Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62219 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10363)

Erótico (13569)

Frases (50615)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140800)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Memórias Febris de Um Sem Terra -- 20/06/2001 - 22:00 (Marta Rolim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A vaca desceu a rampa e tombou pesadamente. Um furo entre os cornos. Os úberes cheios, redondos, pingando leite na terra vermelha. Era a febre, obrigando-me a cavar covas, ordenando sacrifício sobre sacrifício. Dois dias depois a grande feira aconteceria, a exposição agropecuária mais importante do país. Fiquei olhando a patrola cobrir as vacas, aquele mundo de pernas estaqueadas sob o solo, carcarças ainda roliças e mornas. A terra soterrando a minha esperança. Ainda ouvi um mugido baixo na massa úmida. Depois deixei o rifle sanitário e vim para Porto Alegre.

Acampei no parque, numa planície, onde ergueram um relógio gigante. Cinco séculos depois, ergueram um relógio comemorativo. Depois do desembarque das naus. Depois da primeira missa, quando os índios viram os cilindros de madeira cruzados, os estranhos cilindros do homem branco, um muito alto na vertical e um mais curto na horizontal, cruz que nunca mais esqueceriam. Atearam fogo no gigante da praça. O relógio ardendo na praça, no meio parque. O relógio em chamas no meio da roda de gente, queimando o tempo e a dor. O relógio e as vacas incendiando, se não na via pública, na minha lembrança. Fiquei um pouco ali, olhando o fogo... o fogo dos rifles disparando, os tiros ecoando... mais uma vaca tonta na cova.

Caminhei até a Avenida Central. Os edifícios se enfileirando, tão irreais quanto a febre! Milhares de portinhas e janelinhas seriadas.

Deparei com uma manifestação. Protesto ou festa na capital? Um mar de bandeiras rubras vibrando. Festa para o governador. Uma folha de jornal rolando ao vento. Uma manchete: O homem de coração elétrico faz sinal de positivo! A fotografia de um homem no leito. A vitória de todos nós. Ganhamos uma nova chance. O homem elétrico e eu. Será?

É Domingo, praia de Ipanema. O Guaíba tranqüilo, enquanto a moçada agita um som. Uma moça perfeita cavalga na areia. Aqui não tem pasto, mas tem prenda. Pego um ônibus, é dia de passe livre e livre eu sou, sem raízes. Minha labuta me deixa tonto. Não sei mais, sou do campo, cada calo meu conta uma história, mas a terra é tão distante quanto essa minha trajetória. Perdi a enxada, perdi o torrão fértil, perdi as vacas. Só não perdi essa esperança, que me ronda como Quero-quero. De tanto andar me deparo com uma feira. Livros de toda sorte. Reparo bem. Atrás dos estandes moças da vida, talvez alegremente tagarelas, talvez girando na existência, como eu: corpo desnudo à venda. Reparo bem nos engraxates, oferecendo pedestais; nos pipoqueiros; nos bancos ocultos, onde sujeitos descansam da (in)diferença. Não vieram comprar livros. São personagens, ainda que muito reais. E daí vejo crianças e pais; gente passeando ao redor das letras; música; uma porta aberta e esta máquina aqui: metal, borracha e vidro se fundem para compor o meu texto. Cada botão de plástico, plantado em carreiras, como grãos, como sementes debaixo dos meus dedos. Rudes, toscos, úteis dedos. Que saudade das sementes, que saudade da terra! Aqui enterro um pouco do meu passado. Quem sabe algo brota dessa tela fria, quem sabe as vacas emergem das valas, boas, cheias de leite; quem sabe os relógios param de ser hipócritas e voltam a marcar a hora do plantio e da colheita... pausa manchada de barro. Ponto. Semeio a última tecla e a esperança. Enter!
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui