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Cronicas-->Juliana renasceu -- 15/02/2001 - 15:04 (MICS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dia 23 de dezembro! Em dois dias, Talita estaria com 3 anos.
Dia 22, às 23:00 horas, havíamos embarcado no trem para o Rio de janeiro ocupando duas cabines-leito com banheiro.
Fiquei até de madrugada olhando as estrelas, a lua e a pouca paisagem que conseguíamos ver no escuro pelas janelas embaçadas, gastas pela idade avançada dos vagões. Diziam que já tinham mais de uma centena de anos.
Marco André, então com 1 ano e dois meses vibrava com os ruídos característicos: tchú-tchu-tchu-tchu, tchú-tchu-tchu-tchu... Só faltava o piuí, que ele fazia com todo o vigor dos seus pulmões, que deveriam ser pequenos, mas a julgar pela altura e timbre da voz, eram suficientemente grandes para emitirem um som que superava todos os demais. Talita questionava: - Por que o trem não faz piuí? Por que o banheiro é tão pequeno? Por que ele anda pra frente? Por que ele anda pra trás? Por que não sai andando de lado? Por que a lua é redonda?
Eu me perguntava: Por que criança faz tanta pergunta difícil?

Foi uma das últimas viagens daquele trem das onze. Logo mais seria desativado para dar lugar ao famoso trem da prata no qual nunca tive o prazer de andar. Triste isso. Tenho inúmeras estórias ocorridas naqueles vagões.

Dia 23 amanheceu ensolarado. Cedinho nos preparamos e fomos ao hospital ver minha avó Oralda que fóra internada após o segundo derrame que a deixara hemiplégica e afásica. As crianças ansiosas pra conhecer a Bisa, famosa pelas estórias de família contadas a beira da cama na hora de dormir, tiveram uma grande decepção. A avó não falava, não andava, não fazia brincadeiras e os pequenos, embora sentissem, não entendiam os olhares carinhosos e felizes com que ela os observava. Ela costumava dizer que só morreria depois de conhecer meus filhos. Conheceu pelo menos dois e era visível seu amor por eles. Foi a última vez que a vi. Ficamos por alí tempo suficiente para matar a saudade e fomos embora. Nosso tempo era curto. Devíamos estar de volta a São Paulo no dia 24 de manhã para preparar a ceia de natal.

De volta ao apartamento da tia Celia, uma surpresa: Talita ganhou uma boneca de louça, maravilhosa. Imediatamente a batizou de Juliana e um segundo depois veio chorando me pedir pra consertar o primeiro dedo quebrado. 5 minutos e uma super-bonder depois estava quase como nova.

Resolvemos nadar pois era cedo ainda. Nadar é força de expressão pois a piscina é um retangulinho azulejado de 4x2. Ao subir (a piscina fica na cobertura do prédio de 17 andares) brinquei com a minha tia enquanto enchia as boinhas de braço: Será que bóia salva de queda-livre?
Nem imaginava naquele instante tudo que estava por acontecer.

Já na piscina tive que instigar Talita a entrar na água, estava com medo, típico de quem tem 3 anos. Aos poucos foi se acostumando e logo estava pedindo pra pular. Marco logo teve que ser levado para trocar de roupa. Talita pediu pra sair e se esquentar ao sol ainda com as boiinhas nos braços. Minha mãe me chamou para ver o filhote de crocodilo no laguinho da varanda de baixo. Me afastei dois metros, me virei por um minuto.
1, 2, 3, Talita se desfez.

Meu primo me chamou: Mirinha, a Talita está na piscina sem bóias.
Olhei, gelei. Corri. Pulei.
Aquele retàngulinho me parecia um oceano.
Peguei-a, estava dura e gelada.
Chamei minha mãe.
Gritei. Urrei. Briguei com alguém, quem sabe Deus: Minha filha não! Minha filha você não leva!
Vieram meus tios. Na semana anterior ele havia salvado uma perdiz de morrer afogada. Havia lido tudo sobre salvamentos e asfixia.
Imediatamente fez respiração boca-a-boca mas Talita arroxeava. Enfiei meu dedo na sua garganta e abaixei a língua.
O primeiro golpe de ar. Talita respirava.
Corremos para o carro, massageando, bombando e insuflando ar em seus pequenos pulmões. Eu gemia: Quanto tempo se passou?

Entrei gritando no hospital: Minha filha estava se afogando! Nunca vi um hospital atender tão prontamente. Me indicaram uma sala onde a coloquei na maca. Vieram com tubos, aparelhos. Olhei mais uma vez seu rostinho pintadinho de roxo e avisei: Ela vomitou na água.
Saí dalí onde eu só atrapalharia. Não via ninguém, não ouvia nada que não fossem os ruídos que vinham daquela sala. De repente um choro.
Um suspiro de alívio. Talita renascia.

Algum tempo depois, me levaram para a CTI onde Talita dormia, cansada, tendo por companhia a boneca Juliana. A médica a acordou e perguntou: Você sabe por que está aqui? E ela: Sei. Eu tirei as boiinhas e pulei na piscina pra ver o tubarão lá no fundo e a mamãe me pegou. Nenhuma sequela, nenhuma conseqûência mais séria que meu pavor infinito.

Hoje vou buscar Juliana, a boneca restaurada, sem as marcas dos muitos tombos, e dos inúmeros pedaços colados. Nenhuma sequela, apenas uma lembrança infinita.
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