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Contos-->Atávicos -- 01/06/2001 - 14:44 (Ari Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ATÁVICOS



I – O Pai


Abre os olhos sonolenta e preguiçosamente ergue os braços sobre a cabeça. Limpa da garganta o pigarro, restando um gosto amargo na boca. “Devo fumar menos”. Está frio, a porcaria do aquecedor estragou novamente, mesmo assim, deve levantar-se, precisa cuidar das arvores. Levanta-se de supetão. Tira o pijama e veste sua roupa de brim usada apenas para sua lida no pomar.
Olhando-se no espelho, o rosto molhado, passa a ponta dos dedos ao redor dos olhos. As rugas começaram. O tempo inexorável estava fazendo efeito em seu rosto. As rugas têm aumentado significativamente nos últimos meses. Saudade? Ora bolas, saudades do que? De seu tempo de juventude, de suas loucas e desenfreadas noites de orgias e festas? Não! Decidira há muito tempo que não queria mais isso, que procuraria viver o tempo que lhe restava sem procurar o que não seria encontrado, afinal chegara ou não chegara a conclusão que a vida nada mais tinha a oferecer do que a própria vida? “Sim! Mas algo tem que falta! Ora vejam só! Um pensamento perigoso! Há quanto tempo? Malditas perguntas matinais! Sem sentido e frustrantes! Era sempre a mesma coisa!”. Logo o dia iria recomeçar e sua segurança voltaria, o que precisava era de um bom gole de café. Volta-lhe uma estranha sensação. Teria sonhado? “Provavelmente! Os sonhos não ficam em minha memória há muito tempo! O último quando foi mesmo? Ah! Sim! Aquele sonho recorrente! Quando foi? Como é mesmo o sonho? Que merda de memória!”. Não saberia explicar porque era recorrente, sabia apenas que lhe transmitia uma sensação de já ter passado por aquilo muitas vezes e muitas vezes sabia que tinha este sonho e ficava um bom tempo tentando lembrar dele, nunca lembrava, muito tempo depois um fato qualquer o fazia lembrar e então as sensações voltavam, um vazio..., uma vontade de fazer algo..., alguma coisa estava sendo deixada de lado..., já estava acostumado-se com o vazio constante que nunca conseguiu preencher.

“Como pode uma pessoa fazer-se notar com sua ausência?” Jamais teria resposta para esta pergunta. Sempre fora assim, quando junto dela sentia-se mal, prisioneiro, sem ar. Longe, o vazio, a insegurança, o tédio e a solidão.

