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Artigos-->A RAZÃO DEMOCRÁTICA EM BECCARIA -- 09/03/2003 - 18:38 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A RAZÃO DEMOCRÁTICA EM BECCARIA





Fernando Dias Andrade

Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia Geral na Faculdade de Direito de Franca





I



Em 10 de dezembro de 1998, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 50 anos. É evidente que, em torno desta data, não apenas as entidades protetoras dos direitos humanos, mas igualmente as instituições jurídicas e políticas em geral, motivam-se a reabrir o debate a respeito do significado de tais direitos e, conseqüentemente, discutir os motivos pelos quais eles não são tornados a realidade projetada pelos documentos proclamados tanto pelas Nações Unidas quanto por cada nação isoladamente. O assunto, é claro, tem importância vital para a construção da paz no interior de qualquer comunidade a qualquer tempo, mas a efeméride é uma oportunidade muito apropriada para se colocar, a um maior número de "interessados", novas questões que circundam os direitos humanos, além de renovar as questões que permanecem sem resposta.





Nesta pretensão, considero importante a elaboração de uma tarefa filosófica, que consiste em constatar a maneira como uma das grandes questões a respeito dos direitos humanos (se os direitos humanos, que são direitos históricos, são também direitos inerentes à natureza humana) é colocada, responder de certa maneira a ela e, principalmente, colocar um novo problema, que entendo ser tão fundamental quanto o primeiro apesar de ser mantido, não por acaso, fora de cena: se os direitos humanos, na obra de um jurista, podem apresentar a razão como um elemento natural, que sirva de base não apenas para a atribuição de direitos às pessoas como, também, permita seja um elemento diretor do próprio ato de atribuir e concretizar direitos.





Essa importante tarefa, entretanto, eu não empreenderei aqui. Em vista da sua vastidão, aproveitarei a oportunidade para, simplesmente, introduzir o problema como quem sugere um debate (cujo eventual caráter polêmico se deve, unicamente, a negar qualquer forma de solipsismo intelectual e convidar o público acadêmico a aprofundar esse debate tão necessário). Finalmente, como se trata de filosofia, é na história da filosofia mais do que em minha própria opinião que buscarei me apoiar, tomando como horizonte o livro maior de Cesare Beccaria, Dos delitos e das penas, que, muito mais do que o primeiro texto filosófico ou jurídico a empreender uma crítica da pena de morte e de outras práticas por ele consideradas indignas de uma democracia, é a meu ver a obra que verdadeiramente funda a discussão racionalista acerca dos direitos humanos na modernidade. Este breve artigo, portanto, em vista de colocar de forma incipiente o problema de um fundamento racional para os direitos humanos, tomará como base a obra de Beccaria por dois motivos: 1) por ser o primeiro texto a elaborar explicitamente uma concepção racionalista de direitos humanos, servindo de marco histórico; e, principalmente, 2) por ter colocado suas teses de uma maneira tão frutífera que o seu livro é, até hoje, um dos melhores exemplos de como os temas do direito devem ser tratados dentro de um discurso completamente racional e, conseqüentemente, à distância de todas as formas de superstição — servindo, pois, de marco filosófico.





II





Qualquer um que esteja informado a respeito do debate atual sobre os direitos humanos deve ter notado que o meu pressuposto da fundamentação racional desses direitos é um dado muito problemático, mesmo diante de opiniões consagradas, como as de Chaïm Perelman e Norberto Bobbio. De fato, o problema da fundamentação dos direitos humanos, por mais complexa ou por mais simplória que seja a forma com que é elaborado, repousa sobre duas tendências aparentemente inconciliáveis: por um lado, a tese de que os direitos humanos são devidos a uma necessidade natural do ser humano, encontrando sua validade nas determinações dessa necessidade; por outro lado, a idéia de que eles são resultado de reivindicações produzidas historicamente, encontrando sua validade na origem de tais reivindicações. Em suma, ou o fundamento dá aos direitos humanos o sentido de direitos naturais, ou dá a eles o sentido de direitos históricos. O resultado dessa dicotomia de sentidos que podem ser atribuídos ao fundamento dos direitos humano estabelece, em primeiro lugar, a imagem de uma oposição irresolúvel entre necessidades naturais (que seriam personificadas nos direitos humanos enquanto direitos naturais) e necessidades sociais (personificadas, por sua vez, nos direitos humanos enquanto direitos históricos). Mais do que isso, estabelece a imagem de um paralelismo entre essa dicotomia e uma outra, entre direito natural e direito positivo, a qual acompanha a história da identidade do direito desde as suas fundações. Estamos, portanto, num universo tomado por termos multívocos e, talvez, inconciliáveis; mesmo assim, o espírito de oposição é o movimento constante que dá consistência ao fato da fundamentação dos direitos humanos ser um problema: falar em direitos humanos significa, a todo momento, partir de um convicção a respeito de quais direitos não podem ser alienados do ser humano; significa falar, portanto, de direitos inalienáveis. Dependendo da interpretação, dir-se-á que tal direito é fundamental porque é um direito natural, no sentido de que não pode ser alienado do homem. Diferentemente ou mesmo contrariamente, pode-se dizer que certos direitos são fundamentais porque, tendo sido estabelecidos historicamente, não podem ser alienados do ser humano ou, em sentido reverso (e talvez mais aceitável), não devem ser alienados do homem porque são resultado de conquistas históricas. Através do turbilhão de dicotomias, entretanto, encontra-se sempre a noção comum de direitos inalienáveis. Isso faz com que toda a discussão acerca dos direitos humanos — que são, não importa qual a sua elaboração doutrinária, direitos inalienáveis, isto é, que além de serem reconhecidos oficialmente pelo Estado e por este garantidos, não devem ser alienados — encontre seu nascedouro na aurora da filosofia política moderna, mais especificamente em Hobbes, no início do século XVII.





