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Contos-->Heranças da Infância -- 04/06/2001 - 23:39 (Eduardo Henrique Américo dos Reis) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este concurso não seria problema algum depois de ter ganhado tantos. Sempre concorria com magricelas de estômago pequeno. O lugar era uma churrascaria, grande, bonita e o preço não devia ser nada acessível. Chegou no local com três horas de antecedência e anotou tudo o que iria comer.
Quando o relógio da churrascaria, que tinha o formato de um leitão, disparou às treze horas o juiz autorizou os sete participantes o início da comilança. Sentado num sofá especial, devido ao seu tamanho, com um babador preso na camisa, com muita dificuldade para respirar e muito suor correndo pelo rosto, comeu de tudo que viu pela frente. Picanha, Maminha, chuleta, costela de boi, de cordeiro, de leão, de hamster, comeu de tudo. De tudo mesmo.
Na adolescência sofreu muito, pois seus amigos lhe davam vários apelidos desagradáveis (como chupeta de baleia, por exemplo). Não conseguia fazer esportes e correr como as outras crianças, mas nos campeonatos de peido era sempre o vencedor. A avó jogava a culpa toda na mãe, que viciou o balofo em leite, queijo e carne gordurosa.
Os outros seis adversários, quando já eram umas sete e meia da noite, apenas observavam espantados como aquele imenso rapaz ainda comia com gosto. Como se ainda estivesse sendo atacado pela fome. Todos abismados, juizes, testemunhas, adversários e torcedores.
Um primo gritava para ele parar, mas ele não respondia e nem levantava o queixo apoiado no papo gordo que vazava por cima do babador e da camisa. Comia sem parar. Segundo o gerente do restaurante o prejuízo foi de dois mil e quinhentos reais.
Às oito e doze da noite, ele engoliu a última colherada (ele comia de colher), respirou fundo, levantou os braços vitorioso dando um leve sorriso e deixando à mostra os dentes cheios de carne, verduras e arroz. Ao tentar levantar do sofá, levou uma das mãos na barriga e vomitou sobre uma velha gorda e feia que também era participante do concurso.
Vomitou até não ter mais o que. O desespero era total, um mar de vômito dentro de um restaurante chiquérrimo. A família tentava ajudá-lo, mas os pedaços e carne misturados com suco gástrico impediam a aproximação. Aquilo parecia o inferno em forma de regurgitação.
Quando tudo se acalmou, a única pessoa dentro da churrascaria era ele. Caído no chão, imóvel, na mesma posição que foi deixado. Desfalecido.
Na manhã do dia seguinte, todos os parentes do rapaz se reuniram na casa de uma tia, onde o corpo foi velado. Dois tios deram banho no defunto, cortaram as unhas, fizeram a barba e passaram um pouco de maquiagem no rosto para dar uma impressão de vida.
A mãe estava desconsolada, chorava tanto que quase ficou desnutrida. Dava para encher baldes de lágrimas e daquele caldinho transparente que sai do nariz. O pai sumiu no mesmo momento que ficou sabendo que o rapaz participaria de mais um concurso desses. Ele sempre fazia isso e só voltava quatro ou cinco dias depois. Bêbado que nem um desgraçado.
Colocaram o corpo sobre uma mesa. O primo, responsável pela compra do caixão chegou desesperado avisando que “não existiam caixões que atendessem as medidas solicitadas”. Isso foi o maior dilema, aquela gritaria. Um querendo ser mais que o outro, na base do grito. Falaram até para colocar o presunto numa caixa de geladeira, mas também não tinham uma.
“O jeito é enterrar assim mesmo!” – Disse um velho de barba mal feita encostado no canto fumando um cigarro. Todo mundo concordou.
O corpo foi encaminhado para o cemitério com muita dificuldade. A cova já estava aberta, uma cova gigante, “atendendo as medidas solicitadas”. Baixaram o corpo. Um padreco amigo da família declamou algumas abobrinhas e amém, “pode jogar a terra”.
