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Poesias-->Resignação ou a História de João e Luíza -- 08/07/2001 - 20:44 (ANTONIO ELSON RODRIGUES SIQUEIRA) |
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-I-
João, pobre diabo
Vivia na miséria.;
De expressão sempre séria
Triste era seu fardo.
Luíza, de família
Deveras abastada,
Por todos cortejada,
De João nem sabia.
O amor desconheciam
Crianças inocentes
Que ainda adolescentes
A vida descobriam.
Na mesma sala de aula
Estudavam Luíza,
João e a grande utopia:
Junção das duas almas.
-II-
O tempo envelhecia...
Findava-se o ginásio
E João, solitário,
A vida maldizia.
Sua grande devoção
Jamais pôde externar.;
Por medo, o que falar
Fugia-lhe ao coração.
Em prantos, desolado
João se recolhia.;
Sua dor fortalecia
Seu peito fatigado.
Mas ele não sabia
Que Luíza o admirava,
Que, por vezes, o olhava...
Mas nada lhe dizia.
-III-
Ele, que era esforçado
Que muito estudava,
Enfim foi compensado
No ano que se passava:
Para a biblioteca
João foi trabalhar.;
Adquiriu, sem espera,
Asas com que voar.
Descobriu a poesia,
Letras universais,
O saber de jamais,
O milagre da vida.
Adquiriu cultura,
Sobretudo coragem.;
E veio a formatura,
E veio o grande baile.
-IV-
A festa começou...
O tempo quis parar
Quando João convidou
Luíza pra dançar.
A dança da esperança
De alguém que canta às flores.;
A dança dos encantos
E do primeiro amor...
“How deep is your love”*
Mãos, destinos tocados.
Olhos que encantam olhos,
Flor e espinho a dançar.
“Eu sei que vou te amar”**
Também dançava a lua
E o sol, apaixonado,
Pintava a noite nua.
-V-
João:
Esperei uma vida inteira
Sonhando com um momento assim.
E a quantas mais não esperaria
Se esse evento não houvesse acontecido!
Luíza:
Por quê?!
João:
Porque muito tenho que falar,
Mas agora... olhando você...
Tão bonita, tão graciosa...
Tremores e calafrios
Confundem meus sentidos...
Não mais me é permitido adornar,
Tampouco libertar de meu peito
Quaisquer palavras.
Talvez por mim falasse melhor
Essa música que nos guia...
Mas ela é tão triste
E exprime uma saudade
Que talvez eu não suportasse
Carregar no coração...
Luíza:
Ai, quem poderia imaginar?!
Você... sempre tão recatado,
De feições e gestos melancólicos...
Discreto, quase despercebido entre os demais...
Você... guardando consigo
Esse sentimento lindo
Esse sentimento tão nobre...
E em relação a mim,
E por tanto tempo!...
João:
Sim, Luíza
Por muito, muito tempo...
E só Deus sabe o quanto sofri
Cada vez que reprimi meus ímpetos
De tudo lhe falar, abertamente.;
Cada vez que chorei em solidão
Reclamando seu nome às estrelas.;
Cada vez que percebi sua presença
Nos versos apaixonados dos poetas
Que eu lia na biblioteca.
Luíza:
João!
João:
A razão maior do meu martírio
Jamais foi a vida miserável
Que a mim me foi dada,
Mas sim a grande infelicidade
De nunca ter encontrado
O momento e as palavras certas
Com as quais eu pudesse dizer
Que um maravilhoso amor
Sem o saber
Dilacerava-me a alma.
Luíza:
Oh, João... Joãozinho...
João:
Morrer e viver não é nada
Quando se está apaixonado.
E se não existe paixão
Nada é viver
Nada é morrer.
Faço deste milagre do amor
O meu momento...
O nosso momento.
Mas já não preciso dizer
O quanto amo você...
-VI-
O instante, o silêncio
Os corações, a noite
A quase luz, silêncio
A melodia, noite
Os lábios de Luíza
Buscavam de João
A boca umedecida
Pelo ardor da paixão.
