo aí mais uma vez) no espaço público: a necessidade (não só individual; também uma necessidade coletiva, no caso principalmente uma necessidade coletiva) de que sejam garantidas as oportunidades concretas para que cada pessoa possa alcançar todos os recursos materiais e econômicos para estruturar dignamente a sua própria existência. Quando se falar por aí em "função social da propriedade", significa: a propriedade particular não pode passar por cima das necessidades sociais; só que, mais que portadora de uma função social, a propriedade é, também, uma necessidade social.





Resta falar brevemente do artigo 12, que é heróico ao colocar como uma necessidade a ser garantida pelo Estado a própria privacidade de cada indivíduo. Na verdade, mesmo esse termo, "privacidade", é um tanto afetado pelos nossos meios de comunicação (é a "privacidade" que está em jogo, quando a televisão ou os jornais se dedicam a expor detalhes da vida íntima e - algo com que esses veículos irresponsavelmente pouco se preocupam - da segurança das pessoas). A privacidade, claro, é importantíssima. Mas o que é realmente importante aqui (e a privacidade é um detalhe seu) é a intimidade de cada pessoa. Cada pessoa deve ter direito à própria intimidade e o Estado e a sociedade devem garantir a proteção a essa intimidade. O lar de cada um não é apenas um lugar para dormir; é um lugar para viver e viver bem, e com a segurança de que ali a individualidade de cada um será completamente preservada e jamais incomodada. O único motivo para uma intromissão do Estado na intimidade do indivíduo é, novamente, o interesse público, como no caso (só para citar um) das investigações oficiais sobre a vida de certas pessoas, no trabalho das CPIs.





Parte 6: os artigos 13 a 15





Ser brasileiro significa: ser reconhecido enquanto um cidadão dotado de direitos e deveres válidos no Brasil; mas significa, também, a liberdade de deixar de sê-lo.





Continuamos a falar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 50 anos em dezembro último. Os artigos tematizados aqui dizem respeito à nacionalidade:





Artigo 13



I. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.



II. Todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.





Artigo 14



I. Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.



II. Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.





Artigo 15



I. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.



II. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.





Um dos mais antigos direitos defendidos como merecidos por qualquer ser humano é o de "ir e vir", ou seja, o de poder locomover-se para onde quiser, sem constrangimentos - ali, é claro, onde sua passagem não afronta outras pessoas nem "invade os direitos de ninguém". Esse direito de ir e vir diz respeito ao nosso direito - ou mesmo, à nossa necessidade - de nos locomovermos quando e como quisermos nos espaços que nos pertencem (nosso domicílio, por exemplo; temos o direito de nos locomover dentro dele) ou que são espaços públicos (temos o direito de ir e vir pelas ruas, praças, campos, para falar nos casos mais óbvios). Aparentemente, é o tipo de direito que qualquer Estado democrático não pensaria duas vezes em garantir aos seus cidadãos, assim como a livre locomoção e circulação de cada pessoa parece ser uma necessidade tão espontânea quanto respirar. De fato, é uma necessidade direta de cada pessoa, mas se precisou ser expressa no texto da Declaração é porque, historicamente, não se tem respeitado o seu exercício.





