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cronicas-->Memórias do sanatório (capítulo IX) -- 15/01/2008 - 20:51 (Fernando Antônio Barbosa Zocca) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Memórias do sanatório (capítulo IX)

Pois foi, meu amigo, que no final de 1975 estava eu novamente em casa. Tinha acabado de receber alta no Cesário Motta. Nós ainda morávamos no prédio locado à rua do Vergueiro, cuja proprietária por ter o marido preso, exigia do meu pai, aumentos abusivos do aluguel.
À pressão velada que sofríamos, somavam-se todas aquelas forças reprimidas e ressentidas originadas no fato de ter Fúlvio Zocca, antecipado a herança, ocupando um imóvel pertencente ao espólio do meu Avó José Carlos Zocca.
A permissão para ocupar a casa, dada pela viúva Amábile Pessotto Zocca, não amainava as mágoas e muito menos satisfazia as necessidades materiais dos demais herdeiros.
Eles tinham razões para se queixarem, mas não para se vingarem com maldades.
Meu estado de saúde não melhorava. Passei a frequentar o consultório de psicologia clínica que ficava à rua José Pinto de Almeida 258 onde nos tentavam ensinar a relaxar e o valor da prática dos exercícios físicos.
Mas que nada: podiam sair da minha frente, que eu não passaria.
No consultório, de vez em quando, encontrava uma futura psicóloga, a adorável Leila, que fazia a tradução dos textos sobre os temas do seu estudo.
Numa ocasião, desejando brincar com ela, peguei um inseto de borracha (uma barata) e quando a universitária desviou a atenção, coloquei-o debaixo das folhas sobre as quais ela escrevia.
Ao voltar a escrever ela percebeu um volume esquisito que a impedia de prosseguir com a escrita e então, ao levantar os papéis, teve um susto tão grande que soltou gritos de espanto.
Pronto, lá de baixo, (estávamos no andar superior do sobrado) apareceu a psicóloga professora unimepiana pra assuntar possível irregularidade.
Apesar dos esforços daquele pessoal bondoso, a deterioração da minha saúde era agravada e reforçada pelas ocorrências ambientais. Meu pai restabelecia-se da cirurgia cardíaca, mas eu me sentia cada vez mais debilitado.
Então, Fúlvio dizendo-me que me levaria a um médico psiquiatra em Campinas, deu-me roupas e sapatos novos preparando-me para a outra viagem.
Na primeira consulta com o médico novo, estabelecido num bairro periférico da cidade, pudemos notar, quando na espera, uma panela de pressão, que ao ser utilizada na cozinha, emitia seu chiado característico.
A primeira entrevista revelou um profissional iniciante, mas ciente do que fazia. Ele conversou primeiro com meu pai e depois comigo. Pediu-me que fechasse os olhos, abrisse os braços e levasse os dedos indicadores, primeiro o direito, depois o esquerdo, ao nariz.
Em seguida o doutor pediu que eu desse saltos e tentasse coordenar os movimentos dos pés com as mãos. E depois disso tudo passou-nos uma receita de anticovulsivos.
Regressamos à Piracicaba, mas nada de melhora. A medicação usada causava intoxicação percebida pelas erupções e pruridos na pele. A visão turva exigia a aproximação dos olhos aos objetos para serem distinguidos. A coisa estava se complicando.
Ao par disso a disseminação da calúnia na vizinhança encorpava contra nós as opiniões negativas e condenatórias. Ó maldade!
Diante daquele quadro, que se apresentava, meu pai resolveu então que seria conveniente outra internação em hospital psiquiátrico.
E lá se foi este que vos fala, de ambulància, (mas no banco do carona), para mais uma temporada na hospedaria própria para os de cabeça fraca. Nós estávamos em 1976.
Porém antes de prosseguir, deixe-me voltar a fita um pouquinho: Fúlvio, naquela manhã da internação me disse, assim como um sargento diz pra um ordinário:
- Põe a roupa que eu vou te levar no médico!
- Yes sir! Vamo que vamo! Teria respondido eu se tivesse em condições, ou com força. Mas sinceramente, não tinha a mínima vontade de me expressar nem contra ou a favor sobre qualquer coisa ou assunto. Levantei-me da cama emporcalhada e vesti os panos novos que ganhara antes.
Então pude ouvir o ruído da ambulància que estacionava defronte ao sobrado lúgubre.
Acompanhado por meu pai, desci vacilante, a escada de lajotas vermelhas e deparei-me com o veículo que nos conduziria ao sanatório em Indaiatuba.
