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cronicas-->Um gatuno de Botas -- 16/06/2008 - 21:04 (Licio de Faria Pereira Neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Década de 60, mais precisamente 1966, o ano que Yves Saint Laurent lançou os famosos taileurs femininos com cortes retos que eram usados tradicionalmente pelos homens.
Mas nem sabíamos disso, na casa do Gutierrez, estávamos preocupados com coisas mais prosaicas. Sequer sabíamos quem era Carlos Marighela ou o que ele fazia no grupo terrorista ALN. E quem se importaria se uma jovem missionária americana chamada Dorothy Stang tinha acabado de chegar ao maranhão para defender os garimpeiros da truculência dos coronéis da época.
Qual nada. Queríamos, os marmanjos, ver na TV Telefunken, no mais lindo preto e branco que o dinheiro do pai poderia comprar as corridas de carro com Graham Hill vencendo as 500 milhas de Indianápolis, ou um jovem e corajoso piloto chamado Bruce MacLaren vencer às 24 horas de Le Mans na França. Ou ainda assistir as peripécias de um jovem cientista, Massao Ata na pele do mais querido herói japonês de todos os tempos - o National Kid patrocinado por uma famosa fabricante de pilhas.
Importava para os irmãos mais velhos que um clube ordinário como o Flamengo tinha acabado de vencer o glorioso alvinegro Atlético por 3x1. Que raiva para os "A´s" - Artur, Alberto, Arnaldo e Arquimedes. Mas o resto do alfabeto nem estava preocupado com tudo isso.
Na verdade éramos apáticos - eu estava só preocupado em ler e olhar as figuras das revistas que a Maura e a Marina escondiam nos armários - as famosas O Cruzeiro - que maravilha ver aquelas fotos de modelos de maió mostrando pernas roliças e seios mais ainda. Quantos sonhos elas nos remeteram - os "L", "J", "M" e "G" (Licio, João, Magno e Ge.). Imagine se o Alberto estaria preocupado se exatamente nesse ano, o Romário jogador carioca, tinha acabado de nascer e que iria desbancar não só o Atlético, mas também o Cruzeiro e tantos outros times. E olhe que eu detestava futebol - por sinal continuo detestando...
Mas naquele ano, enquanto o pai se preocupava com a posse de Israel Pinheiro como governador das Minas Gerais, eu me preocupava em desbravar o "imenso" matagal que nascia na encosta montanhosa onde hoje existe o Departamento de Metereologia, ali mesmo na esquina das Avenidas Raja Gabaglia e Contorno.
Enquanto a Jusça gritava histericamente pelos Beatles, George Harrison se casava com uma tiete na Inglaterra. E nem por isso a mãe deixava de rezar pelo Papa Paulo VI que acabava de abrir o Concilio Vaticano em Roma.
Enquanto os sábados à tarde eram disputados aos tapas pelos "queridos" irmãos na frente da TV - de um lado a poderosa armada dos "M"s (Maura, Marina, Marlene, Marilia e Maria Juscelina) e do outro lado a esquadra de "A"s mencionada lá atrás - todos disputando qual canal seria ligado na Telefunken - se a Rede Tupi transmitindo o programa do Roberto Carlos e Erasmo Carlos, ou se a Rede Record transmitindo os jogos do Maracanã e Mineirão. Claro que o poder de fogo feminino era sempre (ou quase sempre) avassalador e inibia a esquadra masculina que tinha como única solução, ouvir os jogos na vitrola do mesa nino. E assim, seguia os Faria, através dos dias e meses daquele ano do duplo "6".

Mas algo de sujo ocorria ante as vistas nem tão boas da jovem Marilia, que naquela época, com a tenra idade de uma trabalhadora, professora e estudante, torcia para comprar um carrinho - um fusca, que nem tanto sucesso faz atualmente, não fosse o topete do velho Itamar Franco. Mas ela também era cuidadosa com suas roupas, as meias de nylon que o Arnaldo adorava cortar e fazer de touca para assentar aquele cabelo esquisito que teimava em mirar o céu, todo espetado como um porco espinho - e dai seu triste apelido. E também as botas de cano alto...
Ahhh! Aquelas botas, o sonho de qualquer desbravador, o instrumento primordial de qualquer herói juvenil que se atrevesse a avançar com sua tropa imaginaria pela floresta inóspita da Raja Gabaglia.
Eu tinha o cabelo partido de lado, que a Jusça adorava se mirar, pois lembrava seu príncipe encantado - Ronnie Von - que eu odiava com todas as minhas forças, se é que tinha alguma naquela época dos oito anos. Era eu, um menino gigante pelos olhos da imaginação, que me imaginava na pele do herói bandeirante Borga Gato, e me via vestido naquelas botas, como na foto onde o corajoso bandeirante paulista atravessa todo o Vale do Rio das Velhas atrás do tesouro que despontava do solo virgem das paragens de Sabará.
Aquelas botas eram o meu sonho de coragem e liberdade.
Mas como fazer para possuir, por algumas horas que fossem, aquele bem todo precioso. E o passar dos meses foi dividido entre estudar a historia do Brasil e urdir um plano para me apossar das botas que me alçariam os píncaros da suprema coragem.
Planejei dias seguidos, avaliando o inimigo que detinha a posse do meu mais relicário tesouro - as Botas de Borba Gato.
A Marilia dividia aquele par de botas com a Maura, e escondiam o precioso calçado envolto num pano e dentro de uma caixa de sapatos da Elmo Sapataria - e na càmara secreta que meninos como eu, jamais teriam acesso - o guarda-roupa do quarto da frente, trancado e guarnecido de vigilantes eternos, os Cérberos que me impediriam de apossar o que Jasão teve de arrancar das mãos da Medusa - o velocino de ouro, que eu havia lido num daqueles livros de grandes escritores que ficava na estante do mesa nino - a mesma que passeou pela casa do Artur e depois ardeu em crepitante fornalha, podre e cheia de cupins.
Despistar o Cérbero seria fácil, me apossar das botas, um segundo passo, mas como leva-los para a rua, sem que a mãe se apercebesse do maligno plano. Esse sim, era o grande nó górdio.
A solução viria numa tarde de domingo, quando eu vejo o Ge subindo no pé da Pereira (eu sempre achei que meu nome era devido a aqueles frutos horríveis que vez por outra tínhamos na mesa de jantar).
Com passos rápidos ele escala a arvore, se engancha no telhado de ferramentas e pula para o gigantesco estádio Irmary, a garagem de carros que servia como campo de futebol para todos os adolescentes que odiavam os beatles e amavam o Pelé.
Se ele podia fazer aquela proeza, eu que escalava com agilidade de gato os galhos tenebrosos da velha mangueira faria melhor e de quebra, com uma das mãos ocupadas pelo precioso bem a ser surrupiado da querida e malévola bruxa-irmã que a todos dominava.