O filho passa por ele e lhe dá bom dia, entrando no banheiro. Sorri para ele. Sempre o acompanhando, mesmo que levantasse de madrugada, logo estaria no pomar com ele. “Estaria bem?” Talvez devesse ter uma conversa com o filho sobre a bebedeira da noite passada, não que se importasse, mas era a primeira vez que ele chegava em casa assim, sabia que fora causado pela tentativa de discutir com ele a sua viagem. “Ele é forte, vai superar! O que eu poderia aconselhar?”.
Dirigi-se a sala e liga o som. Com a musica, sua calma e tranquilidade retornam. A solidão desaparecia com os compassos da música soando pela casa. Em todas as peça, tinha acústicas para que pudessem ouvir musica onde estivessem. Chegou a planejar um sistema para implantar som no pomar, desistiu quando viu o orçamento. A Faculdade do filho era cara, não conseguiu passar numa pública e tinha que custear uma particular mesmo. Na verdade não desistiu, adiou, pois a ideia continuava presente. “Teria a viagem! Agora apenas isso importava”. O som no pomar ficaria para mais tarde, ou quem sabe o filho fizesse isso. “Até parece que pretendo voltar”. Olha para a sua coleção de CDs e já começa a imaginar quais levará consigo. “Não importava!” Na verdade para ele música era música, desde que fizesse barulho. Tinha que ter barulho, algo que penetrasse sua mente e ocupasse seus pensamentos. Odiava o silêncio. Foi um dos motivos pelo qual concor-dou com a vinda do filho para sua casa.” Não consigo lembrar de outro “. Embora não se falassem quase nada, o entendimento entre eles sempre foi de gestos, olhares e sinais, seria uma presença física que não cobraria muito, o garoto sempre fora caladão e não muito chegado a afetos.” Que estranho relacionamento!”. Novamente o incômodo da situação, o mal estar e a sensação de que devia fazer algo urgentemente, invade sua mente, seu coração palpita e lembranças amargas de sua juventude retornam. Como pode sujeitar-se a ter com o filho o relacionamento odiado que tivera com seu pai? É uma pergunta angustiante e terrível. Não soubera e nem saberia fazer diferente.” De que adiantaria discutir e conversar com amigos? Todos idiotas! Até tentei ler alguns livros de auto-ajuda, pareciam feitos para débil mental.Um psicólogo ou um psiquiatra até que me passou pela cabeça, faltou coragem, talvez o problema seja eu mesmo, acredito que sou eu!”. Era um costume, uma forma de viver, um modo de vida. Como mudar o que era imutável? Para fugir desses pensamentos, resolve ir podar e adubar as árvores do pomar antes do café.” Seria bom um jejum”.
O maior de seus orgulhos, o maravilhoso, o invejado, o elogiado pomar de quinhentos metros quadrados no fundo da casa. Já estava faltando espaço. Levara vinte anos desenvolvendo, cuidando, curando e criando. Pacientemente, como se estivesse criando um novo mundo. “E estava! O meu Mundo!” Conhecia cada centímetro de cada arvore e chão, vira o desenvolver lento e metódico da natureza. Ali era Deus. As árvores precisavam dele, sem ele não eram nada. O filho o ajudava, mas sozinho nem chegava perto do pomar, sabia que era uma possessão sua, que por sua benevolência permitia que o ajudasse. Tinha obsessão por plantas frutíferas. Até na frente da casa tinha algumas. Sentia-se bem e adorava ver o seu desenvolver, elas eram constantes, não alteravam o comportamento. Tinha medo das coisas inconstantes e desconhecidas. Desistira de re-lacionar-se amigavelmente com as pessoas simplesmente porque não as entendia. Eram seres obscuros, incógnitos, cheios de nuanças que em vez de o atraírem, afastavam-no. Lutara contra isso na época de seu casamento. Foram anos a fio de tortura silenciosa e angustiante. Amava a mulher, sempre a amara. O problema estava no relacionamento, ele era um ostracista por natureza, ela do tipo sociável. “Se fosse só isso a gente resolvia”. O maior problema estava nele, em sua mudez e estranha maneira de se comportar perante outras pessoas. “Na intimidade!” O problema maior era sempre a intimidade. Socialmente fazia seus esforços e procurava conviver bem, às vezes até conversava, dava opiniões, embora nem sempre agradasse as pessoas e muitas vezes fosse inconveniente, mas para ele era tudo normal. Não sabia... “ou não conseguia?” conviver com outras pessoas na intimidade diária. A atenção exigida era demais para ele. Não soube como, nem porque, mas de repente sua mulher resolveu ir embora. Não houve brigas, reclamações e o que geralmente acontece numa situação dessas. Era o alivio, a volta da calma e da tranquilidade. Pareceu-lhe que o fim, assim como o inicio tinha sido e chegou sem sentido, sem um motivo aparente, mas, “sempre tem um mas”, tinha o garoto.
Tiago foi morar com a mãe, mimado e choramingam vivia agarrado a ela. Até os onze anos, visitara-o de vez em quando. Chegava e se ia sem muitas palavras. Sem muitos afagos, carinhos ou qualquer afecto menor. Ficavam os dois juntos, ou lendo, ou escutando música ou vendo filmes na televisão. A compreensão era muda, assim como o relacionamento. Não havia necessidade de palavras. Eles nada tinham a dizer um ao outro, bastava-lhes a companhia, a presença física do outro.
Tudo ia bem, até Tiago vir morar com ele de vez. Sua mãe morreu num acidente de carro, da forma mais idiota possível, um caminhão literalmente passou por cima do carro. Ela estava estacionando o carro em uma rua e um caminhão perdeu a direção e passou por cima do carro dela e demais três pessoas. Tiago estava no carro, por algum milagre foi jogado longe, ninguém soube explicar, mas nada aconteceu a ele. A mãe foi esmagada, não sobrou nada inteiro. Durante o primeiro mês ele foi para a casa dos avós, pais de sua mãe. Depois acabou aparecendo de repente, não viu necessidade em comunicar-lhe que ia morar ali, chegou e abancou-se como se fosse sua a casa. Tentou conversar com o filho a respeito, ou pensou? “Talvez nem tenha tentado, apenas pensado, não lembro mais”. A verdade é que não gostou e deveria ter dito ao filho. “Não disse! Ele mostrava, tanta infelicidade e medo da vida que achei melhor calar-me. Mas ele deveria ter ido morar com os avós, que tudo fizeram para que isso acontecesse”.

