Este conto começa com uma certa
chuva em plena seca numa certa cidade interiorana de certo país provinciano e
certamente atrasado. Vocês hão de convir que às ficções se somam realidades
absolutamente inverídicas e os fatos podem estar distorcidos, fatos que se
tornam pouco verificáveis em tempos de distorção de informações. Cada fato que
se propaga vira um factoide que gera comentários que se tornam realidade
vívidas, de modo que o contínuo do tempo-espaço se altera. Se você quiser
continuar lendo, tem de ter em mente que a maior velocidade que conhecemos,
além da velocidade da luz (que limita o homem ao seu sistema planetário) é a da
mentira. A mentira se propaga como fogo em mato ressequido, à guisa de uma
guimba de um cigarro para incendiar Maracanãs inteiros. A mentira vira verdade
para certas pessoas e em certas situações, ela move montanhas. A mentira move
morros de lugar, muda cidades inteiras, arrasa países e faz o mar virar terra e
até inunda as áridas plagas que aqui descrevo. Aliás, não descrevi nada ainda;
a cidade em questão amanhecera mais seca que de costume. As mulheres, já de
manhãzinha, se abanavam com leques e punham nos pescoços panos molhados para
aliviarem o cansaço da noite mal dormida, tal era o bafio que as incomodara (mais
do que os maridos roncadores ou dos insistentes na luxúria). Os galos haviam
acordado cedo de modo incomum. Já cacarejavam e ciscavam seus terreiros, à cata
de comida e de parceiras.
Acontece que dona Maria, entrada
em anos, ia ao curral pegar o leite de sua vaquinha. Dona Maria, muito
religiosa, punha o terço nas mãos e orava para seus santos para mandarem mais
água, que esta não vinha faz tempo ali. Ela via sua horta murchar e chegava a beber
menos água para que sua leiteira prosperasse: generosa dona Maria! Lá ia com
seu balde, um pano para enxugar as sobras e a testa. Mas, esperem: Que ruído
era este? Parecia...Chuva...Ou eram gotas grossas que pingavam? Bah, bobagem,
pensa Maria. Prossegue seu passo claudicante, pisando em galhos secos e folhas
amarelecidas de ipês que ameaçam florir, pois que já estamos em plena estação
esperançosa.
Novamente, um gotejar! Ou seria
um rastejar?
--Vem cá que acabo com tua raça,
cobra! Demonho! Te tiro a pele!
Maria já duvida do que ouve à sua
direita. Mas caem gotas espessas! Elas vêm do alto!
--Arre, que eu não sou nem surda
e nem louca. A vaca que espere, oras.
Ela desvia seu rumo para debaixo
da paineira que serve de abrigo ao gado que se dispersa nos campos pedregosos
da região e enxergam na sombra poderosa um suave refúgio, de quebra suprindo de
esterco a horta de Maria. Ela vai em direção ao Pau-cigarra, que ajunta nos
dias de verão um berreiro que precede as chuvas escassas; quem sabe? Seus chinelos
de couro puído se arrastam devagar agora, pois as gotas caem ali. Certeza, ela
olha e vê incrédula que no alto da copa da árvore, pequenas nuvens se adensam e
de lá a água cai em grossas gotas, molhando o mato em torno e abaixo do tronco.
Dir-se-ia que a árvore chorava!
--Minha Nossa Senhora!
Ela pega o terço e reza sua
Ave-Maria e seu Pai-Nosso, porque ninguém consegue ver uma árvore que chora e
passa ileso por isso. Um milagre é um milagre e pronto! Acabou-se! Ela passa as
mãos no mato úmido e comprova que as lágrimas sagradas vêm daquelas pequenas
manchas brancas como neve. Persigna-se, comove-se e junta as suas lágrimas à da
árvore sofredora...Acalenta sua alma sofrida à lenta presença de sua
companheira de tantos anos e verões.
Se você chegou até aqui, vai
querer saber da vaquinha que muge no estábulo, túrgida de leite que podia ser
dos bezerros, mas é de Maria. Ela já rezou o que podia e vai tirar o leite da gemente.