O beijo demorara
O tempo da canção
Depois foram palavras
A suplicar perdão:
“Perdoa-me, João!”
“Luíza! Luí... Deus!...”
“Perdoa-me, João...”
“Ai, Luíza... ai, Luíza...”
-VII-
Luíza fora embora
Dos braços de João
Dos olhos de João
Da vida de João.
Partira pra outras bandas
Com seus familiares.
Disseram que pra Espanha,
Sem planos de voltarem.
João, desiludido
Vagava na lembrança
Do amor ora perdido,
Perdidas esperanças.
Então principiou
João a cantar sua lira,
Em poemas de amor
E de ilusões tão tristes!
-VIII-
João
Amigo da tristeza
João
Baluarte da solidão
João
Poeta da saudade
João
Cantor de ilusões:
“Por que da Tristeza em teu peito, Solidão?”
“Porque dela não me esqueço... não a esquecerei.
Sei da ingratidão e padeço e imploro a ti, ó Rei
De toda a beleza, meu fim e meu perdão.”
“Por que da Solidão no teu peito, Tristeza?”
“Porque ela se foi. Que ingrata! Não sei a razão.
Perdeu-se na noite em prata. Ah, quanta ilusão!
Peço-te perdão, Rei meu, por tanta fraqueza.”
-IX-
O tempo envelhecia...
Palavras revelavam
A alma de João:
“Em algum lugar das lembranças
Que porventura possa ter
Uma alma em presença de morte...
Caro sorriso de menina...
Criança... ai, criança triste!...
Por que choras?... oh, por que choras?
Quero contigo conversar...
Compartilhar teu sofrimento...
Abrandar tua penitência...
Saudade... saudade... saudade...
Soledade... ai, soledade!...
Um beijo... uma melodia...
Uma promessa entrecortada...
Uma alma em presença de morte.”
O tempo envelhecia...
O tempo que guiava
A vida de João.
Luíza era sem tempo
O tempo era Luíza
Luíza de João.
-X-
O tempo envelhecia...
João era doutor
Escultor, arquiteto
Poeta, escritor.
Grande conferencista,
Principiou a errar
Pelo mundo afora
No Velho Continente.
Os sonhos de Petrarca
As praças de Aristóteles
O berço de Camões
Os invernos de Goethe.
Luzes de Baudelaire
Crepúsculos de Poe
Espanha de Cervantes
Ai, Espanha de Lorca.
-XI-
Espanha de Luíza...
Em algum lugar, lá fora
Em algum lugar, nas estrelas
Em algum lugar, em Andaluzia...
Luíza estava em todos os lugares
E em lugar nenhum
Luíza estava em todas as poéticas
E em página alguma
Luíza estava em todos os rostos
E em rosto algum.
Uma dúvida atormentava
Os sentidos de João:
Depois de tantos anos
Como seria possível reconhecê-la
Se em sua lembrança restara
Apenas um rosto de criança
Que o tempo esvaecera?
-XII-
Foi em um fim de tarde,
À luz crepuscular espanhola,
Ao tomar seu cafezinho brasileiro
Na mesinha de dois lugares
De um pequeno bar
Que se estendia pela calçada
De uma rua em Andaluzia...
Foi nessa atmosfera,
Depois de muito refletir,
Que João encontrara
Uma drástica solução
Para a angústia crescente
Que há muito o atormentava:
“A resolução de Werther*...
Oh, Werther! Werther!
Sim... Werther!
Farei minha a sua resolução.
Porei termo ao meu martírio.
Porei termo à minha vida.
‘Morrer e viver não é nada
Quando se está apaixonado.’
Que seja a morte
Minha libertação!”
-XIII-
Após sorver o último gole
Da pátria que não mais veria,
João reclinou o dorso, já cansado,
Um pouco para trás,
Soergueu a fronte ao céu,
Abriu os braços com mãos espalmadas,
Fechou os olhos entristecidos
E, deixando escapar as lágrimas,
Pôs-se a recitar Garcia Lorca,
Em alto timbre de orador,
Como se todas as batidas
Do seu velho coração
Encontrassem naquele “madrigal”
Sua mais perfeita tradução:
“Yo te miré a los ojos
cuando era niño y bueno.