Jamais se preocupou com o filho. Desconhecia se ele fumava, “muito improvável, aquela implicância com o seu vício lhe dizia que não”, se bebia “odiava a bebida, vi uma vez ele tentar beber uma cerveja e sentir ânsia de vômito, outra vez o convidei com um gole de whisky, coitado! Quase teve um enfarte de tanto tossir. Não! Ele é um pouco melhor que eu, não fuma e nem bebe”. Na verdade dera-lhe toda liberdade de ser o que bem entendesse, porque se sentia seguro em relação ao filho, nunca imaginou o garoto fazendo qualquer coisa errada e sequer teve motivos para alertar-se quanto a isso. “Pelo menos nunca intervi em nada, sequer nos modos ou jeito de vestir e ser”. Desde que viera morar consigo o rapaz, fazia tudo sozinho. Sua atenção para o comportamento do filho foi sendo despertada aos poucos, o tempo foi mostrando que o que era seu costume virou comportamento no filho. “Isso me assombrou”. Viu dentro de casa um outro Sérgio perambulando de sala em sala, perdido, sem saber o que fazer, sem ter aonde ir e totalmente só. Sentiu-se derrotado por si mesmo, O medo que tinha das pessoas virou-se contra si. “Eu era insuportável!”.
Ninguém lhe aturava, sabia disto, amigo não tinha nenhum, nem queria ou fazia questão de ter. Seu filho já era mal visto por seus colegas antes mesmo de conhece-lo. Odiava as conversas de seus colegas sobre filhos. Todos tinham problemas, sempre no meio do bate-papo, acabavam voltando-se para ele, que nunca dava sua opinião em nenhum assunto, “por que deveria neste em particular?” A sua resposta era sempre a mesma, “Meu filho não me dá problemas”, mas os cretinos com a pergunta cretina lá estavam “Seu filho continua sem problemas, Sérgio?” Maldade? Ironia? Inveja? É, só podia ser inveja dos filhos não serem iguais ao seu, ou até quem sabe, não acreditassem nele. No entanto, o que ficava era o mal estar, era a sensação de que algo estava errado com o filho, tinha que estar. O que tinha ele para ser tão calmo e sereno? Por que era tão obediente e submisso? Por que não questionava as coisas? Por que gostava das mesmas coisas que ele? Por que preferia ficar em casa, em vez de sair? Não tinha resposta. Nunca perguntara ao filho, não tinha coragem, a resposta dele poderia não ser o que esperava.

Quando surgiu a oportunidade de voltar para Portugal, não pensou duas vezes, voltar a sua terra e a terra de seus pais e parentes. Era a solução, o filho ficaria, deixaria a casa, o carro e um bom dinheiro para ele se manter por alguns tempos, “até decidir-se a fazer alguma coisa na vida”. Não pretendia voltar mais, Tiago não precisava saber disto, mas ele próprio precisava crescer, encontrar--se. Talvez quem sabe um dia poderiam reencontrar-se como duas pessoas adultas. Como explicar ao filho sua decisão? Tivera noites e noites de insônia tentando encontrar uma forma que não chocasse o rapaz. Ele próprio não tinha palavra, para definir exatamente a situação. Não conseguiu conversar com Tiago, fez várias tentativas, ele sempre fugia do assunto. O rapaz sabia o que estava acontecendo, sabia que ele iria de qualquer forma, mas procurava ignorar.
Nota que Tiago está parado há algum tempo na varanda da casa, senta-se na espreguiçadeira. Estranha o fato dele não ter ido ajuda-lo, mas continua seu trabalho, talvez devesse ir conversar com ele, talvez finalmente os dois pudessem discutir a sua viagem, afinal a hora estava chegando, tinha apenas uma semana pela frente e muita coisa para preparar. “Tantos talvez!” Sua vida era feita de talvez. “Talvez, talvez, talvez... palavra chata! Bem que podia (talvez) dizer ao filho que era tão criança quanto ele e que se achava mais criança ainda. Por que não? Por que não abrir seu coração essa é boa! Agora penso em coração! O que estaria acontecendo?” Agachado sobre o canteiro de mudas, continua a olhar o filho parado na varanda. Uma pequena sensação de mal estar toma conta de seu espírito, indelével, sorrateira, como se aquela cena estivesse predestinada a acontecer por muito e muito tempo.