Tira quase um balde inteiro e se benze mais porque até a vaca resolveu dar mais
de si! O que dirá seu marido?
Carrega o balde pesado, mas a
alma lhe vai leve, porque tem de contar ao esposo da sua ventura: Uma árvore
que, triste com a seca alma dos homens, pranteia a falta de fé de tantos e a
caridade de tão poucos para tamanha humanidade.
--Árvore que chora? Gelo nos
galhos? Ficou perturbada, mulher? Andou lendo os livros errados?
--Mas, meu velho, juro pelos
nossos filhos. Se quiser ver, verá. Quem tem olhos de ver sabe que eu digo a
verdade (e o terço lhe é testemunha disso).
--Bobagem. Nossos filhos já vão
longe, uma mais distante do outro; jura por eles, Maria?
--Juro.
--Então vamos lá de novo!
Os quatro pés caminham em
uníssono e os quatro braços se erguem com as quatro mãos, louvando a planta
milagrosa. Estava lá: Um gelo, dois gelos, uma névoa nas pontas dos galhos e a
água que tanto lhes faltava gotejava em grossas pancadas no chão compacto de
poeira e argila, seco de tanto sofrer.
--Milagre!
--Pois é mesmo, uai!
--Temos que avisar o padre.
Logo, de dois braços, quatro se
somaram a oito e mais dezesseis a trinta e dois: Todos apontavam a árvore que
chorava o infortúnio dos dias atuais. A água enchia xícaras e pequenos baldes
que Maria jogava nas hortaliças e ainda dava de beber à vaca que produzia mais
leite.
--Arrependei-vos, pecadores! Até
uma árvore pode chorar para remir vossos pecados, como Jesus expiou na cruz
tanta ignomínia!
--Padre, vejo lá nas
alturas...Não é a Virgem Santíssima?
Nesta altura, os olhos veem até o
que os outros creem ver, de modo que lá estava Maria, apontando os galhos
chorões e avistando, em sua santa humildade, os pezinhos da Virgem Santa
espargindo a água de sua Santidade e infinita tristeza; não era ela que
anunciara as profecias que se cumpriam à risca, menos a terceira? Seria aquele
um sinal da Virgem Imaculada ao seu povo sem fé?
--Vejam aqueles que querem ver e
comprovar, é a Virgem que chora água benta sobre os fiéis! Arrependei-vos, ó homens
de pouca fé!!
Sob a árvore, foi colocada uma
pia batismal e vinham fiéis de longe para batizar suas crias nas pias águas que
vertiam dos olhos de Santa Maria; Gente de muito longe vinha bater na casa de
Maria e Ramiro (era o nome do marido dela). Claro que sua chácara ganhou
notoriedade, porque ali estava a árvore sagrada benzida pelo padre e que vertia
as águas do céu para o povo sofredor.
Acontece que ali perto moravam
uns vizinhos, como é de se supor porque senão as terras não seriam habitadas se
Deus assim quisesse fazer o mundo árido de águas e pessoas. Os vizinhos são um
mal necessário, mas não tanto. Francisco era laborioso e atarracado; tinha um
par de filhos que, atraídos pelas notícias e espertalhões que eram, vinham
tentar aquinhoar algo em troco daquela abençoada fé vegetal. A eles, claro,
interessava aumentar o patrimônio dos bolsos à custa do patrimônio celestino.
Os dois chegaram à cidade disfarçados de camponeses, misturados à multidão que
rezava. Um deles se dizia cego e o outro, sabedor de sua falsa escuridão,
alimentava a própria ao afirmar ser um pregador e que, através de suas preces e
à custa das águas sagradas, quem sabe curaria a cegueira do farsante; Mal sabia
o pai deles que havia alimentado um par de escroques.
--Pela santa fé do senhor, eu
digo que curarei este homem da cegueira!!!!
O irmão contorcia-se em falsa
cegueira, que naquele momento era verdadeira como a de Saulo próximo a Damasco
na cabeça dos pobres fiéis; abismados eles viram que, passando um pouco da água
ungida nos olhos do pobre esfarrapado, eis que este se ergueu urrando:
--Eu posso ver! Eu posso ver!!!
