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Contos-->PASSAGEIROS DA AGONIA - capítulos finais de Estrela que o ve -- 05/03/2018 - 21:10 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos







Flash...
 Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor,  mantenham a poltrona em posição vertical e apertem os cintos.  Obrigada!
A voz era de   Vannini.
Fernão fitou-a demoradamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais gordinho. Sentiu Cezar Ubaldo sussurrar em seu ouvido: Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... No ventre carregamos vida, então!...Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã... Ele, Fernão, nunca desejara tanto  ver o sol da manhã, da tarde..., ou ainda apenas uma nesga de lua, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles  espavoridos de seus companheiros de voo.
Embora tentasse acalmar os passageiros, logo que o sorriso fabricado se desfazia, Vannini voltava a afundar-se em pensamentos pouco nobres. Pobre alma!  Com esforço sobrenatural, afastou sentimentos de rancor e ódio contra Fernão, afinal, eram eles passageiros da agonia. Ela sentiu tontura. Apoiou a mão na fuselagem da aeronave e impostou a voz: Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada! Desligou os canais de comunicação e acenou para Fernão com gestos carregados de novos significados, como se lhe dissesse: Vamos morrer. Ele compreendeu que estavam em situação de emergência. Ouviu o  mar  bramindo debaixo de seus pés, e se sentiu na pele da Gaivota de Bach, em choque  contra o rochedo. Abriu o terno, conferiu o colete, retirou o paletó e afrouxou os sapatos.
Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, mostravam-se compenetrados, vasculhando procedimentos de segurança para uma situação de perigo. Levantou-se. Suas pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou. Deixou que se passassem alguns segundos, minutos talvez... Queria ser uma gaivota voando a 1200 quilômetros por hora. Mas em seguida,  repreendeu seu pensamento: Gaivotas não voam a mil e duzentos quilômetros por hora , Fernão! A essa velocidade, seu corpo seria arrastado como uma folha seca tocada  pelo vento. Mas... Se tiveres a sorte de não se espatifar no paredão das águas, poderás salvar tua vida.
Como fazer aterrissagem? Antes disso, disse para si mesmo,  o vento rasgaria  seus olhos e arrancaria sua pele. Talvez pudesse laçar-se de paraquedas, mas  as cordas não  suportariam a tensão.
Desejou ser uma gaivota. Ainda assim, com certeza, seria um corpo descendo em velocidade meteórica para em pouco tempo, se esborrachar contra o chão ou o espelho das  águas. Sentia-se como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Se fosse uma gaivota, superaria seus limites voando a uma velocidade nunca atingida por  sua espécie e se chocaria no paredão das águas, duras como pedra do mesmo  modo. Não tinha jeito.
Cenas do Armagedom desfilaram em sua mente.
Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras’.  O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. O primeiro anjo apocalíptico  tocou a trombeta. Saraivada de fogo percorreu o interior da nave. Em êxtase, Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrita.  Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco... Quantas vezes virara o rosto para esposa e maculara a pureza dela com infâmias e desdéns!... Quantas vezes  teve a oportunidade de refazer a própria história, e não o fez... Desejou abraçar Vannini e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris.
A turbulência se prolonga por tempo superior ao previsto pela tripulação e visíveis danos na  fuselagem são percebidos pelos passageiros. Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço, em voz alta, e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: Sou padre Davi! Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoou todos os vossos pecados inconfessos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Alguns responderam: Amém! Muitos  balbuciaram palavras quase inaudíveis, outros, apenas moviam os lábios.  Fernão entrou na cena de seu batismo, viu os pais e padrinhos na Igreja da Consolação. Viu também a pia batismal com água e pessoas da comunidade que acendiam velas no Círio Pascal. Com um crucifixo na mão,   o sacerdote ungia-lhe a testa e o peito com o óleo dos catecúmenos. Viu ainda um animal asqueroso levantar-se do mar. A Fera tinha dez chifres, sete cabeças e muito poder sobre a Terra, e soprava na mente dos cristão bombas de pensamentos infladas de ganância, vaidade e orgulho. Houve um clarão, seguido do ribombar de trovões. Abriram-se livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. Miríades de anjos entoaram um coro diante do trono do Cordeiro. Mostrou-lhe então o anjo um rio de água viva que brotava da pia batismal. A mãe traçou uma cruz na testa do filho. Houve uma explosão que só o menino ouviu. E chorou. O animal desapareceu numa nuvem de fumaça negra. Fernão viu  Moisés no monte Nebo jogar seu manto para Josué: O que está oculto pertence ao Senhor, nosso Deus; o que foi revelado é para nós e para nossos filhos. Nada temas. Passou em seguida o manto para Josué e Josué passou o manto sobre a cabeça do menino. Veio uma nuvem luminosa e o envolveu. Extático, Fernão desprendeu-se do sobrenatural e lentamente, retornava ao mundo dos mortais. Não muito bem desenhadas, traçou uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito.  Objetos, poltronas e bagagens voavam em todas as direções e se chocavam, ora contra a fuselagem, ora contra os passageiros e tripulantes. Gravemente ferido, o corpo do padre estava estendido, a fio comprido, no corredor da aeronave.
—Tem algum médico a bordo? — perguntou um comissário.
 André conseguiu, com dificuldade, pegar sua maleta. Imediatamente, doutora,  Tânia Jiló também apanhou a dela. Algum metal pesado os atingiu e suas maletas foram sugadas pela janela quebrada. Também foram sugados muitos passageiros e lançados para fora da nave. Vannini evitou o choque com um notebook que passava voando. Abaixou-se e sentou numa poltrona ao lado de uma velhinha morta. Arrependeu-se de ter avisado a Hemor que Fernão estava a bordo. E... se ao invés de desviar dos nimbos, o piloto resolvesse entrar em rota de colisão com eles? Fernão é ‘esquizo’, Hemor também. E se Fernão invadir a cabine de comando? E se os dois entrarem em luta corporal em pleno voo?... Vannini fechou os olhos e se sentiu dialogando com Dom Pierre Chardin. Será que desde o primeiro momento de vida, até a morte, somos seres espirituais passando por experiências humanas, ou seres humanos passando por experiências espirituais? Levantou-se segurando em uma poltrona sobre a qual um  corpo curvado deixava livre o encosto. Morto  ou desmaiado, talvez... Teria Deus escolhido aquela hora para morrerem tantas pessoas  no mesmo voo? Sobreviveria alguém naquele acidente?  Talvez fosse a hora do piloto. Os outros eram passageiros que estavam no lugar errado, na hora errada.  
— Brevê vencido — argumenta  Robert examinando os originais do livro.
— Acaso brevê vencido é causa mortis? — retorquiu Ravenala —. Ninguém confere se o brevê está vencido, embarca-se numa viagem para a vida ou para a morte. As pessoas  confiam muito no homem, mas   não têm essa mesma confiança em Deus.
***

Adalberto Lima, capítulos finais de Estrela que o vento soprou.


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