Hoje, vivemos num Brasil em que oficialmente não há mais ditadura; onde oficialmente não há mais, portanto, práticas abusivas freqüentes por parte das autoridades sobre a vida comum dos cidadãos. Há duas, três décadas, porém, quando as forças militares (incluindo a polícia) eram vez por outra chamadas para abafar manifestações populares ou "restaurar a ordem", era comum que qualquer pessoa tivesse esse direito de livre circulação desrespeitado, por arbitrariedade da polícia, do exército, do governo. Era ocasião, certamente, em que muitos direitos eram desrespeitados de uma só vez, especialmente à segurança pessoal, à integridade física e moral, e assim por diante, quando não se aproveitava a oportunidade para praticar mais uma tortura ou execução. Hoje, se não há mais a prática freqüente da tortura ou das prisões arbitrárias, isso por outro lado não apenas não deixou de ocorrer como ocorre de uma maneira ainda perigosíssima: o que há hoje não é uma ditadura oficial, mas uma ditadura escondida, em que a repressão é sistematicamente realizada através do enfraquecimento civil dos cidadãos. Como assim? Em outras palavras, o que existe ainda hoje como prática no Brasil é um "emburrecimento" sistemático dos cidadãos, na forma de estratégias que diminuam a sua capacidade de pensamento, percepção individual do que acontece com sua própria vida e na sociedade em que vive, e, como conseqüência, também uma diminuição da sua capacidade de agir contra essa mesma opressão, ainda que fosse sob a forma de uma simples manifestação da vontade. Temos direito de "ir e vir" hoje? Temos, oficialmente temos, sim. Mas sabemos que isso é uma necessidade nossa, ou imaginamos que é apenas um generoso presente do governo? Se percebemos que podemos ir de um lugar a outro na hora e da maneira que preferirmos, será que não seremos tentados a considerar isso uma dádiva do Estado? Ou será que, diferentemente, sabemos que essa nossa capacidade nada mais é do que a concretização de uma obrigação do Estado? O nosso direito de ir e vir é uma obrigação do Estado tão prioritária quanto todas as demais que possam se encaixar numa Declaração de Direitos Humanos. E não se restringe apenas à idéia óbvia de andar pelas ruas e pelos campos; vai muito além disso e tem que significar a nossa liberdade de andar por qualquer lugar que não seja espaço estritamente particular. Nesse sentido, se estamos em qualquer situação na qual os outros não têm direito nem qualquer outro motivo racional de impedir nossa passagem ou permanência, e acontecem de barrarem essa passagem ou impedirem essa permanência, isso nada mais é do que exercício de violência, e devemos lutar contra ela, recusando-a e denunciando-a, mas também pensando em maneiras de impedir que esse tipo de coisa venha a ocorrer. E é preciso ter bem claro que esse tipo de constrangimento pode ocorrer a qualquer momento, bem aqui no nosso Brasil oficialmente democrático. Exemplo: Um calouro de faculdade impedido pelos veteranos do curso de assistir às aulas por ter se recusado a ser ridicularizado ou violentado pelo trote; muitas vezes, o calouro se submete a essa humilhação para que tenha a garantia não desse direito (pois que não está sendo garantido, graças também à negligência de quem dirige a própria escola), mas para que não sofra violências ainda mais drásticas, que até podem levá-lo, como sabe, à morte.





E assim como existe uma morte para a vida, existe uma morte para o Estado: é qualquer situação em que não somos reconhecidos como cidadãos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos trata de direitos que devem ser garantidos a todos por serem humanos. A Constituição de cada país (como a nossa Constituição Federal de 1988) trata de direitos que devem ser garantidos a cada cidadão brasileiro. Há direitos que são garantidos aos estrangeiros, quando não estão em seus países de origem (o de ir e vir, inclusive), mas é claro que esse número de direitos é muito menor do que aqueles garantidos para um cidadão local. Seja como for, cada pessoa tem direito a ser reconhecida como cidadã de determinada nação ou país (ou seja, a ter uma nacionalidade), assim como tem certos direitos na condição de estrangeira (inclusive o de ser, efetivamente, estrangeira, procurando instalar-se em outro país: o direito de ir e vir se estende ao mundo).





Ter reconhecida a nacionalidade é algo importante na medida em que significa a oficialização da própria condição de qualquer pessoa enquanto um cidadão político. Ser reconhecido como brasileiro vale, simplesmente, enquanto uma maneira de esclarecer que se merece os direitos garantidos a um cidadão brasileiro. Assim, a nacionalidade é outra coisa que precisa ser completada por nós: se a "brasileirice" de cada um de nós valer apenas enquanto um símbolo, é o mesmo que nada; mas, se significar a nossa capacidade de sermos reconhecidos como cidadãos, e também a nossa liberdade de agirmos como cidadãos (participando diretamente da nossa vida política e social), então "ser brasileiro" finalmente faz sentido. Assim como ser o tipo de cidadão que se quiser ser, ou onde se quiser ser. Os direitos que nos são devidos pelo fato de vivermos ou termos nascido num determinado país não são, também, um presente paternal dado pela "Pátria", são nada mais que obrigação de qualquer país que não pretende ser uma tirania. O nosso pretende ser uma democracia? Pretende que os direitos e deveres nele instituídos ou praticados sejam um conjunto que faz sentido, porque as pessoas necessitam desses direitos e deveres, e não porque é o Estado quem arbitrariamente os inventa? Então, que tenhamos muito claro isto: o nosso país existe para nos respeitar enquanto seres humanos, assim como qualquer país tem essa obrigação ética. A idéia de uma Pátria brasileira, cuja simbologia vale mais que a vida de qualquer um dos seus cidadãos, é o cúmulo do autoritarismo e da violência institucional. Todo cidadão deve ter liberdade para fazer o que quiser (de pacífico, claro) no lugar em que vive não porque essa liberdade seja fruto da benevolência do Estado, mas sim porque o Estado não tem nenhum motivo racional para sequer questionar essa liberdade que é, simplesmente, uma necessidade de cada um.