No século XX, a discussão a respeito dos direitos humanos tomou para si a tarefa de rebater as noções clássicas de direito natural, ou seja, as noções metafísicas ou teológicas de direito natural e, neste trajeto, confundiu de maneira exagerada a simples idéia de fundamentação com a noção de irrealismo teórico. Por conta disto, apesar de toda a herança filosófica racionalista, que acompanha a filosofia política desde as suas fundações na modernidade, desenvolver a idéia de necessidade de direitos inalienáveis, o pensamento político contemporâneo tem tentado realizar a tarefa de destituir o próprio pensamento moderno de sua legitimidade filosófica, no que diz respeito à idéia de fundamentação dos direitos subjetivos. A tese corrente — defendida principalmente pelos rebatedores das concepções clássicas do direito natural, que arrastam nessa categorização, sem maiores problemas, pensadores "supersticiosos" e "não supersticiosos" — é a de que a primordialidade do direito não tem um fundamento lógico, ou epistemológico, ou metafísico, ou teológico, mas unicamente histórico — daí as principais posturas jurídicas antimetafísicas serem, não por acaso, historicistas, de Kant até hoje. Como grande exemplo de como essa posição é sustentada atualmente, cito Norberto Bobbio, que, na esteira de Hans Kelsen (mas com muito mais razoabilidade), defende o primado do direito positivo, e desenvolve a discussão a respeito dos valores jurídicos tendo como horizonte a justiça social, cujo suporte é histórico. Bobbio, certamente um dos maiores juristas contemporâneos em defesa dos direitos humanos, é um dos maiores críticos das concepções não historicistas de tais direitos, a ponto de negar qualquer estatuto racional à terminologia não historicista dos direitos inalienáveis, incluindo a própria noção de direitos inalienáveis:





Falar de direitos naturais ou fundamentais, inalienáveis ou invioláveis, é usar fórmulas de uma linguagem persuasiva, que podem ter uma função prática num documento político, a de dar maior força à exigência, mas não têm nenhum valor político, a de dar maior força à exigência, mas não têm nenhum valor teórico, sendo portanto completamente irrelevantes numa discussão de teoria do direito.[1]





As razões de Bobbio são motivadas por uma preocupação constante em manter o realismo teórico que, desde Maquiavel, deve ser a marca do pensador político. Segundo Bobbio, esse realismo mostra justamente que a questão dos direitos humanos é antes política ou retórica do que estritamente filosófica. Não significa isso que o problema dos direitos humanos não seja um problema para a filosofia: ele o é — mas trata-se, para Bobbio, de um problema que não pode ser tratado de maneira irrealista. Na Introdução ao seu A era dos direitos, Bobbio diz que o problema — sobre o qual, ao que parece, os filósofos são convocados a dar seu parecer — do fundamento, até mesmo do fundamento absoluto, irresistível, inquestionável, dos direitos do homem é mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos.[2]





Bobbio, convicto da necessidade de um olhar realista sobre o fenômeno político (essa necessidade de que já estavam convictos, entretanto, os autores cujo irrealismo tenta denunciar), procura demonstrar filosoficamente que a filosofia só pode fundamentar os direitos humanos segundo premissas historicistas, isto é: segundo a constatação que os direitos humanos, se existem, são aqueles direitos que devem ser reconhecidos e garantidos por um Estado como válidos a todos os seres humanos, pelo fato de serem seres humanos. Isto posto, porém, não significa que possamos definir os direitos humanos, porque estes são determinados historicamente ou culturalmente de maneiras diferenciadas, o que "demonstra" que não existem, propriamente, direitos humanos, mas sim direitos que recebem o rótulo de direitos humanos para designar liberdades ou potências que, por motivos históricos, ideológicos ou sociais, são atribuídos oficialmente a um grupo de pessoas.[3]





O esforço de Bobbio é louvável, mas não está imune a equívocos. Porém, como não estou interessado, aqui, em analisar a posição dos historicistas contemporâneos a respeito da fundamentação dos direitos humanos, não é o caso de desenvolver detalhadamente uma crítica à posição de Bobbio e de outros grandes filósofos do direito que, ao mesmo tempo que prestam um grande serviço à discussão dos direitos humanos, deixam no meio do caminho alguns equívocos interpretativos que podem deixar à distância do jurista contemporâneo as idéias originais dos verdadeiros fundadores das concepções contemporâneas de justiça, liberdade e democracia (como Espinosa e Beccaria, por exemplo). Ora, são justamente estas idéias que permitem falar, agora, em prática de um direito justo. Os esforços teóricos de um Bobbio, assim como os esforços teóricos de um John Rawls (representando, aqui, uma outra maneira contemporânea, não historicista ou, ao menos, não kelseniana, de se fazer filosofia do direito tendo como horizonte o estabelecimento de fundações racionais para os valores políticos — ou não seria possível falar em justiça porque não seria possível justificar a prática jurídica, e vice-versa), dependem da articulação de conceitos "metafísicos", isto é, epistemológicos como estes: justiça, liberdade, democracia. Não se trata, apenas, de conceitos cujo sentido é dado exclusivamente por um ideário ou um imaginário social, isto é, cujo sentido vem da maneira como é comungado historicamente pelas comunidades sociais e políticas. Tais conceitos, para que se articulem num discurso teórico, isto é, num discurso racional (seja ele científico ou não, filosófico ou não), necessitam apresentar uma estrutura lógica interna que, em última instância, será a única base fundamental para a verdade do seu conteúdo. Esta minha afirmação (peço que perdoem o seu tom excessivo) parece uma posição típica de um racionalismo absoluto. É exatamente o que ela é.