Ajoelhada no chão, tremendo feito uma vara verde e segurando um lenço, a mãe viu o rosto do filho sumir no meio dos sete palmos de terra. Menos de uma hora depois, já estavam todos em suas casas assistindo televisão.
Ao entardecer, dentro daquela cova, o rapaz falecido no dia anterior, tentou abriu os olhos. Uma ação fracassada pela quantidade de terra. Precisava respirar, ainda estava vivo. Tinha hibernado feito um urso ou algo assim. Percebeu um gosto estranho. Ficou desesperado até perceber que havia uma única maneira de sair dali ainda vivo. Não, não era gritar e muito menos se mover.
Com o mesmo apetite que nos concursos que ganhou, começou a comer a terra que impedia seus movimentos. Usava os dentes como pá e o estômago como armazenamento. Comeu, comeu, comeu, comeu... até conseguir se sentar e só depois disso, já muito cansado, utilizou as mãos. Cavou apressado, não existia ar ali.
O dia estava escuro quando conseguiu pôr a cabeça para fora da sepultura. Respirou, deu fortes tragadas no ar. E gritou pedindo socorro. Desistiu quando já não tinha mais forças para nada. Chorava, ali no cemitério, aquela cabeça suja saída do chão.
Descansou por alguns minutos e com as pontas dos dedos, voltou a cavar na altura do peito, desta vez com mais força. As mãos doíam. Assim que retirou um braço do buraco, avistou entre as lápides um homem magro com chapéu de palha e um cigarrinho no canto da boca. Acenou com o braço cansado e foi ouvido num grito.
O homem veio se aproximando com cautela. “Eu estou preso, fui enterrado vivo. Me ajude a sair daqui!” – gritava o ressuscitado. O homem esfregou os olhos e teve certeza do que via. Metade dum corpo de homem, todo sujo de terra preso ao chão. Sem fazer barulho e com movimentos leves e muito atentos, o homem sumiu na escuridão.
O rapaz novamente se pôs a chorar. Se arrependera de tudo o que tinha feito de errado na vida, principalmente dos pratos fartos de comida que não dividiu com ninguém.
Novamente o homem surge na vista carregando uma pá nas mãos. Agora, caminhando com passos rápidos e determinados. Chega bem junto do rapaz preso no chão que desesperado segura em seu pé suplicando ajuda. Assustado, o homem recua dando um grito histérico: “Saía de mim, seu zumbi desgraçado!” E com a pá tentou acertar a cabeça do rapaz, que, percebendo a agressão, puxou o pé do homem.
Com medo da reação de quem deveria estar lhe ajudando, o rapaz pegou a pá com o único braço móvel e deu vários golpes na barriga do sujeito. Pronto, serviço feito! Agora estava sozinho novamente.
Horas e horas se passaram e ele ali preso no chão, dominado pelo cansaço físico e psicológico. Vomitou num dos restaurantes mais caros da cidade, foi enterrado vivo e sem caixão, matou um homem, estava cagando e mijando nas calças com o corpo preso numa cova, tudo em menos de quarenta e oito horas. E foi exatamente isso que lhe deu forças para continuar a tentar sair daquele cemitério.
Gritou, mas novamente não teve sucesso. Com o braço que podia se mover, arrastou o corpo do verdadeiro defunto para perto dele, verificou os bolsos e só encontrou um maço de cigarros. Acendeu um e fumou. Tentava ter idéias do que fazer. Mas as dores no corpo ofuscavam o pensamento.
Levantou a camisa do defunto, toda suja de sangue e observando os cortes feitos por seus próprios golpes, sentiu a quantidade de saliva aumentar. Não pensou duas vezes e meteu uma dentada na barriga do morto.
Rasgava a carne com dificuldade e comeu até não poder mais. Foi encontrado desmaiado na manhã seguinte, ao lado do corpo do pai, quando mais um chegou para ser enterrado.
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