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Contos-->A confissão -- 17/12/2018 - 15:16 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








 




 Decorridos um dia e uma noite sem qualquer notícia, não era de se acreditar que o vaqueiro José Lino ainda pudesse estar vivo.

 Euzébia enxugou as lágrimas que lhe escorriam no rosto. Desgosto profundo tem uma mãe, quando perde um filho. Sozinha no quarto, ela desatava uma oração atrás da outra, invocava São José dos Vagueiros e pedia à mãe Medianeira que intercedesse por José Lino. “Meu filho, meu filho...cadê meu filho? Eu só tinha ele.”

Absorta em seus pensamentos e orações, nem percebeu a chegada de Nhá Santa.

Tome  — disse Nhá, entregando-lhe uma caneca de louça com chá de jasmim.  Euzébia levantou-se. Tomou o chá e foi pra varanda. Descansou os cotovelos na balaustrada, percorreu com o olhar todas as mangas ao derredor, até aonde sua vista alcançava. Emocionada, e viu no meio da pastagem um vulto cavalgando o trote da vitória.

— É ‘seu’ José Lino! — gritou um menino. 
— E traz um couro de bicho na lua da sela, pintado, bonito, estampado em preto e amarelo-ouro como chita. 

Simultaneamente, João Velho e vaqueiro Alexandre Guedes se aproximavam vindo da  direção de Sete Passagens, enquanto José Lino chegava pela estrada que dá no rio Verde.
A fazenda Campo Grande, toma ares de festa. Apareceu uma cabeça na janela. Depois, cada janela tinha duas ou três cabeças curiosas. Coronel Generoso  chega    fumando um cigarro de palha.

— Onofre, faça o combinado!
— O boi, patrão?
— Sim! O boi da matutagem. Primeiro, toque o berrante. Prenda no curral os bois  mais gordos. Eu mesmo quero fazer a escolha.
— Vai ter  missa? 
— Não dá tempo de chamar o padre. 
— Com licença, patrão. Preciso tomar providências.
— Espere... Passe no curral e confira se a índia está bem amarrada. Não quero acidente na festa. Vá até a oficina e mande Zé Coco guardar as ferramentas. Quero ouvir um “Guiano em Oitava
— Tô indo, patrão.

O  juízo de Onofre ferveu. 

Catou quatro pedrinhas e pôs na algibeira. Cada uma delas  representava uma ordem recebida. À medida que fosse cumprido a missão, retirava uma pedra e jogava fora. No fim se sobrasse pedra, faltava cumprir alguma obrigação.  Mas Generoso dera três ordens. E Onofre pôs quatro  pedrinhas na algibeira!...Bem,  a outra era pra se lembrar de  ir no Juramento, comprar extrato Dirce pra ficar  cheiroso... 

Foi.
Teve vontade de soltar a índia para ir se acostumando com o povo. Ela estava presa por uma corda ao  coração do vaqueiro. Ninguém podia se aproximar da índia. Mas Onofre chegou perto. Perto demais daquele coração selvagem.  O vaqueiro ofereceu à índia   água numa cuité. Apinajé aceitou. Bebeu, e seu espírito ouviu a voz do  Deus de homem branco, saindo do coração do vaqueiro. 

A torre de Babel desmoronou-se. Índia e vaqueiro falavam agora   a mesma língua.

— Chegue aqui!...
— Posso não! Homem branco é  inimigo. Mata  mãe natureza, e nossa gente.

Nenhuma palavra humana é capaz de descrever o que Onofre viu e sentiu ao perceber que estava em franco diálogo com uma índia selvagem pela qual se apaixonara.

— Vaqueiro ter cheiro bom — disse Apinajé.
— Índia ser bonita. Ter cheiro de mata orvalhada, ovelha molhada,  leite fresquinho e tupixaba. Cheiro de vassourinha varrendo forno de fazer biscoito caseiro. 
— Índia gostar de vaqueiro. 
— Lá vem o povo.  Finja que não fala a língua de homem branco.

Onofre retirou-se.
A notícia que uma índia tinha sido capturada nas imediações da fazenda Campo Grande espalhou-se, rapidamente. Gente da circunvizinhança veio conhecer aquele vivente estranho. Até o padre que celebrava na capela da Catarina, também apareceu por lá.