II – O Filho


“Afinal, aquele ônibus saia ou não?”. A pergunta surgiu de repente no turbilhão de pensamentos em sua mente, o mais importante de tudo era isso. ”Este ônibus anda ou não?” Grita para o motorista. Alguns passageiros riem, concordam com ele e reafirmam a pergunta, outros continuam lendo revistas, livros ou indiferentes. Olha para sua vizinha de banco. Ela esta olhando para frente, rígida, tal qual estátua. É uma dos indiferentes, o mundo pode desabar ali fora que não movera nem um músculo. “O resto é o resto, eu sou eu!”. Murmura olhando-a fixamente. Nada! Nenhuma reação! Ou seria um robô? Isso! Gosta de robôs! Não são humanos e nem têm sentimentos, eles não pensam. Continua a olhá-la fixamente. Ela não nota o olhar ou finge não notar. A imagem da mulher balança, rodopia “Será que o ônibus saiu? Não consegue ver, só vê roupas, pernas e braços.” Como enchem estes ônibus. Falta de respeito total com o cidadão, ninguém reclama, ninguém diz nada, só se ouve alguma coisa em época de eleições. Acho que vou começar alguma coisa na escola “. Estava terminando o segundo grau, iria para a faculdade no ano seguinte, talvez não fosse assunto para ele e nem para discutir em aula, afasta o pensamento.” Mais tarde vou pensar nisso “.
O ônibus esta andando, sente os solavancos. Olha novamente para a vizinha do lado. É disforme, o nariz torto, os olhas miúdos, bochechas gordas, redondas, salientes, sem expressão alguma. “Um mondrongo” A palavra salta em sua mente. “Sem dúvida alguma”. Seu pai, português de nascença, gostava de usar esta palavra. Sem poder controlar-se, numa curva, seu corpo, seu rosto, aproxima-se do dela. Ela recua o dela, faz uma careta de nojo e repulsa, abana a mão no nariz, provavelmente sente o bafo forte da bebida exalada por sua respiração ofegante. “Por favor!”, reclama a moça, ele está quase por cima dela, retrai-se um pouco tentando ajeitar-se no banco. “Cuidado!”. Exclama ela, empurrando-o um pouco, delicadamente e abaixando os olhos ao sentir os seus fixos nela. “Cuidado??”. Pergunta alto. “Por que? Eu não estou preocupado em ter cuidado. Com o que?”. Completa, arrastando as sílabas. Sente a língua presa, massajei-a contra o céu da boca. O que houve com sua língua, pergunta-se ”Será a bebida? Deve ser“. Nunca bebeu tanto assim, o próprio corpo está dormente, mole...”Até que é gostoso, uma sensação boa, estranha..., como se tudo importasse, as coisas parecem ser mais do que são”. Ele parece ser mais forte, tudo parece fazer sentido, “por que aquela porcaria ali do lado não dava bola?” Isso era, com certeza, por outros motivos, ia descobrir, se ia, não ia deixar por menos aquela indiferença falsa...”Por favor” volta a reclamar a moça, desta vez forçando as sílabas e soletrando as palavras pausadamente. Aquilo lhe soa tão falso que começa a rir na cara da moça. “Não seja petulante! Você está bêbado!”. A expressão de nojo acentua-se e ela faz menção de levantar-se. “Petulante? Ora vejam só!” Ele fala alto e todos ao redor começam a rir. De quem ele ainda não sabe, duvida que alguém esteja entendendo a situação. “Por que estou bêbado? É isso? Não devo ser petulante? Não entendi! Realmente!”. A coitada está agora vermelha qual um pimentão, retrai-se contra a parede do ônibus e olha para fora, pelo vidro, ignorando-o completamente. Os outros passageiros riem um pouco mais, mas logo voltam ao seu mundo particular. Não vai deixar por menos, Ah isso não. Levanta a voz e diz o mais claro possível, procurando salientar bem as palavras: “O que tem o cú a ver com as calças se as cuecas estão no meio? Humm?” Ela solta um gritinho, quase um gemido e levanta-se ofendida. Não existindo mais banco vazio, fica em pé, o mais longe possível dele. Ri zombeteiro não sabe porque fez aquilo. Talvez por ela ter se mostrado tão indiferente e superior. Depois, ainda por cima, chamou-o de petulante, sem mais nem menos, talvez nem soubesse o significado de palavra. Olha para ela novamente como querendo confirmar sua suposição. “Tem todo o jeito de não saber”. Desvia o olhar dela ao sentir os olhares de reprovação dos outros passageiros. Sacode os ombros não dando importância alguma. “Que se fodam”.

