A vaca leiteira pasta na manga fronteira ao curral. Lambe o sal, sacode a cauda e muge chamando a cria e novo dia se levanta no vaivém do nascer e pôr do sol.Na fazenda a aurora chega, quando o bezerro apartado berra, suplica, pedindo sua cota do leite guardada nas tetas da mãe. Vai um dia, vem outro, mal descansa, e outra vez o sol se levanta sonolento no balde de leite do vaqueiro e vai dourando de luz planícies e montes. Com o dia amanhecido, Euzébia tange a galinha que bica comida na mesa. ‘Sai trem desgramado, vai quebrar a imagem do santo!" À tarde, pálidos raios do ocaso tocam o crepúsculo das lembranças no coração de Corina. Belos tempos em que a juventude lhe sorria, quando em noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre. Feliz, a mulher do fazendeiro morria de paixão, ouvindo “Saudade de Mirabela”, que o marido, inventado de cantor, tocava na viola que Zé Coco fazia, com as próprias mãos, e um toco de canivete. Naquele dia, Generoso Batista disse aos cafuçus: ‘Hoje não toco.’ Foi quando Tunico Oliveira se manifestou recitando Ferreira, em pé de verso, guardado na memória desde a mocidade. Dim, dão... Dim, dão... João Grilo foi um cristão que nasceu antes do dia,criou-se sem formosura, mas tinha sabedoriae morreu antes da hora pelas artes que fazia... — Atalho o frango nêgo mole!— Não me interrompa, patrão. Ainda quero trastejar uma cantiga que assuntava pai imitando Leandro Gomes do Pombal. Quando cachorro falava, gato falava tambémGato tinha uma bodega como hoje o homem temOnde vendia cachaça encostado ao armazém. A meninada ria. Corina aplaudia, mas, naquela noite, Nhá Santa não serviu café nem chá. No dia seguinte, mal se põe o sol, já o céu aparece salpicado de estrelas e se assemelha a uma veste de princesa tecida por mãos de fada. As horas avançam velozes cavalgando a lua de São Jorge. A bicharada, de hábitos noturnos, passeia. O rato foge da coruja que pia, e arrepia de medo o cabelo da meninada. Suas pálpebras pesadas pedem descanso. Tunico Oliveira se despede e sai. Demais camaradas também se vão. Os meninos que brincavam de cabra cega na calçada, agora dormem a sono solto, até que nova aurora se levante no bico da passarada. — Vai chover, disse Xandão.— Nessa sequidão medonha, o amigo profetiza chuva para o sertão mineiro? O patrão vai tirar o gado para o Gorutuba. Alugar pasto, salvar o rebanho.Era verdade.Os anos setenta repetem a seca de 32 no céu rendado de nuvens esbranquiçadas. O sol escaldante consome a pastagem e bebe a água do rio. O Saracura não corre; o Lambari secou, e rio Juramento fraqueja. A serra azul, outrora verde, mostra-se agora acinzentada. O ar treme. Freme e se contorce de dor a natureza. Fome e sede ameaçam o plantel de gado. Mas na casa do coronel ainda tinha muito legume guardado em tonéis zinco. Na cozinha, flocos enegrecidos de picumã, descem do teto, confundindo-se com a linguiça que defuma na fuligem do fogão a lenha.— Venha ver, senhora! O terreiro está coalhado de gente!— Vi. Há uma multidão! Abata três galinhas e dois frangos. Faça um tacho de arroz com pequi, disse Corina.— E feijão?— Pobre não gosta de feijão. Faça pirão, maxixe e quiabo. Cozinhe um caldeirão de nabo. Saco vazio não segura em pé. Fazer comida para mais de trinta pessoas era serviço demais para uma só.— Nhá Santa... Nhá Santa...— Espere, estou rezando...A cozinha se movimenta.Cuidadosamente, Euzébia retira a penugem dos frangos. Corina cuida do maxixe. Nhá Santa lava o quiabo picado, e põe limão. A panela baba. A chaminé respira cheiro de sementinha de coentro verde, alho e sal socados no pilão. Nhá arruma a mesa grande. Talhares postos, doze cadeiras acomodam os comensais. Depois mais doze pessoas se sentam à mesa e se revezam. Mais doze, enfim, se fartam. Os meninos comem na cozinha, e os grandes que são cria da casa, sentados no chão, recebem a boia em prato esmaltado. É hora da procissão. Peregrinos tomam a estrada. E se vão. Rezam. Cantam. Suplicam. E voltam molhados. Pingos miúdos caem no telhado, correndo e escorrendo nas cabecinhas dos pirralhos vestidos só da cintura para baixo. Viúvas da seca entoam