— Não pude faltar a seu chamado,  coronel Generoso. Obrigado por mandar o vaqueiro me avisar. Eu estava mesmo curioso para saber sobre a índia capturada na fazenda Campo Grande. 
— A notícia deve ter viajado léguas — acrescentou Generoso.
— Creio que o senhor foi prevenido, ao mandar abater um boi para a festa. Vai chegar muita gente na fazenda. Isto é bom. Muita gente só não é bom, quando a comida é pouca. Vou aproveitar o ajuntamento de gente, para celebrarmos a festa do vaqueiro. Meio fora de época, mas bem a calhar para festejarmos a vida do vaqueiro  que dado como morto foi encontrado.
—Sou todo agradecido pela novidade. É a primeira vez que se reza uma missa de vaqueiro nesta fazenda.
—  Onde está o vivente? 
— A índia?
— Sim!
— Está amarrada na casinha de Curral. Venha ver, Padre!

A caminho do curral, uma multidão de  homens, mulheres e crianças seguiam o sacerdote como ovelhas atrás do pastor.
— É bicho do mato — disse um deles.
 — É gente, retrucou outro.
— Não come nem bebe. 
— Sem comer pode até durar alguns dias; sem beber morre logo!
— Morre não! Na hora que a sede apertar. Ela bebe. Bicho sente o cheiro da água de longe!
— E água tem cheiro, abestalhado?

Pururuca baixou as vistas. Jurara a Nossa Senhora de Montes Claros, que não faria mais nenhuma arte com ninguém. Nem mesmo com os animais. Tudo é criatura de Deus.
João Velho acudiu.

 — O animal vem  farejando a água no  cheiro da terra molhada. 

Pururuca do Curral de Dentro arrepiou, como se uma onça farejasse seu rastro. Olhou para trás. Viu uma multidão que descia em  direção ao curral. Sentiu-se protegido. A onça mostra-se ao da frente, mas ataca é o derradeiro. 

— A índia vai morrer de fome.
— Preste atenção! Ela comeu  churrasco! 
— Quem é doido de dar churrasco a índio brabo!
— Comeu na mão de Onofre. Onofre deu carne mal passada. Quase crua. Ela comeu. O povo rico também come carne desse jeito. Sangue escorrendo.
— Porcaria! Deve ter ‘nicróbe’.
—  Ô seu  torresmo  rançoso, a gente diz micróbio. 

Alguém  estalou os dedos, imitando o mastigar de torresmo: “trek... trek”. Pururuca se conteve. Não queria brigar por causa de apelido!  Zé Pilão brigava. E a molecada pirraçava gritando por onde ele passava: “ Zé Pilão!...  Zé-prequeté!”  Ninguém gosta de apelido. Dino vira uma fera quando é chamado de Dinotério. 

— É tirado a valente, mas não honra as calças que veste. Já correu com medo de Capistrano. Agora finge ser amigo. Fala até em sociedade. E Turíbio Medonho quer participar da sociedade para criar peixe-leiteiro... 
— Amarelo, peixe-leiteiro é conversa pra  boi dormir!
— Quem tá amarelo é Onofre! Paldo, paldo!...
— Pálido demais — corrigiu João Velho — talvez carecendo de sangue...
— Tudo por causa de uma mordida à toa que a índia deu na ‘batata’ da perna dele? Os bichos se mordem na hora de fazer cria. 
Onofre se aproxima, a tempo de ouvir o comentário de Pururuca.
— Prosa ruim... 

Turíbio Medonho provoca.
— E se índia tiver um companheiro e vier atrás dela?
—  Corto na carabina papo amarelo! 
— Você  acha que ele  vem sozinho? índio anda de magote!
— Vai tudo no mesmo saco...
— Calma, meu filho, disse o padre — índio é criatura de Deus. É preciso, no entanto, passar pela água do Batismo, para se tornar filho, e como filho, herdeiro da graça. Deus ao criar o homem, além da vida temporal, concedeu-lhe uma vida sobrenatural. Mas o homem afastou-se de  Deus por causa do pecado.  

O povo se aglomerou em volta  do padre.

— O momento é propicio para uma confissão comunitária — disse o sacerdote. 

 Corina ergue o polegar direito em gesto de aprovação:

— Aprovado.  Churrasco e bebida, só depois da missa — dissera a anfitriã, abrindo um largo sorriso. 
— Nunca tinha visto Nhá  Santa  tão feliz — disse Generoso.
— Também eu não caibo em mim, meu cravo, emendou Corina.

Generoso gostou do ‘não caibo’. Mas, não quis comentar. Sabia que Corina tinha bons  modos e se comportava sem vexame, tanto no meio de gente grã fina, quanto  entre os  mais humildes camponeses.