Tomando como pressuposta uma disposição generalizada na contemporaneidade em conceber os direitos humanos como direitos que só têm sentido a partir de uma visão historicista, e tomando também como pressuposto fato de que, nessa mesma contemporaneidade, a idéia de uma fundamentação racionalista dos direitos do homem é um projeto condenado ao fracasso, deixo em primeiro lugar, provocativamente, a tese de que nenhuma fundamentação historicista é teoricamente legítima se dentre as suas premissas não se encontrarem valores jurídicos estruturados epistemologicamente; porém, cuido de iniciar minha breve defesa do pensamento beccariano como exemplo de racionalismo ético "não fracassado" a partir, justamente, de uma também breve exposição do desenvolvimento, no pensamento moderno, da revolucionária idéia de direitos inalienáveis enquanto direitos que decorrem da concepção oficial de ser humano. É disso que se trata hoje, quando se fala de direitos humanos; mas já era assim desde o início do século XVII, apesar de todas as variantes.





III





Cesare Beccaria escreveu Dos delitos e das penas aos 26 anos, em 1764. Um século e meio depois do nascimento do pensamento político moderno, portanto, Beccaria terá como os pensadores políticos que mais influenciaram aqueles que, justamente desde essas fundações da filosofia política moderna (desde Maquiavel e Hobbes, portanto), se interessaram em escrutinar os verdadeiros fundamentos do corpo político. Para além das concepções particulares, elaboradas por tais pensadores, a respeito de qual é a forma de governo mais adequada para o gênero humano (a pergunta clássica do pensamento político, desde a Antigüidade), é em especial aquilo que não transparece tanto ao olhar do vulgo — as premissas e a estrutura argumentativa que dão causa às conclusões desses autores — que exerce seu convencimento sobre os pensadores posteriores. Beccaria, no meio do século XVIII e com os olhos voltados para a liberdade política além da liberdade racional, herda de Hobbes e dos demais "jusnaturalistas" (como Bobbio, por exemplo, costuma chamar, ainda que por "comodidade", os pensadores políticos modernos que estabeleceram sua teoria com base na diferenciação entre direito natural e direito civil) não as suas convicções políticas ou ideológicas, mas principalmente aquilo que os move à busca do conhecimento filosófico: um interesse primordial em fundamentar racionalmente a estrutura política do homem e da sociedade.





A análise racional da política é uma invenção da modernidade, se entendermos que a racionalidade envolvida nesta análise significa ausência de superstições teóricas. É uma atitude filosófica que se inicia no momento exato em que nasce a filosofia política moderna, com Maquiavel — mas que, ainda assim, não atinge seu auge com este. Maquiavel merece essa posição, simplesmente, por ter sido o primeiro a demonstrar que o centro da política não é a moral, mas o poder. Isso significa uma revolução sem precedentes na história do pensamento político, pois desde sempre, até então, a moral esteve relacionada de maneira fundamental com a política e o direito: assim como, na Antigüidade, era não apenas reconhecida uma ordem natural regendo todas as coisas, como a legitimidade das ações humanas era reconhecida, em última instância, pela sua adequação a essa ordem natural. O direito positivo, portanto, era algo que não poderia, jamais, deixar de se inspirar na ordem da natureza, muito menos ir contra ela, sob pena de instaurar injustiças naturais. É certo que a história da dicotomia entre o direito natural e o direito positivo não tem como ser resumida a uma descrição tão simples, mas em momento algum — seja no mundo grego ou no mundo romano, seja sob as superstições do mundo religioso ou medieval, ou sob as novas superstições do universo da modernidade —, a dicotomia deixou de apresentar essa constante: que o direito natural é aquele a que o direito não natural deve prestar sua reverência.





Essa concepção pré-maquiaveliana é tributária de uma relação necessária entre direito e moral, porque a moral era, antes da modernidade, valorizada enquanto virtude universal, e não enquanto parte, apenas, da consciência intelectual dos sujeitos. As concepções clássicas de direito e justiça, portanto, traziam em seu interior o reflexo dessa relação entre direito e virtude, pois a medida da justiça era mantida como uma medida de virtude: a boa ação é a ação virtuosa, o melhor governo é o governo virtuoso, o melhor homem é o que se dirige aos demais motivado pelos sentimentos morais de virtude e benevolência; finalmente, a justiça é a rainha das virtudes, senão a própria virtude. Que ocorre quando o conceito de virtude se modifica? É o que se dá a partir de Maquiavel: a virtù do governante (seja no principado, seja na república), que deve ser o seu senso mais precioso para o exercício do poder — de interesse, portanto, de todo o Estado —, não é mais aquele tradicional sentimento de boa vontade em todas as ações, mas é simplesmente um instinto que mostra ao governante qual o momento mais propício para agir enquanto político, e quão prudente deve ser a sua ação nesse momento. A virtù, a virtude do político, não é mais virtude moral, mas é prudência prática. Sua orientação não vem de um conjunto de valores a respeito do que é moralmente bom ou ruim, como era o caso da virtude dos antigos; agora, a virtude política, que não mais se confunde com virtude moral, tem por base um cálculo prudencial baseado na razão e nas convicções pessoais do próprio governante. Ou seja, a partir da modernidade inaugurada por Maquiavel, a ética — conjunto das orientações de conduta para o homem, estabelecido racionalmente — do deixa de ser moralista e passa a ser racionalista, ainda que em Maquiavel essa racionalidade seja incipiente, na forma de uma prudência prática do príncipe. Não importa: porque o conceito de virtù é resultado de uma constatação não idealista mas observacional do real, a ética racionalista nasce com a filosofia moderna dotada de um estatuto de cientificidade, que se identifica com todos os princípios de certeza e evidência que são solicitados, desde o final do Renascimento, ao discurso verdadeiro. A verdade científica ou filosófica não pode, mais, ser baseada em superstições ou irracionalismos de qualquer espécie; neste aspecto, o que Maquiavel fez foi derrubar a superstição do mundo da política.





