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Contos-->Pedras de "Cevá". -- 24/06/2001 - 18:28 (Silvano Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pedras de “Cevá”

Sentado em uma lata de bolachas por sobre uma cadeira, para que pudesse alcançar a altura da mesa, degustava tranqüilamente uma sopa rala de galinha. Eu adorava aquele tipo de comida, e principalmente de ficar “roendo” uma asinha de frango, acompanhada com miolo de pão.
Minha mãe e a vizinha, divididas pelo arame farpado da cerca dos fundos, conversavam a respeito das situações do dia-a-dia.
Dona Adelaide, mãe do meu amigo Inácio, queixava-se da tristeza e amargura em que vivia, depois que apartou-se do marido.
__Não perdeu grande coisa. O traste só queria sombra e água fresca __ indignou-se minha mãe.
O homem tinha até uma profissão de destaque para aquela época, pois dominava como ninguém, uma forquilha de pessegueiro na busca de vertentes. Fazendo os seus “bicos” como poceiro, poderia facilmente sustentar mulher e filho, não fosse a preguiça tê-lo dominado. Sempre que o veio d’água minguava sob a terra escavada e era preciso cavoucar um pouco mais fundo para encontrá-lo, batia o desânimo e o vagabundo abandonava o trabalho. Durante o tempo que conviveu com a mulher e o filho, trouxe pouco dinheiro para dentro de casa. Por isso, o resto do orçamento doméstico era completado com a venda de broas caseiras que a esposa fazia e o menino vendia na vizinhança.
Além de pouco ajudar, o larápio seguidamente metia a mão no esconderijo das economias e surrupiava alguns trocados, no intuito de embriagar-se em botecos da região. Quando chegava ébrio, quebrava as utilidades domésticas que encontrava pela frente e espantava a família de casa; isto quando não batia neles.
Meu amigo, por várias vezes, fez curativo no gabinete da escola, dizendo que havia se machucado em brincadeiras de rua. Aquilo era pura mentira, pois todos sabiam que ele apanhava do pai.
__ Apartar-se foi a melhor solução, Adelaide. Agora você e o Inácio podem viver com um pouco mais de tranqüilidade__ consolava minha mãe.
A mulher até cedia e conseguia se acalentar com os conselhos que escutava, mas o que fazer para que realmente ela esquecesse aquele homem imprestável ? Ninguém entendia, mas a dona Adelaide deixava transparecer, que apesar de tudo, ainda gostava muito do marido.
__ Ruim com ele, pior sem ele...__ esmilingüia-se em prantos.
Nem as missas dominicais e tampouco os sermões e salmos da bíblia lidos pelo padre, eram capazes de reverter aquele quadro de agonia, vivido pela mulher. O desconsolo foi tanto, que aos poucos ela afastou-se da igreja.
Umas cartomantes e sortistas vindas com um acampamento cigano que instalou-se provisoriamente na região, acabaram por iludir de vez a boa senhora. Ela de tanto freqüentar aquele lugar e seguir os ensinamentos daquela gente, começou a mexer com saravá. Inconsciente de estar sendo lograda, gastava boa parte da minguada economia, encomendando “trabalhos” que pudessem de alguma forma, trazer o seu marido de volta para casa.
Pela conversa que a minha avó contava , era difícil aquilo acontecer, pois parece que até uma outra esposa, o sem-vergonha já tinha arranjado. “Esposa” somente no modo de falar, pois segundo os fundamentos lá de casa, mulher legítima e que se prezasse, era aquela de “papel passado”, a qual pendurava na parede da sala, emolduradas em quadros, as certidões de casamento no civil e no religioso; símbolos incontestáveis de fidelidade conjugal. As outras, tidas como “ mulheres de vida fácil ”, serviam somente como amantes.
Minha avó orgulhava-se do luto que houvera utilizado durante um ano, logo após a morte do marido. Às vezes ela tinha uma recaída e até para passear, utilizava-se da cor preta, porém iniciar uma nova vida conjugal com outro companheiro... jamais.