Parte 7: o artigo 16





O artigo 16, de que falaremos desta vez, trata do casamento. A família também é tema de um outro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (o art. 25), mas sob um aspecto diferenciado, que será tratado em outra oportunidade. Aqui, veremos que (e por que) o próprio ato natural de formar uma família precisou ser afirmado como um direito (no caso, direito ao casamento) que deve ser garantido pelo Estado:





Artigo 16



I. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.



II. O casamento será válido somente com o livre e pleno consentimento dos nubentes.



III. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.





Família e casamento são coisas diferentes, é claro. É claro, também, que ambos têm relação entre si. Resta saber, porém, se família e casamento são coisas que ocorrem ao mesmo tempo, ou se uma vez depois da outra (e, neste caso, qual delas). O que é a família? Que significa dizer que ela "é o núcleo natural e fundamental da sociedade"? A Declaração não define o que é a família, apenas diz o significado que ela merece ter dentro de uma sociedade. Mas o que ela é exatamente? E o casamento? O casamento de que a Declaração fala é a cerimônia de casamento (que "fundaria" uma família) ou é algo idêntico à própria família, referindo-se já não apenas aos nubentes, mas também aos seus filhos?





Este artigo da Declaração se refere propriamente mais ao casamento do que à família (pois menciona o matrimônio tendo em vista o seu significado jurídico, e não qualquer outra qualidade que se queira atribuir a ele), e mais ao ato do casamento do que à forma familiar que dele possa decorrer (pois que se refere aos momentos jurídicos graças aos quais ele se forma, se mantém ou se dissolve, e não à maneira como deve ser concretizada uma família, segundo tal ou qual orientação moral, social ou religiosa). Em termos mais simples: os direitos que estão sendo sugeridos aqui são o direito à fundação da união conjugal, o direito à preservação da união conjugal, o direito à extinção da união conjugal e, também, o direito ao reconhecimento dessa união conjugal enquanto uma família - reconhecimento solicitado tanto à sociedade quanto ao Estado.





A Declaração Universal dos Direitos Humanos não é uma coleção de preceitos morais, nem tem a intenção (e nem o direito) de interferir nos valores morais de cada um. A força da Declaração está em listar uma série de necessidades humanas (individuais ou sociais) que merecem ser oficializadas enquanto direitos, de maneira a permitir a concretização de uma comunidade política ou social mais justa, ou seja: mais pacífica e menos violenta (e seu um dia isso for possível, uma sociedade totalmente pacífica e em nada violenta). Por tudo isso, a Declaração não vem fazer juízo de valor a respeito do que deve ser uma família, de como ser a estrutura particular de uma família, de quais devem ser os costumes de uma família, etc. Não é assunto para a Declaração, e sim para o senso moral de cada um. Mas é assunto para a Declaração deixar claro o seguinte: seja qual for a qualidade que venha a ser atribuída à família ou ao casamento (por nós ou por algo fora de nós), enquanto estas realidades não forem observadas, em primeiro lugar, como um direito civil que todos os adultos merecem livremente, algo estará errado na própria concepção de casamento ou família, pois nessa situação tanto o casamento como a família estarão sendo concebidos apenas como uma instituição de obrigações, e não enquanto uma prática livre e autônoma, e muito menos uma prática de assistência e amor.