Será, justamente, motivado por essa postura contrária às concepções irracionais da política que Maquiavel chegará a todas as suas conclusões, inclusive aquela tão famosa e tão vituperada pelo vulgo, "Os fins justificam os meios". Que significa esta expressão, em Maquiavel? Significa que o Estado, com os fins de conservar o poder estabelecido, pode utilizar-se de quaisquer meios, inclusive meios extremos. Pode, por exemplo, tirar a vida dos súditos para que o poder seja mantido (outra postura, note-se, avessa às concepções antigas e moralistas da atividade do político). Por que isso? Maquiavel entende que a organização política é necessária para os homens e que, portanto, por uma questão de necessidade natural, eles devem erigir um Estado. Este, porém, uma vez constituído, deve evitar ao máximo a sua própria dissolução, ou acabará por não cumprir a função de fortalecer e institucionalizar a sociedade que há dentro dele. Um Estado à mercê de desordens internas, por exemplo, não é capaz de se defender dos inimigos externos, assim como não consegue gerir tranqüilamente seus negócios internos. A causa de tais desordens internas é um exercício ineficiente do poder do soberano, que, por isso, deve ter mão forte. Preocupado, finalmente, em definir qual a melhor forma de governo para o Estado, Maquiavel indicou o principado (em oposição à república), porque somente no principado é possível encontrar eficácia na pacificação do Estado por meio dos métodos que sugere. O poder do soberano, uma vez estabelecido, deve ser mantido a qualquer custo, sob pena do Estado acabar. Em Maquiavel, portanto, por causa do poder ser o fundamento real da política, não é o caso de se pensar em questões morais na direção do Estado e da sociedade. É nesse espírito que a filosofia política moderna surge, revolucionariamente. Depois de Maquiavel, o pensamento político recebeu novas inovações com a obra de Thomas Hobbes, e é com este que se pode falar, apropriadamente, de uma revolução copernicana na política. Hobbes mantém que a monarquia (o principado, em Maquiavel) é a forma de governo mais adequada para o exercício do poder, e dá para essa escolha uma explicação fundada no direito natural, fundando com ela o contratualismo (cuja noção será importantíssima para o desenvolvimento do pensamento jurídico moderno, tão atrelado à dicotomia, agora renovada e revestida de uma estrutura racional, do direito natural e do direito civil). Para Hobbes, os homens estão ou no estado de natureza ou no estado civil. O estado de natureza, ou seja, aquele em que o Estado político ainda não foi constituído, é a situação em que os homens estão em guerra de todos contra todos, ou seja, buscam satisfazer os seus desejos individuais por meio da sua própria força. Assim, o homem, que é definido como um ser naturalmente egoísta, está em contínuo embate físico com os demais para a obtenção daquilo que deseja. Nesse panorama, um homem mais forte pode matar um homem mais fraco e um conjunto de homens mais fracos pode matar o mais forte. Essa situação mantém todos os homens em contínuo estado de temor recíproco. O homem, porém, embora seja um ser naturalmente egoísta, é também um ser naturalmente racional. Pela razão, justamente, cada homem percebe a necessidade de dar um fim a esse estado de guerra, e surge enfim a idéia de criação de um Estado. Ou seja, os homens resolvem, de comum acordo, alienar todos os seus direitos naturais (menos o direito à vida) a um soberano, e se tornam seus súditos.





Constitui-se, assim, um Estado, por meio de um pacto social havido entre o conjunto dos governados e o governante. Esse pacto, que recebe normalmente o nome de contrato social, não é, evidentemente, um contrato firmado por cada um dos particulares com o seu soberano; a idéia de contrato é apenas figurada, aqui. Ela faz sentido, porém, porque marca que cada cidadão só o é porque assim o deseja. Para ser cidadão, é necessário reconhecer-se como tal, para além de ter sido nomeado dessa forma pelo Estado. A sujeição ao soberano, pois, é um ato voluntário do indivíduo, e será mantida desde que seja mantida a contrapartida do governante no contrato: dar segurança aos governados. Essa segurança, justamente, era o que os homens buscavam no estado de natureza e que só agora, graças ao amparo institucional do Estado civil, conseguem realizar conjuntamente. Aqui, pois, o governante continua (como em Maquiavel) podendo exigir o que quiser do seu súdito, inclusive tolher sua liberdade pessoal conforme achar conveniente, desde que a finalidade disto seja manter o estado e, inclusive, continuar mantendo a segurança desse súdito-cidadão. Porém, diferentemente de Maquiavel, o governante não pode mais retirar a vida do cidadão. Por quê? Porque a vida é, segundo Hobbes, a única coisa inalienável do ser humano, e é impossível que alguém queira aliená-la. Ela é, aliás, uma medida de quando se permite, ao governado, rebelar-se contra o governante: sempre que as decisões do governante atentarem à sua vida. A obediência ao governante é devida desde que o governante preserve a vida e a segurança do governado; a partir do momento em que o governante pretende tirar do governado essa vida, esse governado não mais tem a obrigação de prestar a antiga obediência. Assim, no modelo político visualizado por Hobbes, há o reconhecimento racional de ao menos um direito natural inalienável do ser humano: a sua própria vida.