Prostravam-se as mulheres
chorando; as mulheres mais jovens desconheciam aqueles dois, mas uma delas
duvidou decerto. Os homens tiravam os chapéus e olhavam a árvore que chorava,
agora ainda mais porque realmente triste ficava com tanta maestria da mentira
malfadada que os dois espertalhões pregavam na multidão confrangida.
O milagreiro e o curado estenderam
os chapéus e encheram-nos de dinheiro. Era o dízimo que levariam à Igreja do
padre para as melhorias.
No dia seguinte, à mesma hora, lá
estavam os dois, desta vez o curandeiro apontando ao falso aleijão que
manquejava aos pés da árvore; eis que gritou:
--Em nome da Santa Árvore, eu te
curo!
Caíram as muletas no chão e
gritou o farsante:
--Eu posso andar!
Novamente a coleta foi farta.
Tinham feito um bom pé de meia os poltrões e contavam as moedas rindo da ignorância
daquele povo que lhes pagava o dízimo sem saber se iam mesmo dar ao padre tanto
dinheiro. Todos lhes acreditavam, menos aquela que duvidara. Madalena foi ao
padre perguntar se conhecia os milagres que traziam tantas bênçãos à Igreja,
com tanto dinheiro que ia dar para comprar outra igreja, talvez até a Santa
Sé...
--Que dinheiro? Que milagres? O
único que conheço e reconheço é o choro de Nossa Senhora nas pontas de nuvens
da árvore que pranteia nossos pecados...
--Não recebeu nada, padre?
--Não. A fé pode mover montanhas,
mas aqui não entrou nada; nem esmolas nos trazem mais aos pobres...
Corajosa que sempre foi, Madalena
fez jus ao nome: No dia seguinte, viu chegar o falso milagreiro e antes que o
outro pudesse fazer qualquer coisa, ela se prostrou ao chão e, como uma gata no
cio, começou a se esfregar no santarrão. Dizia-se possuída pelo demônio e
queria que ele a curasse. O outro, assustadiço que só, já batera em retirada,
deixando o desconfiado irmão a bater-se com a formosa Madalena, que só faltava
lhe arrebatar a manta, deixando ver que até santo tem limite pois que ele já se
sentia elevado às alturas da paixão da carne pelas carnes bem nutridas de
Madalena...
A multidão, vendo que a possuída
queria fazer-se possuir sem remédio algum do milagreiro falso, deu com as mãos
em pedras e paus e , no momento mais triste que viu a árvore chorona, apedrejou
o infeliz que saiu troncho e sangrando mas vivo, em corrida que o alijou da
cidade, ainda por cima sem o irmão que, malandro, levara a rapinagem toda
embora para paragens mais carinhosas...
O pai do filho pródigo
sapecou-lhe um tabefe, aumentando o inchaço do rosto deformado de pedras e
vergonha. Veio assim, foi-se embora, com jura secreta de matar o irmão Abel,
que agora ele, em falsa fé, chamava de Caim.
O padre, preocupado com a
repercussão do caso, mandou tirar a pia batismal. As águas que vertiam da
árvore começaram a mirrar. Os fiéis batidos de cansaço de esperar uma das
lágrimas de Santa Maria e sedentos de outras águas, rareavam. Dispersavam-se os
homens, persistiam os santos acima das nuvens.
Enfim, veio o dia em que a árvore
secou de vez seu pranto; o que se deu foi o verdadeiro milagre, porque as
cigarras vieram anunciar as chuvas que deveriam cair e tanto demoravam! As
cigarras, do alto de sua árvore, anunciavam potentes a chuva que alimentaria os
prados, as vacas, os bezerros, os porcos, o mato seco, os córregos e as
nuvens...
Com o aguaceiro, vieram os
trovões e os ventos, a umidade e o refresco dos rostos banhados de suor e
lágrimas.
Maria viu os relâmpagos do
estábulo.
Pegou o terço e agradeceu,
porque, aí sim, Santa Maria chorou a cântaros. |