Um rapaz, mais ou menos de sua idade, continua a olhá-lo insistentemente. Lembra-lhe um coleguinha que tivera, vizinho seu que mudou de endereço. “Seria ele?”. Não tem certeza, em todo o caso, levanta a cabeça e faz um gesto arqueando as sobrancelhas, o rapaz sobressaltasse e abaixa os olhos. “Com certeza algum bichinha, coisa comum hoje em dia, sinal da liberação dos costumes”. Equilibra-se melhor no banco, a cabeça gira. “Logo passa, também, por que bebi tanto? Culpa do Sérgio! Saia! Beba! Dance! Trepe! Sofra! Ria! Pelo amor de Deus! O que era aquilo? O homem resolveu derrubar o mundo nas suas costas?”. Sacode a cabeça como se quisesse jogar fora as palavras do pai. Não adianta, estão soltas no ar, rodopiando ao seu redor. “Como se fosse fácil! Por que Sérgio dissera aquilo? Deveria achar que ele era um babaca, que não fazia nada para se divertir na vida, talvez! Mas o que era divertir-se?”.

Pensa então na mãe, sente saudades, talvez um pouco de angústia. “A idéia da morte para mim sempre teve cheiro de mofo, ressecamento, falta total de água, inexistência de luz.”, Memórias das múmias do Egito antigo com seus dentes a mostra e globos oculares vazios viam a sua mente quando pensava em morte. Lembra seu escritor preferido, que diziam , os críticos, ser apaixonado pela morte. “Hemingway! Ele dizia que os espanhóis conheciam e sabiam muito bem o que era a morte , até escreveu dois livros sobre o assunto... o Sol Também se Levanta e..., poxa! A memória esta fraca? Ou é a bebida?...O outro... o outro... é! Morte na Tarde! Isso! Dizia que eles, os espanhóis, quase lembro da sentença exata... - sabem que a morte é a realidade inevitável ... Isso, isso mesmo, a bebida nos dá uma clareza na mente... como as coisas ficam mais fáceis...a continuação... qual é mesmo... a única certeza que está além de todos os confortos modernos. Yééé´!!! Sabia que lembraria! Pois é, parece que a idéia da morte que eu tinha de repente me parece ter sido colocada em minha mente como antagonismo ao que eu gostava e achava agradável, portanto, os confortos modernos, a que hemingway se referia não estariam de alguma forma ligados a minha idéia sobre a morte?”, sacode a cabeça, talvez os pensamentos possam esvoaçar pelo ar, sempre que pensa na mãe, é isso, tenta explicar algo, tenta justificar...Mas de uma coisa tem certeza, ela transmitia-lhe uma segurança e conforto que não tinha com o pai.

O pai mudou o relacionamento dos dois, disso não tinha dúvidas. Não o entendia mais era como se estivesse morando com um estranho. “Que decisão mais esdrúxula! Como aceitar?”. Não discutia o assunto, sequer lhe dava chance. A última tentativa do pai culminara com aquelas palavras, que ficavam ali, dançando ao seu redor, excitando-o, mexendo com coisas adormecidas dentro de si.