Logo depois de Hobbes, surgem outros defensores do Estado monárquico, mas não por acaso aparece também a idéia de democracia, ou, pelo menos, de um Estado representativo, como o tipo de Estado mais apropriado para a realização da organização política. Como representativos do início desta tendência (mas com motivações diferentes), dois autores devem ser citados, aqui: Locke e Espinosa.





John Locke, inglês como Hobbes, projetou um modelo político praticamente em tudo avesso ao modelo hobbesiano. Embora tenha mantido a forma monárquica como forma de governo a ser praticada, defendeu uma monarquia representativa, ideal completamente avesso à monarquia despótica pregada por Hobbes. Segundo Locke, esse ideal representativo (que será o elemento fundamental de qualquer democracia), é um princípio necessário ao Estado porque é o único que permite projetar um governo que possibilite o respeito a todos os direitos naturais que não podem ser alienados do ser humano. Além do direito à vida, Locke aponta como um direito tão fundamental quanto ele o direito à liberdade e, junto dele, o direito à propriedade. O liberalismo político nasce neste momento, identificando liberdade pessoal ou liberdade política a liberdade econômica. A liberdade humana é inalienável do ser humano e, portanto, deve ser um direito reconhecido como fundamental ao cidadão.





Baruch Espinosa (como Locke, nascido em 1632, mas cujas idéias políticas foram elaboradas antes) coloca a idéia de democracia de maneira mais enfática do que a filosofia lockeana. Contra as concepções correntes, chega a dizer que a democracia é a mais natural as formas de governo, por uma série de razões, a começar pela natureza do ser humano (assunto que também preocupara os pensadores anteriores). Segundo Espinosa, o ser humano é, como dissera Hobbes, naturalmente egoísta. Porém, diferentemente de Hobbes, não existe uma exclusão do estado de natureza depois que o Estado civil foi instituído. Ambos têm suas diferenças, mas estas são, na verdade, conceituais. Segundo Espinosa, o ser humano tem um direito natural a tudo o que estiver em seu poder. Ou seja, se alguém tiver força física para matar outra pessoa, tem então direito natural a fazê-lo. Mas os homens são, também, seres racionais, e sua racionalidade lhes mostra que a continuidade desse estado baseado na disputa física vai contra o desejo mais fundamental de cada um deles: preservar a própria existência. Assim, é necessário que eles se organizem sob a forma de um Estado; mais do que isso, sua disposição social dentro do estado deve manter todos na busca da concórdia, e não da disputa desenfreada. Tudo isso os homens percebem racionalmente. Espinosa mostra que a única forma de governo que permite a realização dessa estrutura social é a democracia, porque é a única forma de governo na qual, se não ocorre que todos os cidadãos são o governante, ocorre que cada um deles toma parte diretamente no poder, no sentido de que tem a capacidade de interferir diretamente (ou por meio de representantes) na determinação das ações do Estado.





Além destes autores seiscentistas, Beccaria também recebe a importantíssima influência de Montesquieu, a quem ele presta seu reconhecimento logo no início de Dos delitos e das penas. Montesquieu é uma influência importante porque foi um dos seus principais inspiradores no que diz respeito ao método de trabalho. Montesquieu, graças à sua obra Do espírito das leis (publicada em 1748, quando Beccaria contava dez anos de idade), é tido como o fundador da sociologia. Como a obra tem o direito como seu objeto, ele pode ser igualmente considerado o fundador da sociologia jurídica: a sociologia, portanto, surge já como sociologia do direito. O objetivo de Montesquieu ao escrever Do espírito das leis é apresentar um estudo sistemático de todas as formas de governo do mundo. Diferentemente dos filósofos que o precederam, porém, Montesquieu evita projetar uma forma idealizada de governo, e decide observar os diferentes governos empiricamente, para analisá-los com base na maneira como eles são realizados historicamente. Assim, empreende uma série de viagem e estuda pessoalmente os costumes, valores, leis, administrações de cada povo, e faz algumas considerações muito importantes para o futuro do pensamento político. Montesquieu constata, em primeiro lugar, que os diferentes povos têm características morais, culturais, políticas, religiosas, muito distintas, e que todos estes elementos derivam das necessidades culturais de cada povo. Assim, Montesquieu constata que, se uma determinada constituição é seguida por um determinado povo, ela pode não ser (e normalmente não é) adequada para outro povo. Cada povo tem uma estrutura cultural que produz realidades políticas e morais que valem para ele, apenas, e não têm como ser implantados, sem alterações, em outras culturas. Cada povo pede uma estrutura cultural própria e, por isso, pede uma constituição apropriada exclusivamente para ele, porque ela deve expressar, justamente, a sua personalidade cultural. Dessa forma, é impensável o projeto de uma forma de governo que seja a mais adequada para todo o gênero humano, e os projetos políticos devem ser voltados para a definição de qual forma de governo e qual sistema moral é o mais adequado para este ou aquele povo, em particular.