O motorista era um homem negro alto e gordo que, sem sair do seu lugar na direção, abriu-nos a porta da frente por onde eu e Fúlvio entramos.
Seguimos viagem até Campinas e defronte ao consultório do doutor A.C.G., recebi, no braço direito, ainda sentado no banco do carona da ambulància, uma injeção, que se não me engano seria de Gardenal.
O motorista ao ver a aproximação do médico descera e acomodara-se sob a sombra de uma árvore próxima.
As internações psiquiátricas seriam no futuro, usadas por adversários, desejosos da nossa exclusão, como fatos comprovantes de que éramos deficiente, louco ou estuprador.
Bom, mas depois da injeçãozinha aplicada com uma seringa metálica, prosseguimos a viagem até Indaiatuba.
Na portaria do hospital Fúlvio apresentou os papeis oriundos do INSS, adequando-se às exigências legais.
Fui conduzido à enfermaria onde me aplicaram outra injeção, se não me confundo, de substància semelhante àquela que me aplicara o médico.
Com um traje característico, se não me falham as sinapses, um pijama, descí ao pátio onde estavam todos os demais internos. E "pra lá de Bagdá", chapado com tanto neuroléptico, comecei a falar palavras em inglês para o espanto geral da malucada.
Ah, mas tinha um que me respondeu e continuou a se expressar em inglês até que eu nada respondi por ser meu repertório muito limitado.
Ele falava com as mandíbulas travadas; o som que lhe saía da garganta denotava a necessidade de muito esforço para se comunicar; seu pescoço e o rosto tumesciam quando ele articulava as palavras. Os dedos polegares, indicadores e médios amarelados, testemunhavam o uso enlouquecido do tabaco.
Ele só se afastou de mim depois que demonstrei não entender as verdadeiras saladas de palavras que ele usava nas interações. Só muito tempo depois vim a saber que aquela balbúrdia verbal era descrita pelos médicos como um dos sintomas da esquizofrenia.
Esse camarada de sanatório, que dizia ser engenheiro, saiu antes de mim e nunca mais o vi.
Depois da primeira semana, notei que chegou um sujeito magro, alto, branquinho que dava dó, delicado, afeminado, cabelos encaracolados, que diante daquilo tudo que via, sentou-se num dos degraus da escada que levava ao dormitório. Ele disse-me, que não se levantaria mais dali, nem a pau.
Pois foi só o baitola tomar a decisão para, logo em seguida, ver e sentir as dores das contrações que seu corpo sofria. Com certeza aquilo era efeito da estricnina, da noz-vómica. Eu passara por momentos iguais àquele no Cesário Motta e, meu amigo, minha amiga, não desejo aquele mal nem para o maldito pitbull mordedor de neném.
E eles ainda dizem que uma injeção daquelas é estimulante nervoso.
Bem, mas prosseguia a passagem do tempo, sem que ninguém fizesse nada além de comer, beber, tomar a medicação e dormir, até que um dia apareceu um enfermeiro moreno, delicadíssimo, com sua prancheta gordurosa na mão, numa manhã fria, dizendo que faríamos um passeio pela cidade.
E lá fomos nós, um bando de loucos, todos caminhando feito crianças de grupo escolar, em direção ao estádio de futebol da cidade. Sabe como chamava o time que jogava ali naquele campo? Primavera, meu amigo; e o campo tinha as medidas oficiais, não era brinquedo não.
Você já viu um gordo cego procurando jogar futebol (no gol) num campo enorme, no meio de birutas, sem que tivesse sofrido a tentativa de linchamento, feita pelo time todo, depois de levar o quinto ou o sexto gol?
Quase não me lembro nada das partidas que participei. Mas uma coisa ficou indelével na minha lembrança. Foi quando disseram, durante a dissolução do time, depois de mais um resultado adverso:
- Este lazarento, nem pra gandula serve!
Apesar de acompanhar a tropa de tontos, toda vez que ela ia ao campo, nunca mais ousei colocar os pés no gramado.
Naquele hospício não havia segregação entre os pacientes masculinos e femininos. No pátio todos se encontravam e, se pudessem vencer as barreiras das afecções que os levaram até ali, conversavam normalmente; havia gente que formava casal romàntico e presenciei o surgimento de namoro sério entre dois jovens que chegaram depois de mim.