Logo que foi morar com o pai, deveria ter doze anos, era diferente. Morando com a mãe tinha a liberdade de sair e trazer quem bem entendesse para casa. O pai logo no início cortou essa liberdade. Não reclamou e nem sequer tentou alterar qualquer coisa. “Gostei era bom estar com ele”. Conversavam, pouco, mas conversavam, ouviam música, aprendera a ler bons livros, cuidavam do pomar, enfim acostumara-se a conviver com a solidão. Afastou-se dos amigos, os poucos que tinha. “Sentia-me bem!”. Afinal não precisava mais ter embates desgastantes tentando entender as pessoas. Às vezes sentia-se só, falta dos amigos. Ouvia na escola de um e outro os locais de encontro da turma e ficava com vontade de ir. Muitas vezes aprontava-se para sair, na hora, olhava para o pai, que nunca dizia nada. Esperava um gesto, uma palavra, qualquer coisa! Nada! Acabava desistindo de sair. “Afinal de contas, nunca consegui me enturmar mesmo”. Não que fosse tímido, na escola até que era um bom colega, mas os papos sem pé nem cabeça dos colegas nada lhe diziam. Preferia ficar com o pai. “Só que ele nunca saia, sempre em casa, cuidando do pomar, ouvindo musica e lendo” E assim os anos foram passando, tranquilos, calmos e serenos.

Olha através do vidro da janela e nota que está chegando no seu ponto. Levanta-se e posta-se na porta. Puxa a corda da campanhia e lança um último olhar à moça. Continua do mesmo jeito, balança-se apenas com o sacolejar do ônibus, olhar para frente, indiferente, distante. O ônibus para, ele desce. O frio está cortante. Uma neblina grossa paira sob a rua, mal se vê as luzes e as casas. Fica no ponto alguns minutos. Precisa coragem para chegar em casa Sabe que o pai está esperando. Descontrai-se um pouco, pulando no teto da guarita, agarra-se nos ferros e balança-se. “Adorava fazer isso quando criança!”. Respira fundo varias vezes e decide-se finalmente a ir para casa.

Abre a porta de entrada que dá direto na sala de estar e lá esta ele. Sentado na sua poltrona predileta, escutando musica e fumando um maldito cigarro. “Sente-se!”. O pai sequer levanta a cabeça, a ordem sai seca, automaticamente obedece. “Pelo menos apague esta porcaria!” Aponta para o cigarro. “Ou então me convida com um, assim não sinto tanto a fumaça”. O pai não lhe responde, amassa o cigarro no cinzeiro, levanta-se, dirige-se ao lavabo e esvazia o cinzeiro no lixo e lava-o, volta com o cinzeiro limpo, colocando-o sob a mesa de centro. “Se você estivesse aqui, eu não teria fumado, sabe disso!”. Os dois sentam-se frente a frente, aquela pequena inversão de papeis sempre incomodava o pai, aproveito-se da situação para deixá-lo mais sem jeito ainda. “Não sei quando você vai parar com isso!”. O pai não responde. “Minha cabeça está rodando, bebi um pouquinho além da conta, sabe?” Diz sem jeito. “Acho que vou ficar em pé, se sentar acabo dormindo”. “Então vá dormir”. “Você não quer conversar?” A pergunta sai baixinho, controlada. “Não se você estiver com sono. Temos tempo. Pode ser amanhã”. Ah não se tem que ser, que seja hoje. Posso ficar em pé?”. Levanta-se.” Sei que você não gosta de conversar com ninguém assim, mas não dê importância, só por alguns instantes. Vá lá pode soltar o sermão!”. Uma boa tentativa de jogar com o pai, com certeza, mas ele não era burro, não ia cair nessa.” Sermão? Por quê? “.” Ora, bolas! Não dá pra ver que estou bêbado? Todo mundo no ônibus notou, uma rapariga até me chamou de bêbado petulante!”. Ri forçado, como se aquilo fosse muito engraçado. Se ele não cair nessa? Nunca me viu assim, pelo menos fiz o que ele queria.” Realmente! Seria sem importância alguma se não tivesse ligado a um problema. “Tudo bem filho! Amanhã a gente conversa, hoje é impossível! . Precisamos falar sobre minha viagem, você sabe muito bem “.” Posso ligar o rádio?”. Olha para o pai inseguro, um tanto sem jeito e sem saber direito o que está dizendo, tentando a fuga.” Tudo bem, fique a vontade. Vou dormir, boa noite!” O pai sai da sala. Suspira aliviado. ‘Mais tempo, consegui mais tempo.” Sabia que teria que enfrentar a situação, mas quanto mais tarde, melhor. Se tivesse a mãe, talvez ela pudesse fazer al-go para ajudar. “Duvido muito. Aquela sempre só tivera ideias para melhorar seu padrão de vida!. Teria dado um jeito de aproveitar-se daquela situação toda. Não resolveria o problema pensando nele e sim nela! Agora ela estaria pensando nele? Eh!!! Só podia ser a bebida...Mortos pensando... ”. Estende-se no sofá e entrega-se ao torpor que a bebida lhe provocava e acaba dormindo.