Apesar dessa constatação da pluralidade cultural (e, por extensão, jurídica) dos povos, Montesquieu, na sua observação empírica, também constatou que ao lado da pluralidade existe uma certa uniformidade que aponta, justamente, o que vale para todos os seres humanos em todos os lugares. Ou seja, a pesquisa de Montesquieu também deu resposta à questão da natureza humana, cara aos seus predecessores. Constatou que, não importa qual seja a cultura, todos os homens apresentam uma preocupação natural com sua autoconservação, todos os governos procuram manter o poder e que, principalmente, todos os homens são contrários às formas de tirania e à violência. Mais do que isso, que os homens apresentam uma preocupação clara com respeito à sua própria liberdade. Por conta disso, embora existam estruturas políticas tão variadas quanto podem ser variadas as diferentes culturas, todas as sociedades do mundo buscam organizar-se de forma a impedir o desrespeito à liberdade dos governados e a impedir a prática do abuso do poder. Por isso, Montesquieu indica que, à natureza humana, é apropriado buscar uma forma de governo que não permita a prática do abuso do poder, nem a prática da violência, nem a prática das arbitrariedades por parte de quem detém o poder. Sugere, assim, que o poder soberano do Estado racional, que a rigor não pode ser dividido, apresente uma forma orgânica. Ou seja, que o poder do Estado seja estruturado em diferentes órgãos, cada um com uma série de funções somente a ele atribuídas. Essa tripartição dos poderes, que na verdade é uma estruturação orgânica do poder único e indivisível, consiste na definição dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (a nossa divisão constitucional dos Poderes). Assim, nessa forma de governo sugerida por Montesquieu com base nas suas observações empíricas, é preciso que haja três órgãos dentro de cada Estado soberano, seguindo uma distribuição básica de funções: o Legislativo cria as leis, o Judiciário julga com bases nestas leis e o Executivo dirige os negócios do Estado. Mais importante do que essa designação das funções, porém, é o princípio de que não haja abuso nem arbitrariedade por parte do poder; isto é, que cada um dos três Poderes não interfira na atividade dos outros dois. Assim, o Legislativo não pode julgar nem comandar o Estado, o Judiciário não pode editar leis nem comandar o Estado, e o Executivo não pode legislar nem julgar.





IV





Dos delitos e das penas data de meados do século XVIII, o século cujas "luzes" levaram à consumação, na política, dos grandes projetos filosóficos da democracia demoradamente projetados desde o século anterior. A obra de Beccaria volta-se de uma só vez para esse complexo panorama político e teórico, que envolvia não apenas os pensadores da época, mais voltados à prática da democracia, como os predecessores que eram objeto dos ataques contra as elaborações não republicanas da política. Ela dialogará, assim, com todo o pensamento político moderno, e embora seja verdade que muitas das teses pelas quais atingiu grande parte da sua fama não sejam teses originais, a originalidade inegável do livro repousa na maneira — racional e anti-supersticiosa — como atingiu suas próprias e ousadas conclusões com base nas idéias da época.





Dos delitos e das penas é uma aplicação, no direito penal, de uma série de princípios filosóficos e sociológicos vigentes à época. Não apenas: trata-se da primeira vez em que foi realizada essa aplicação de princípios racionais de análise à teoria criminológica. O livro, aliás, é lembrado e celebrado principalmente por esse aspecto: foi o primeiro texto a falar contra a pena de morte, a prática da tortura, as estruturas penais desumanas e cruéis, etc. É um marco histórico, portanto, na problematização da dignidade humana dentro do panorama do direito. É o grande precursor de todos os grandes estudos contemporâneos de sociologia criminal, de todos os grandes estudos a respeito dos excessos causados pelas instituições do poder jurídico, notadamente as instituições penais e judiciais.





Entretanto, o livro é importantíssimo, também, por representar um importante marco filosófico para a humanidade. É o primeiro texto que realizou o projeto de fundamentar não apenas racionalmente, mas democraticamente, os direitos humanos. Dos delitos e das penas é o primeiro texto a propor de forma completa uma prática judiciária voltada para a democracia, ou seja, para um ambiente político que reconheça a igualdade de todos os seres humanos enquanto cidadãos. Mais do que isso, é um texto que professa uma profunda convicção na racionalidade humana, a qual não apenas determina a igualdade entre todos os seres humanos como, também, é o que legitima todas as ações certeiras da humanidade: a razão é fundamento da natureza humana, assim como da sua ação.





As teses de Beccaria, em todos os seus momentos, são a manifestação dessa crença destemida e esclarecida na razão, e suas concepções políticas e jurídicas são conseqüência de um profundo racionalismo ético — exatamente o tipo de ética questionada pelos adeptos do historicismo, numa crítica construída mais por desconhecimento da estrutura das filosofias racionalistas do que por uma constatação do seu "fracasso". Beccaria entendeu como necessário, por exemplo, reconhecer que o ser humano tem direitos individuais, tem direitos naturais, que são o que hoje chamamos de direitos humanos. Entendeu necessário reconhecer um sistema de governo apropriado para esse tipo de direitos humanos (ele cita esse governo como sendo o da "república livre", ou seja, a democracia). Esses posicionamentos de Beccaria são devidos a um posicionamento filosófico extremamente radical, misto de um determinado posicionamento político e de outro posicionamento teórico, que me permitem localizar nele uma grande dívida com a figura de Espinosa: a mesma visão racionalista sobre os dados do real mostra que é racionalmente que os homens erigem suas instituições políticas e jurídicas, assim como é racionalmente que reconhecem sua necessidade de liberdade e igualdade dentro do panorama político; como conseqüência, a mesma racionalidade mostra e demonstra que a democracia é o único ambiente em que tais necessidades podem ser supridas. O homem, enfim, é um ser para quem é necessária não apenas a vida em sociedade, como são também necessários, por uma questão idêntica de utilidade e necessidade, a liberdade social e política, a organização democrática do Estado, o reconhecimento oficial a igualdade de todos os homens por uma questão de natureza.[4]