Hoje, o ato jurídico do casamento é coisa simples, oficialmente acessível a qualquer adulto. E embora seja verdade que, nesse sentido burocrático, "casar é fácil, difícil é descasar", os instrumentos de dissolução da sociedade conjugal são muito mais acessíveis e, principalmente, praticados do que há alguns anos ou décadas. O número de separações e divórcios aumentou consideravelmente, numa proporção maior do que o número de casamentos civis, embora estes tenham acompanhado o crescimento da população. O reconhecimento de tais direitos, assim, parece não ser problema na nossa prática, em particular. Pelo contrário, é um direito que tem sido motivo de tanta preocupação que, há anos, as sociedades conjugais de fato (os casais amasiados, "amigados") são concebidas como válidas da mesma forma como são os casamentos civis, desde que comprovada a constância da união. Assim, na lei brasileira, a própria idéia de casamento há muito tempo vai além da idéia de casamento civil, ainda que este seja dotado de meios mais imediatos de segurança jurídica ou comprovação oficial da união (situação mais eficaz para a segurança civil dessa união, por exemplo, quando há filhos desse casamento).





Se assim é, a lei brasileira e a Declaração (compatíveis no que respeita a esse assunto) fazem lembrar que, se o casamento deve ser reconhecido e respeitado civilmente, é porque trata-se de uma realidade de fato e uma realidade de liberdade, antes de ser meramente um burocrático conceito jurídico ou moral.





Assim, quando se exige proteção ao casamento e à família dele decorrente, eis que, primeiro, a família é concebida finalmente como algo decorrente do casamento; ou seja, conceber um certo conjunto de pessoas como uma família é concebê-lo como sendo fundado ou preservado pelo livre consentimento e desejo dos nubentes e demais integrantes; uma família não começa sem ter sido livremente fundada, assim como não se extingue, e principalmente não se preserva, sem que se mantenha essa mesma liberdade. É uma questão interessante nos perguntarmos sobre qual deve ser a qualidade dessa liberdade para a criação, extinção ou preservação de uma família.





Em segundo lugar, e mais importante no que diz respeito ao pedido dessa "proteção à família", é preciso que o Estado ofereça todos os recursos para que essa prática da família, que é fundada por uma prática do casamento (de fato ou de direito, não importa) seja uma prática livre e, sendo livre, que possa ser pacificamente preservada em sociedade caso os integrantes do casamento ou da família assim o desejem. Dessa forma, o que se busca alcançar aqui é algo muito mais profundo que os instrumentos burocráticos que permitirão iniciar ou extinguir uma união (ainda que estes sejam de suma importância por uma questão de garantias civis): busca-se garantir, em especial, a preservação da família no sentido de preservação da liberdade de formar uma família ou de ser parte dela. A "preservação da família" mencionada na Declaração não é algo concebido em um sentido estritamente moral, mas antes de mais nada (antes mesmo dessa imagem moral, que sempre é depositada sobre a família) é uma afirmação da importância e da realidade da família enquanto uma questão de liberdade.





Mais que ser reconhecida enquanto uma questão de direito (conceito técnico jurídico de casamento ou de família) ou enquanto uma questão de fato (realidade social ou histórica dessa prática), a família, essa pequena comunidade de pessoas unidas pelo parentesco de sangue ou de vontade, é algo cujo sentido jurídico e cujo sentido de fato decorrem de uma questão de liberdade: a necessidade humana de unir-se a outras pessoas numa relação de assistência, intimidade, amor - e jamais de domínio, sofrimento, crueldade, desrespeito, violência.





"Casar é fácil, difícil é descasar", essa pode ser uma realidade preocupante para uma visão moralista do casamento e da família. No que diz respeito, porém, a uma visão racional e realista do casamento e da família, o que preocupa mais é outro problema, a violência familiar. Essa é uma questão social, não particular de cada núcleo familiar. Qual ser humano deseja ser violentado? Nenhum. Qual ser humano deseja violentar? Alguém que, como o primeiro, mas por outros motivos, também precisa de ajuda. Quando se falar, pois, em segurança à família a partir do Estado e da sociedade, que seja, em primeiro lugar, essa assistência vinda na forma de instrumentos contra a transformação da família num meio privado de violência. Não é disso que necessita nenhum ser humano, não é nisso que se baseia o desejo humano de estar com os outros seres humanos.