Numa tarde, logo após a sesta, quando todos estavam vagando pelo pátio, vi uma jovem, aparentando 18 ou 19 anos, descasando num dos bancos de cimento existentes no local. Ela trajava um vestido leve, claro, largo, com alças.
Sentada e recostada naquele banco frio, ela colocara os pés afastados um do outro, sobre o assento, os braços sobre os joelhos e, de vez em quando abaixava a cabeça amparando-a nos antebraços.
Ela tinha a tez clara, os cabelos negros e lisos, sua compleição era franzina e possuia boa aparência. Não demorou muito para que, assim como as abelhas atraídas circundam o mel, começarem a circular em volta da moça, a rapaziada sonambúlica.
De longe algumas pessoas mais velhas olhavam e comentavam. Alguns diziam:
- Ela é casada e por ter traído o marido, foi internada. Não mexe com ela que o cunhado dela está ai.
Mas não tinha argumento que afastasse aquela negadinha da visão atraente. Também pudera, a moça estava sem calcinha! Aquele pessoal podia ser louco, entretanto entre eles, tinha pouca gente cega ou sem noção do que fosse gostoso.
O tempo de segregação no hospital aumentava o desejo de sair, de libertar-se; a querença de novidades, de novas vistas, avolumavam-se.
A impaciência era notória e comprovava-se com atitudes desarrazoadas como atirar os chinelos contra os vidros de uma porta ou, na secretaria, espalhar com um golpe, os carimbos na sala, ou ainda fugir pela porta da frente indo parar numa construção, pedindo emprego aos pedreiros da obra.
A ingenuidade e a tontice confirmavam-se no aceite da carona oferecida pelo "feitor" do hospital, que numa DKW semelhante a que teve um dia meu pai, saiu em nossa captura.
Depois de longa data no hospital surgiu por lá uma mulher alta, corpulenta, cabelos pretos, compridos, que não conversava com ninguém. Ela vivia no meio do pessoal costurando uns panos.
Naqueles dias notei também o aumento de pequenos grupos que se formavam e um zunzum que antes não havia.
Não se sabe ainda por quê, mas a fulana invocou comigo. Só podia ser intriga. Então numa tarde, depois de uma troca de palavras saiu a mocréia correndo atrás de mim, com uma agulha de costura em punho.
A torcida delirava!
Numa noite, depois da quizumba toda, antes do chá das nove, um enfermeiro dentuço escrevia algo nos papéis postados na mesa pequena da enfermaria. Lá no canto esquerdo, ao alcance das minhas mãos uma maçã e-nor-me, instigava a gula. Ao redor o zunzum da inferneira.
E não é que a besta aqui resolve abrir a portinhola que separava o corredor, da sala onde estava o moço e, com a mão esticada apanhar a fruta?
Esta cavalgadura que vos fala só teve tempo de dar uma dentada na maçã. O enfermeiro pegou-nos pelo pescoço, num golpe conhecido como "gravata" e só largou quando, asfixiado, perdi os sentidos.
Recobrei a consciência deitado no chão, ofegante, com o coração aos pulos. Levantei-me e sai de fininho do trecho, dizendo que não sabia brincar. Mas era aquilo brincadeira?
Numa tarde havia uma concentração inusitada de birutas na sala usada para bailes e reuniões de grupo com a psicóloga. É que naquele dia, o Esporte Clube XV de Novembro de Piracicaba disputaria com o Palmeiras o título do campeonato paulista de 1976.
Não sei se aquilo foi praga de donzela casadoira frustrada ou o quê, mas fizeram-me sentar num sofá apertado, espremido entre os pancadas. Ó sufoco, ó bodum!
No final o Palmeiras venceu, não me lembro se por um a zero, ou mais. Mas o XV tornou-se o vice-campeão paulista, para a alegria da galera, que tirava o maior sarro de mim.
Enfim chegou o dia de partir. Meu pai e mãe vieram buscar-me. Eles estavam à minha espera, no jardim externo, dentro de um fusca branco, no qual embarquei, naquela manhã.
Ainda sob prescrição médica, ingeri medicação anticonvulsiva, por dezesseis anos, sem nunca ter sofrido antes uma única crise epiléptica durante toda a minha vida.
Em 1993 resolvi deixar aqueles laços que me submetiam. Parei com os remédios e até hoje, passados já 15 anos, nunca mais usei qualquer tipo de medicação psicotrópica.
Muitos ensinamentos aprendi com esses acontecimentos todos. Dentre eles um se destaca: o consultório médico não é o local adequado para você tomar conhecimento sobre anatomia ou fisiologia humana.
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