Beccaria, de qualquer maneira, entende claramente que as instituições do Estado devem ser instituições voltadas para a democracia. Inclusive o direito penal. Se existe direito penal instituído, este deve ser democrático e voltado para as necessidades da democracia, ou seja: mesmo na orientação da prática judiciária, o fundamento deve ser político, o mesmo que havia sido determinado pela natureza humana. As propostas de Beccaria, que todos conhecemos como tentativas de fazer do direito penal um instrumento humanitário da atividade do Judiciário, são o resultado de uma concepção racionalista da ética humana, a partir do reconhecimento das necessidades de indivíduo e do resto da sociedade em qualquer situação histórica. Como se trata, sempre, de reconhecer que as necessidades dos homens envolvem a realização da sua liberdade e igualdade política, ao falar de direito Beccaria estará sempre falando de um direito democrático, cuja necessidade histórica é a de empreender um direito justo.





Eis, enfim, o dado que garante a Beccaria seu lugar na contemporaneidade: entre as necessidades da democracia está o reconhecimento e a preservação dos direitos individuais, e esta é a idéia básica do que hoje nós conhecemos (apesar de todas as diferenças de formulação) por direitos humanos. Trata-se, como já foi dito aqui, de direitos que têm de ser reconhecidos oficialmente e garantidos de fato pelo Estado, mas não é só: no mesmo movimento, o Estado não deve promover a violência. Ele deve ser um Estado que impeça a prática da violência (por uma questão de manutenção da ordem social, antes que da ordem política) mas, ao mesmo tempo, ele não deve praticar a violência, assim como deve evitar que ela se torne um elemento da cultura do seu povo (por uma questão de princípio de autoconservação e manutenção das liberdades humanas, e não por uma questão moral). Embora Dos delitos e das penas seja geralmente lembrado pelo ataque que faz à pena de morte, deve-se se ressaltar com a mesma intensidade que o grande projeto da livro é fazer uma crítica ao direito praticado de maneira irregular. Segundo Beccaria, se nós vivemos em uma época em que a democracia está sendo reconhecida como a melhor forma de governo para as necessidades históricas do homem, que problema decorre se temos, também, um direito penal que pratica claras injustiças, que realiza torturas, que aplica a pena de morte? Isso é compatível com as necessidades da democracia? Certamente que não. O tipo de sociedade necessário ao homem é aquele cujo destino é dirigido não por qualquer forma de irracionalidade, mas por um cálculo ético que é o único capaz de legitimar a atividade do Estado e regular a conduta dos cidadãos. Esse cálculo, que emana do espírito político de todo o Estado, é necessário mesmo para que se cumpra a "finalidade das penas": Da simples consideração das verdades até aqui expostas, resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. É concebível que um corpo político, que, bem longe de agir por paixão, é o moderador tranqüilo das paixões particulares, possa abrigar essa inútil crueldade, instrumento do furor e do fanatismo, ou dos fracos tiranos? Poderiam os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo sem retorno as ações já consumadas? O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.





Note-se que todo o discurso de Beccaria não apresenta um posicionamento ideologicamente inflamado, apesar das fortes convicções do autor com respeito ao que está tratando. A posição de Beccaria, inovadora na história dos textos jurídicos, é elaborar um tratado jurídico com o olhar frio que um cientista deve apresentar. Nisso, Beccaria segue o projeto de Hobbes, Espinosa (a política e o direito podem ser tratados com o mesmo rigor solicitado pelas ciências matemáticas: é possível construir uma análise da realidade jurídica que seja verdadeira geometricamente) e, mais de perto, Montesquieu (a fonte da verdade do discurso a respeito da política é a realidade histórica encontrada em cada sociedade). São estes os seus princípios, que não representavam problema para a época: suas conclusões é que são audaciosas. A conclusão em favor da democracia e, por extensão, da adequação da prática judiciária às necessidades da democracia, somente hoje não representam problema, mas, paradoxalmente, ocorreu o efeito inverso com o passar dos séculos: o que não era problema no século XVII, hoje é um tabu metodológico: quem tem coragem de, hoje, dizer que é possível construir uma ética racionalista para o direito, sem que isso soe anacronicamente metafísico? É este o grande desafio que se encontra colocado, a meu ver, para os juristas que tratam dos direitos humanos com a pretensão de estabelecer um estatuto filosófico ao seu discurso. O desafio de determinar o que são os direitos humanos continua mantido, mas desde que se tornou um problema dar a essa determinação de tais direitos o caráter de direitos inalienáveis (já que essa caracterização envolve um escape do radicalismo historicista, para o qual nenhum direito é inalienável por natureza). Ocorre que a identificação da necessidade de liberdade política e de direitos humanos caminha junto com a necessidade de fundamentação racionalista. A razão é princípio simultâneo para a verdade do pensamento e do julgamento jurídico, assim como é princípio para a fundamentação da igualdade dos cidadãos.