—  Meu Cravo, não te  parece estranho celebrar missa   dentro de um curral?
— Uai, Corina! E Jesus, nasceu aonde?
O padre postou-se atrás do altar improvisado.
— Alguém tem um berrante aí? Se tiver toque. Vamos dar início à celebração em homenagem a São José dos Vaqueiros.
— E a confissão? Perguntou Corina.
— Junto com a missa. Tudo junto.

O presidente da celebração retirou da batina um pequeno papel onde fizera anotação de alguns tópicos: 
 
Irmãos e Irmãs! Neste mês de novembro, celebramos Santa Catarina de Alexandria. A vida e o martírio desta que viveu no século IV, ainda representa um exemplo de vida a ser seguido. Seu nome se tornou uma escolha comum no batismo, e em sua honra muitas igrejas, capelas são dedicadas a ela. Agora há pouco, fizemos o primeiro dia da   Novena de Santa Catarina, na capela erguida em homenagem a esta santa, na fazenda  Lama Preta, aqui pertinho.
 
Olhou para a assembleia e continuou. “O padre fica feliz em perceber aqui a  presença de muitos fiéis, que também estiveram lá na capela da fazenda Lama Preta. Sejam todos bem-vindos.” 

Fogos de artifício cruzam o céu. 

Corina fez a leitura do Evangelho. E logo em seguida padre Paraíso proferiu  sua homilia. "Caros fiéis, acabamos de ouvir o capítulo1,  versículos  de 4 a 7  em que São Marcos apresenta João Batista como aquele que vem preparar o caminho do Senhor. Acaso o Senhor precisa que  algum humano  lhe prepare o caminho?"

Os fiéis se assustaram.

O padre explicou:
João Batista veio preparar o povo, para receber o Salvador. Naquele tempo, uma multidão veio ter com João Batista;  confessavam seus pecados e eram batizados. Vocês também estão dispostos a confessarem e se arrependerem dos pecados? “Sim”, respondeu a assembleia.

— Façamos então uma confissão comunitária.  Quem odeia, perdoe. Quem ama, ame mais ainda.
 E concluiu: 
“Que as palavras do Santo Evangelho, perdoem todos os  nossos pecados e nos conduzam à vida eterna.”
Amém! — respondeu o povo.

Dita a missa, fogos de artifícios explodiram lá fora. E o leiloeiro anunciou: “ Leitão à pururuca, quem dá mais!” Dino arrematou a prenda e ofereceu ao vaqueiro Pururuca. O povo riu. O leiloeiro não entendeu. Entregou ao vaqueiro a bandeja com o leitão assado e ergueu uma compota de doces.

 — Doce de mamão verde! Pesa mais de um quilo. Quantos me dão por esta compota de doce?...
 Generoso apreçou. 

Apressou-se em oferecer valor alto. A prenda era capricho de Corina, para ser arrematada pelo marido. Dólmen dobrou a oferta... Batista Generoso acompanhou duas vezes a elevação de preço, e acabou desistindo de arrematar a prenda. Por seu turno, o coração de Venâncio Dólmen, arquitetava planos diabólicos para ofender o anfitrião. 

— Esse doce, Generoso não come! 
E Dólmen cobriu a última oferta. 
— Dou-lhe uma... dou-lhe duas...dou-lhe três... — disse o leiloeiro.
 Coronel Dolmênico arrematou a  joia. Simulou tropeçar numa pedra e deixou a compota de vidro cair, espatifando-se no terreiro.
 —Quebrou não pago!

O empregado do Coronel Generoso, não aceitou a ofensa.
  Onça aqui não bebe água. — cochichou ao ouvido de Dólmen— pague logo o doce e a vasilha. Pague agora, enquanto não resolvo cobrar também o desaforo. 

Na mente de Dólmen passou a cena do confronto de Onofre com os ciganos: o velho gajo desfigurado, estatelado no chão, e o sangue escorrendo. Pagou. Venâncio Dólmen pagou a conta.

— Parece que o leilão, vai varar a noite toda? — Interferiu Robert, impaciente — se forem muitas prendas, teremos que abrir outro capítulo.
— Calma, Bob!  Nem vou contar que foi com o dinheiro daquele leilão que Campo Grande deu início às obras da capela em honra a Nossa Senhora de Montes Claros e  São José dos Vaqueiros.
 
 ***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."






Adalberto Lima




Enviado por Adalberto Lima em 17/12/2018

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