Parte 8: os artigos 18 a 30





Os direitos sociais e políticos são, também, direitos humanos, e o reconhecimento de direitos individuais envolve o reconhecimento de tais direitos para a vida social e política





Chegamos ao fim da nossa leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Neste epílogo, são apresentados os demais artigos da Declaração, que tratam mais apropriadamente de direitos referentes à vida política e à vida social:





Artigo 18 Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.





Artigo 19 Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.





Artigo 20



I. Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.



II. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.





Artigo 21



I. Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.



II. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.



III. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.





Artigo 22 Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.





Artigo 23



I. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.



II. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.



III. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.



IV. Todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.





Artigo 24 Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.





Artigo 25



I. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.



II. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.





Artigo 26



I. Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnica profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.



II. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.



III. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.





Artigo 27



I. Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.



II. Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.





Artigo 28 Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.





Artigo 29



I. Toem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.



II. No exercício de seus direitos e liberdades, Todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.



III. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.





Artigo 30 Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e liberdades aqui estabelecidos.





Estes artigos tratam de questões importantíssimas. Quando pensamos em direitos humanos, é comum pensarmos em direitos que dizem respeito, mais diretamente, àquilo que cada indivíduo merece, em razão de suas necessidades e desejos pessoais ou particulares. É claro que sempre concebemos cada pessoa como estando em conjunto com as demais (seja em família, seja no trabalho, seja em sociedade de uma forma geral).





É preciso ir mais longe, porém. Cada um de nós é um ser social. Ou seja: da mesma forma que cada um de nós tem uma existência e identidade particular, também é verdade que essa existência se reconhece e se realiza somente dentro da vida em sociedade. Sem a vida em sociedade, a propósito, não faz sentido pensar na idéia de direitos humanos. Sem que nos concebamos como pessoas no meio de outras pessoas, de que adianta conceber que temos este ou aquele direito? Todo direito individual só é realizado dentro da vida social ou comunitária.





Mas há, além dos direitos individuais, aqueles que são direitos sociais. Trata-se de direitos que são devidos a cada pessoa, ou a determinados grupos, dentro do contexto da própria vida social. Se a vida e a educação são direitos devidos ao indivíduo, por exemplo, serão direitos sociais o trabalho, a escolha da profissão, a participação na vida política, a maneira de educar os filhos.





A Declaração termina afirmando a necessidade de todo Estado livre e democrático garantir os direitos sociais e coletivos. Não basta, nesse caso, colocar à disposição dos cidadãos uma listagem de serviços sociais, como educação, assistência à saúde, saneamento básico, segurança pública. É necessário garantir ao cidadão a capacidade prática de participar diretamente na vida pública e social em que está inserido. O cidadão não deve, nunca, ser passivo diante da sociedade em que vive, não deve nunca ser inerte dentro da comunidade em que atua. Ao menos, deve ter à sua disposição os meios para ter uma posição ativa sempre que assim quiser. Se a educação é uma necessidade humana e, por isso, um direito humano individual, então são direitos sociais (porque são necessidades sociais dentro de uma democracia) a escolha da melhor prática pedagógica e a participação direta na avaliação e desenvolvimento dessa prática pelas escolas (porque a educação não é um bem particular, mas sim uma necessidade de todos). Isso vale, também, para a saúde (o Estado deve garantir ao cidadão o direito de ter sua saúde assistida, assim como o direito de opinar quanto à maneira como a saúde pode ser tornada um benefício acessível a todos), para o trabalho (não basta ter direito a trabalhar: é preciso ter direito a escolher a própria atividade, assim como é preciso fazer do trabalho uma maneira de viabilizar o desenvolvimento da própria vida pessoal) e para tudo o mais. Numa palavra final: nosso Brasil só será uma democracia, verdadeiramente, a partir do momento em que toda necessidade pessoal ou social for um direito e, o mais importante, quando for uma realidade concretizada de forma consciente, transparente e para todos acessível.





Série de oito artigos, publicados na revista católica O mensageiro de santo Antonio, Santo André, dezembro 1998 a novembro 1999.



Fonte: http://sites.uol.com.br/grus/quesaodh.htm



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