As fontes que levaram Beccaria às suas conclusões, porém, têm se confirmado mesmo diante do desenvolvimento dessa peleja entre historicistas e não historicistas: assim como a política não deve ser governada pela moral, o direito também não o deve. Tal direito visa o fim da violência e a manutenção da paz social. Hoje, isso só faz sentido dentro de um discurso racionalista cujo compromisso histórico é a democracia e a garantia de meios que possibilitem aos cidadãos suprimem todas as suas carências e necessidades. Assim como isso vale para hoje, vale para Beccaria: por se tratar de ética racionalista, é um princípio vale para qualquer tempo. Convém, a propósito, encerrar neste ponto minhas sugestões a respeito da importância de Beccaria como jurista ao um só tempo compromissado com a busca da verdade e com a realização da justiça, transcrevendo um longo trecho da bela Introdução ao seu livro, em que são articulados explicitamente os elementos da sua preocupação com a necessidade conjunta dos dados da história e dos instrumentos da razão, no momento de se projetar as instituições da democracia: Consultemos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passam, geralmente, de instrumentos das paixões de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita e passageira; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, capaz de aglomerar as ações de muitos homens num só ponto e de considerá-las de um único ponto de vista: a máxima felicidade compartilhada pela maioria. Felizes as raras nações que não esperaram que a lenta evolução das circunstâncias e das vicissitudes humanas conduzisse ao bem após ter atingido o mal extremo, mas que por meio de boas leis aceleram as passagens intermediárias; e merece a gratidão dos homens o filósofo que, de seu desprezado e obscuro gabinete, teve a coragem de lançar à multidão as primeiras sementes por longo tempo infrutíferas das verdades mais úteis. Conheceram-se as verdadeiras relações entre súditos e soberanos e entre as diversas nações; prosperou o comércio à luz das verdades filosóficas, colocadas pela imprensa ao alcance de todos; deflagrou-se entre as nações uma tácita guerra de comércio, a mais humana e digna de homens sensatos. Devemos esses frutos às luzes deste século, mas pouquíssimos examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos procedimentos criminais, parte tão importante quão descuidada da legislação em quase toda a Europa; pouquíssimos foram os que, remontando aos princípios gerais, aniquilaram os erros acumulados durante séculos, freando ao menos, com a força que só possuem as verdades conhecidas, o curso demasiado livre do poder mal dirigido, poder esse que deu até hoje um exemplo longo e autorizado de fria atrocidade. Entretanto, o gemido dos fracos, vítimas da cruel ignorância e da rica indolência, os bárbaros tormentos, multiplicados com pródiga e inútil severidade por delitos não provados ou imaginários, a desolação e os horrores da prisão, aumentados pelo mais cruel carrasco dos miseráveis, a incerteza, tudo isso devia abalar aquela espécie de magistrados que dirigem as opiniões das mentes humanas.





Referências bibliográficas:





beccaria, c. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo, Martins Fontes, 1997.



bobbio, n. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Campus, 1992.



espinosa, b. Ética. Tradução de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo, Nova Cultural, coleção "Os pensadores", 1988.



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maquiavel, n. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. São Paulo, Nova Cultural, coleção "Os pensadores", 1988.



montesquieu: Do espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo, Abril Cultural, coleção "Os pensadores", 1978.



renaut, a. "Beccaria, Cesare, 1738-1794. Dos delitos e das penas, 1764", in châtelet, f., duhamel, o. & pisier, e. (orgs.). Dicionário das obras políticas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993. Tradução de Glória de C. Lins e Manoel Ferreira Paulino.





Publicado em: Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo 4, p. 115-129, São Bernardo do Campo, Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, dezembro de 1998.





Notas:





[1] Bobbio, Norberto: A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, p. 7.



[2] Op. cit., p. 5-6.



[3] Ver op. cit., sobretudo a Introdução e os dois primeiros ensaios, "Sobre os fundamentos dos direitos do homem" e "Presente e futuro dos direitos do homem".



[4] Parece que se está elencando, justamente, a seqüência de razões que autores como Bobbio vêm declarar irracionais, como a própria idéia de natureza. Que significa dizer que há atributos naturais? Que a razão é um atributo natural do homem? Mais ainda: que essa racionalidade natural, que iguala os homens quanto à sua natureza, deve implicar uma igualdade política? De fato, o que garante tudo isso? O crítico historicista, assentado em sua tranqüilidade, procura desqualificar tais colocações com a intenção de desqualificar, no fundo, as afirmações de caráter universal. Curiosamente, esse crítico tem em seu horizonte algo que também deveria ser combatido pelo racionalista ético da modernidade: a concepção moralista da ética, que dava valor universal a concepções morais sustentadas por particulares. Entretanto, enquanto o racionalista ético (como Beccaria) vê a possibilidade de determinar novos valores universais segundo os moldes do novo método científico e filosófico, o historicista contemporâneo considera todo ato de universalização uma falácia teórica e nega qualquer estatuto racional aos preceitos éticos decorrentes dessa orientação. Há dois equívocos por parte desse historicista: por um lado, ele nem percebe que a postura o racionalista ético é, normalmente, atrelada ao princípio fundamental da necessidade, que por sua vez será base para a razão de ser do próprio historicismo; e, por outro lado, não reconhece que o racionalismo metódico é instrumento imprescindível para a sua própria atividade teórica, devendo partir ou se apoiar, em momentos importantes, em convicções que são, em última instância, "metafísicas".



Fonte: http://sites.uol.com.br/grus/beccaria.htm

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