canto de lamentação e mães choram seus filhos ausentes. Paulista em Taubaté nascido, Alexandre Guedes puxa a reza e se recorda das Aves-cheia-de-graça que dizia, no colo da mãe, quando criança. O sino toca. Mulheres cantam hinos, invocando os santos de devoção. Guedes, intercede, pedindo que se abram os reservatórios do céu sobre o Norte de Minas.Era dia de São José.Fiéis, ajoelhados pedem chuva. Despejam sobre a cruz da capela de Santa Catarina as garrafas de água que levaram. Vaqueiro Alexandre Guedes se inclinou até o chão, pôs a cabeça entre os joelhos e disse a João Velho: “Vá e olhe para o lado de Sete Passagens.” O ajudante foi e voltou dizendo: “Não vi nada.” Sete vezes Xandão mandou que ele fosse olhar. Na sétima vez, o ajudante voltou e disse: “Eu vi subindo da serra uma nuvem pequena, do tamanho da mão de um homem, como nos tempos do profeta Elias.” Imediatamente, o ribombar do trovão, dá sinal de que o céu ouviu as preces penitentes daquela gente sofrida. A multidão fez silêncio para ouvir a voz de Deus. Lágrimas de agradecimento se misturavam às gotas miúdas choradas em peneira fina. A procissão se desfez. Fiéis retomaram a estrada, a cerca de légua e meia de casa.— Quem é o anjo gordo que puxou a reza? — Quis saber Corina.— O anjo gordo, careca, e sem asas é o Xandão; chegado de Taubaté e contratado, como vaqueiro da fazenda Campo Grande.— É casado?— É. Mas a mulher não acompanha. — Que pena, um homem tão bom!Naquele ano, choveu pouco no Norte de Minas, e a luta para salvar o gado era interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava um ali, caia outro acolá... Até barrigueira para o animal ficar em pé, Generoso fazia. Aprendera a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia o mesmo e salvava parte do rebanho. Quem não tinha papelão, oferecia cacto sapecado, levemente queimado, para eliminar os espinhos.— Papelão para vaca parida? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.— Nada não, mulher! Quero que o leite saia embalado como ovo de galinha.— E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?— Sê besta!...Rapadura é o melhor energético para levantar animal caído. Generoso não quis revelar que na seca de 1932 ele comeu macambira. Comera também sementes de maniçoba, apanhadas no esterco das vacas e nem disse que era nômade como milhares de nordestinos, que abandonam suas terras, por causa da seca.No outro dia, a tantos de março, mais uma vez, a peonada se reúne no alpendre para ouvir moda de viola. Tiru-liru-liru, liru- liru liru-lão. Tiru-liru-liru, liru-liru liru-lão. A seca de 32 não foi culpada sozinha, porque desde 27 que ano bom já não vinha... Corina pede que o marido toque saudade de Mirabela.— Primeiro toco meu amor por você.— Tem música com este nome?— Tem...E tocou tristeza do Jeca. Nestes versos tão singelos. Minha bela, meu amor. Pra você quero contar. O meu sofrer e minha dor... — Quem é o cantor? Quis saber Pururuca. — Num tá vendo que é o coronel, respondeu Turíbio Medonho.Generoso riu, e em estrondosa gargalhada não pôde segurar o berro, quando a barriga subindo e descendo, chacoalhou. E a coalhada chacoalhada, respondeu com um trovão abafado: “A fôôôn so..."Corina beliscou as costas do marido: “Meu cravo, não leve a Tristeza do Jeca para debaixo das cobertas”. Os meninos riram. E um deles disse em voz alta: “Foi o coronel quem peidou.” Tunico Oliveira tentou consertar o vexame, e acrescentou: “Pururuca queria saber quem compôs Tristeza do Jeca. Não tenho certeza, mas deve ser Angelino de Oliveira, meu parente distante.”— Né isso não. O menino está certo — emendou Pururuca — se ele não aponta o responsável, a culpa do pum caia em mim.Houve uma trovoada de risos. E Pai Luís deixou cair a dentadura na xícara de café.— Inté outro dia, patrão.— Até.Vaqueiros e agregados tomam o caminho de casa, levando no ouvido o aboio de Patativa do Assaré, que Generoso tocara para fechar as cortinas de mais uma noite de viola à luz do luar: Êeee vaca estrela, ôoooo boi fubá... *** Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."Adalberto Lima Enviado por Adalberto Lima em 28/05/2019 |