Ao acordar no outro dia, levanta-se e ao dirigir-se ao banheiro cruza com o pai no corredor, dá um bom dia discreto e acanhado e entra no banheiro para lavar-se, após o que se sente bem melhor, persistindo apenas uma leve dor de cabeça e um pouco de mal estar. Vai para a cozinha e sai para a varanda da casa. Olha em direção ao pomar e lá está o pai, cuidando de suas plantas. Nota que ele também o observa, talvez esteja se perguntando por que não vai até lá, “não irei!”, continua obstinado olhando para o pai, querendo que aquela cena fique marcada para sempre.



III – O Espírito


As opções humanas são surpreendentes e até mesmo desumanas e embora eu ache que nada que venha do ser humano seja desumano senão não seria humano, e assim mesmo somente sendo humana para mim toda atitude humanitária proveniente do homem, até mesmo as mais cruéis como o ódio, entretanto se considerarmos que desumano seja usado no sentido de bestial, de fera, ou seja, atitude de um animal feroz e não de um humano, posso assim considerar tal atitude como desumana, assim, acho que desumano não seria a palavra certa, mas sim cruel. E agora voltamos ao início, quando sendo dos humanos uma atitude cruel pressupõe-se que ela seja proposital, ou seja pensada, analisada, premeditada e consciente. Ali talvez não estivesse havendo nenhuma atitude proposital, portanto como analisar ou entender que as atitudes do pai e do filho não eram naturais, nem humanas? Seria eu? Talvez assim fosse? Quando começou minha consciência da situação dos dois? Nunca consegui entender e acabo descartando toda e qualquer possibilidade de um dia vir a obter esta consciência. Entretanto, a situação em si, o relacionamento dos dois é como sempre vejo o relacionamento humano. As atitudes refletidas pelo egoísmo e pela inveja presentes em todas as situações. O casamento do pai foi marcado por desencontros e egoísmos, tanto dele como da mulher. Continuou depois no relacionamento com o filho, pouco a pouco os dois foram destruindo tudo de bom que poderiam construir juntos. O filho acreditava que poderia um dia conseguir vencer o egoísmo e então conseguir um relacionamento satisfatório com o pai, mas satisfatório para ele apenas, sem ceder um pouco em nada, o outro, Ah! O outro não importava!

Puxa! Afinal de contas o que faço aqui afinal? Estou caindo numa idiotice tremenda, tentando julgar o que nem mesmo entendo, hora vejam só! Talvez seja melhor eu cuidar das minhas vidas e deixar você leitor que cuide das nossas. Não é mesmo? Afinal acho que estou apenas contado-lhes a história deles, para que servem as histórias senão para serem contadas? Portando, vamos deixar as análises hipócritas e sem sentido de lado e continuemos, tenho certeza que você ao final poderá e conseguirá entender os dois, até mesmo nós três, ou nós quatro? É! Após contar-lhe esta história você estará conosco também, ou não?.