Num sábado de junho, na mesma hora que Roberto Carlos anunciava "o meu amigo Erasmo" apontando o dedo em riste para o canto do palco na TV Tupi, eu me esgueirei pela escada da sala, pé ante pé, passei pela tribo dos "A"s grudados na vitrola do mezanino. Eles nem me perceberiam. Avancei no castelo do Cérbero, mas de pronto eu recuo, pois a Marina esta saindo do quarto - apavorada porque o Roberto Carlos já estava anunciando o segundo numero musical da Jovem Guarda. Desvio a rota, entro no quarto do meio e me dirijo para a janela jardineira que dá para o estádio-garagem do prédio Irmary.
Ela sequer percebeu minhas intenções. Por longos segundos eu me distraio antes de assumir a rota do perigo novamente. Entro no quarto dos tesouros da minha infància e viro à esquerda - que sorte - o armário aberto e nenhum cão Cérbero vigiando os portais do cofre secreto que povoava a minha imaginação.
Com o meu tamanho exíguo, tenho de colocar todo o meu corpo dentro do armário e tatear com as mãos no escuro para localizar a caixa das botas de Borba Gato. Pego a primeira caixa, retorno com as mãos ansiosas para verificar o tesouro...
Caixa errada, apenas algumas sandálias sem graça. Estico mais ainda o corpo, mergulhando no escaninho. Aquela agilidade toda seria aproveitada anos mais tarde, nos treinos de Ginástica Olímpica que a Marilia sugeriu ao pai para que eu pudesse gastar as energias.
Finalmente tateio a arca do tesouro. As mãos trêmulas abrem a caixa e meus olhos se enchem daquela coragem típica dos desbravadores. Retiro as maravilhosas botas de couro liso, polido, negro como a noite e as escondo numa toalha que estava jogada displicentemente no chão.
Atiro-me solerte e sorrateiro pelas portas do palácio saqueado, desço as escadas em polvorosa correria, avanço pela sala de jantar. Obstáculo a frente - a Maura se encaminha para a cozinha, eu desvio o passo apertado para a porta do corredor lateral. Preciso ainda chegar as escadas e alguém pode me entregar - por exemplo, o Magno que vez por outra se interpõe na minha imaginação de farras e folguedos. E aquela frase de ladino resvala nos meus ouvidos: "- Vou contar pra mãe.."
Mas ele deve estar absorto nos bolinhos de espinafre saborosamente preparados pela Marcelina.
Fico livre de mais esse perigo, pulo os degraus da escada de cimento do quintal, evito passar pela lavanderia e escolho o corretor estreito encostado no muro. Passava por aquele caminho varias vezes e conseguia me esquivar com maestria das madeiras que serviam como combustível para o fogão de lenha. Apresso em chegar ate a pereira, agarro um estrado de cama velha e escalo com agilidade de gato o telhado e o muro da liberdade, da aventura. De um pulo estou pronto para desvendar os segredos da selva de bambus. Olho para traz e ainda posso ver o olhar curioso do Bede da janela do quarto dos fundos - O que estaria pensando? Ele pensava? Até hoje eu tenho duvidas...
A tarde passa ligeira - horas se transformam em minutos, minutos se travestem em segundos e eu, senhor dos bambuzais, desbravador de florestas, calçado nas botas que me davam super poderes me divertia como nunca.
E na volta, tragédia maior não podia acontecer. Piso numa poça de barro e o couro liso, preto e brilhante fica opaco, a lama esconde a beleza heróica do negro. Preciso pensar rápido - a Marilia e a Maura não mediriam esforços para um escalpo, seguido de chicotadas e a temível "cocada papal".
Ahh, se vocês não se lembram como doía aquela mão fechada descendo no couro cabeludo dos filhos desobedientes. Doía para caramba e naquele momento, tudo me levava a crer que este era o meu destino.
Pulo o muro e em frente ao tanque de lavar roupa. Minha ultima cartada - a lavagem do lamaçal onde me metera. Pena que naquela época ainda não tínhamos a Eureka. Com jeitinho, o couro ganha cor. Uma cor opaca mas preta e o barro escorre pelo ralo levando junto toda a minha aventura. Enrolo as botas em uma toalha e faço o caminho de retorno - a escada do quintal, a cozinha, os três lances da escada do mezanino e ...
A porta do quarto das "meninas" estava fechada, todas deitadas, ouvindo a vitrola azul da Jusça. Agora sim, eu sabia que estava irremediavelmente "ferrado".
Fui...

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