Tus manos me rozaron
y me diste un beso.”*
Eis que uma encantadora senhora
Sentara-se próximo à mesa de João
(Ainda quando ele preparava seu ritual)
Para também saborear aquele café
De características tão peculiares.
Como não entendesse a razão
Daquela cena insólita,
Contentou-se em observá-la.
“Y se abrió mi corazón
como una flor bajo el cielo...”**
Como aqueles versos
Eram do seu conhecimento,
A mulher também fechou os olhos
E em sussurros quase inaudíveis
Acompanhou, até o final,
O recitar de João...
“Yo me alejé de tu lado
queriéndote sin saberlo.
No sé cómo son tus ojos,
tus manos ni tus cabellos.
Solo me queda en la frente
la mariposa del beso.”***
... deixando soltar-se a voz
no último verso:
“... y las noches tienen las mismas estrellas.”****
Um frêmito repentino
Devastou o peito de João
A alma de João.
-XIV-
“É o meu poema preferido.
Fiquei emocionada e...
Ai... perdoe a ousadia
De tê-lo acompanhado...”
João virara-se
De frente para ela:
Silente.
Atordoado.
Petrificado.
“É que...
É que algumas velhas lembranças
Que há muito se foram...
Sempre retornam
Quando me deparo com esses versos...
Como as vagas noturnas, sabe?”
João:
Silente.
Atordoado.
Petrificado.
Como uma mula.
“Mas... ai de mim!
Essas coisas de criança...
Não voltam mais... infelizmente!
Não acha, Joãozinho?”
-XV-
Somente agora João percebera
Que aquela encantadora mulher
Expressava-se em bom português
E que de fato o conhecia.
Ocorre que naquele primeiro instante
Em que a voz da mulher se fez presente,
João quis, e como quis
Que fosse ela, Luíza
Surgindo do nada
Como um sonho improvável.
Já num segundo momento
João virara-se,
Ainda de olhos fechados.
Abriu-os, então...
E teve a certeza.
Fechou-os.
Abriu-os...
Novamente a certeza.
Fechou-os.
Abriu-os...
Mais uma certeza. Absoluta.
João teve a tríplice certeza
De que era ela, seu único amor.;
Ela, a razão de ser de sua saudade.;
Ela, a quem aquele pobre menino infeliz
Dedicara toda sua vida... Luíza.
-XVI-
Pois bem, caríssimos leitores.
Por certo quereis saber
O final desta história.
Quereis saber
Das apaixonantes palavras de João.;
Das lágrimas em fuga dos olhos de Luíza.
Quereis saber
Como ela o encontrou
Ou que tipo de vida tivera
Naquelas terras distantes de Espanha.
Quereis saber
Que tipo de mistério
Levou-os a reconhecerem-se
Depois de já passadas
Quatro décadas de resignação.
Quereis, enfim, por à prova
A veracidade desse amor.
Anuncio-vos, porém,
Que a história desse amor,
Que ousou desafiar o tempo,
Termina aqui...
Para nós, somente.
-XVII-
Não tenho o direito de prossegui-la.
E nem João
E nem Luíza
Nenhum dos dois
Pode autorizar-me a fazê-lo.
Pois trata-se de duas crianças
Que, alheias ao mundo,
Um dia se apaixonaram,
Dormiram uma longa noite,
Sonharam sonhos bons,
Sonharam sonhos ruins,
Para, finalmente, encontrarem-se
À hora crepuscular
De suas curtas vidas.
Rugas enfeitando os sorrisos.
Duas crianças.
Melenas grisalhas.
Apenas crianças.
Serenidade na voz:
“Quero contigo namorar.”
“Ai... preciso pensar...”
“Pois pense.”
“Já pensei.”
“Então...”
“Aceito.”
Deixemo-los em paz.
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