Eles não sabiam o que estava errada, já tinham passado por aquilo, um na varanda e outro no pomar. Quem estava onde? E que importância tinha aquilo? A que tempo e a que hora? O pai procurava esquecer a dor olhando para suas plantas, que como ele, estavam morrendo. O filho procurava desesperadamente salvar as plantas e o pai que ele próprio tentara matar. O pai sabia que de nada adiantaria todo o esforço do filho, mas tinha que admitir que o rapaz era obstinado e persistente. As plantas o odiavam, nem bem brotavam as primeiras folhas das sementes e murchavam e morriam. As mais velhas, ressecadas e queimadas, não permitiam nenhum broto novo. O ódio derramado sobre elas ainda pairava no ar e era como se tivesse sido criado uma estufa sobre o pomar que não deixava nenhuma nova aragem diluí-lo. Ainda sentia a ardência do fogo sobre sua pele e as línguas esfomeadas das chamas tomar conta do pomar. “Parece até que elas não querem viver!” O filho estava ao seu lado reclamando. Não respondeu, nem poderia, não olhou, recusava-se a lhe dirigir um olhar quando estava perto dele. Com ele lá no pomar era diferente, podia olha-lo à distância e pelo menos não sentia a vibração de sua energia que tanto lhe fazia mal. Sentia inveja, ódio, raiva e medo quando ele estava próximo, longe não, sentia apenas pena e compaixão. O filho sabia tudo o que se passava com o pai, tinha um pouco de remorso, mas era bem pouco, quase imperceptível, sempre suplantado pela satisfação de que agora teria o pai sempre perto de si. Não era sua intenção feri-lo e muito menos tivera a menor intenção de magoa-lo, mas aconteceu e dai? Como poderia adivinhar que o pai iria tentar apagar o fogo e entrar no inferno de chamas do pomar incendiado e acabar se queimando por inteiro a ponto de ter perdido o movimento dos braços e das pernas? Foram dez meses de terror e medo, há apenas dois meses o pai voltara para casa e estavam novamente juntos. Agora era tocar a vida e ser feliz. Sua única insatisfação era com o pomar. As plantas começaram a morrer logo após o incêndio, o que era natural, mas muitas sequer foram afetadas pelo fogo e agora com um ano passado já deveriam ter se recuperado, mas recusavam-se a crescer e dar frutos e morriam a olhos vistos.
E assim os dois ficaram, um no pomar e outro na varanda. Algum tempo depois o pai voltou a ter movimento nos braços e então começou a ir para o pomar e cuidar das plantas. Da melhor forma que podia e como lhe permitia os movimentos com a cadeira de rodas. Sua compaixão não permitia mais que elas sofressem tanto nas mãos do filho e assim o pomar começou a tomar vida novamente. Às vezes levantava a cabeça e lá estava o filho, na varanda olhando-o. Nunca mais estiveram juntos no pomar, quando o pai chegava na varanda e olhando para o pomar via o filho lá, ele ficava na varanda.
Apenas sei que nada mudou e que o egoísmo enraizou-se e acabou virando uma luta que até mesmo as plantas acabaram tomando partido. Realmente, sentia-se no ar daquele ambiente todos os sentimentos que ali predominavam, e nem podia ser diferente. Ninguém gostava de ir ali, a vizinhança inteira tinha verdadeiro pavor dos dois. O homem havia virado um demônio, sua pele descarnada e enrugada era digna dos mais pavorosos filmes de terror. O rapaz, taciturno e caladão, era o próprio filho do demo. As frutas que tanto conquistara admiradores não existiam mais, todos diziam que uma terrível maldição caíra sobre a casa e que aquele pomar era do próprio diabo, mesmo tendo comido muitas frutas do pomar antes, esqueceram este detalhe e as poucas frutas que naqueles dias davam acabavam apodrecendo pelo chão.
Eu não sabia ainda, mas o pai foi aos poucos mudando, aos poucos foi se recolhendo e seu mundo acabou sendo apenas seu quarto. Também, eu mais nada tinha a aprender com ele, o pomar continuou a dar frutas esporádicas e nenhuma diferença fazia se ele estava presente ou não. Eu também, por meu turno, acabei mudando, como o pai não me chamava mais à atenção, continuava ali, eu não tinha a resposta do porque... Se antes dividia minha atenção entre os dois, aos poucos o rapaz foi me levando, seus pensamentos e suas vontades foram fascinando-me e acabei pouco a pouco deixando o pai de lado até que um dia, ao chegarmos em seu quarto com a bandeja de seu café da manhã, o encontramos morto. O rapaz não chorou. Saímos do quarto, chamamos uma funerária, encomendamos o enterro e voltamos para cuidar do pomar, ao que nos pareceu, as plantas nos receberam bem e então tivemos certeza que poderíamos cuidar delas finalmente.
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