Lembro-me de uma feita, após a passagem de meu avô, em que um vendedor de cavalos, de nome João Linhares, apeou na porteira do sítio e com a desculpa de pedir “pouso” para um descanso, foi posto para correr pela viúva. A velha dominava como ninguém, uma espingarda de dois canos e nem foi preciso puxar o gatilho, para espantar o tropeiro galanteador... bastou somente mirar o trabuco em sua direção. Nunca mais soube que ele tivesse “negociado animais” por aquela região. Viuvez era algo sagrado para minha avó.
Se bem que o caso de dona Adelaide, comparado ao da minha avó, não era uma perda definitiva de marido, afinal de contas, ela estava simplesmente apartada e segundo a sua nova crença, através das “mandingas,” era possível trazê-lo de volta.
Todos os tipos de saravá que a dona Adelaide fazia, eram curiosos. Eu observa, sempre que brincava com o amigo Inácio, em sua casa. Às vezes, era fotografia do marido dentro de pote de mel, bandejinha de morango com uma cueca dentro, sapato masculino amarrado com nó cego ao pé da cama ... enfim, eram vários; mas nada me chamava tanto a atenção, do que um pequeno recipiente que ela guardava junto à porta do alçapão, que dava acesso ao sótão da casa. Era um pote plástico e sem tampa, desses que vem embalado margarina. Na verdade não era aquilo que me inspirava curiosidade, e sim o seu conteúdo.
Nivelado mais ou menos até o meio com uma espécie de limalha de ferro, sobras de lâmina de barbear quebradas e alguns boletões de aço retirados de rolamentos, se acomodavam três pedras pequenas, do tamanho mais ou menos, de um grão de feijão. Tamanho este, quando vi pela primeira vez, pois ultimamente elas já estavam maiores que grãos de uva. Nós acompanhávamos o crescimento daquilo, todas as vezes que subíamos no forro da casa para brincar.
Cheguei até à pegá-las em minhas próprias mãos, um dia quando retiramos dois daqueles boletões de aço enferrujado, para jogar bolinha de gude. O Inácio estranhamente, nunca gostou daquelas pedras. Queria até atirá-las com estilingue, mas contrariado por mim, desistiu na última hora.
As “preciosidades” de dona Adelaide, cresciam à olhos vistos, devido “ comerem” aquele material metálico. Parece que tinham até nome individual; nós nunca escutamos ela falar em voz alta, só sabíamos que as três juntas eram chamadas de pedras de “cevá”.
“Cevá”, para quem não sabe, é uma palavra abreviada, utilizada pelas pessoas de pouca cultura. Na verdade a pronúncia correta é “cevar”. Em relação às pedras, este termo significava que elas necessitavam receber cuidados especiais, ou como diziam os mais antigos, elas precisavam ser “cevadas”.
Aquilo “bebia” até água e não precisou ninguém me contar... eu sabia porque certa vez, balançando-me dependurado em uma viga de sustentação do telhado, vi com meus próprios olhos, a mulher despejar uma caneca com água, dentro daquele potinho. Saía até borbulha; parecia que as pedrinhas tinham até “boca”.
Meu amigo escutou falar, que os amuletos foram negociados com uma cigana. Parece que custaram uma saca de batata e dois balaios de milho verde em espiga... mercadoria cara, porém tinha a sua utilidade.
Segundo o que sabíamos, aquelas pedras após serem “ batizadas ”, tinham o poder de satisfazer o desejo de quem as possuísse. Tinha gente da região que andava com elas no bolso, por terem sido “batizadas” para atrair dinheiro, outras carregavam na aba do chapéu, para obter sabedoria. No caso de dona Adelaide, as pedras tiveram o “batismo” feito de forma que trouxesse o marido de volta para casa. Esta era a sua vontade.
Senti um semblante melancólico no amigo Inácio, quando ele soube das intenções da mãe. Atônito e com um olhar distante, parecia remoer um pouco do passado.
A lembrança das surras que levava e os vergões avermelhados que carregava na pele, fizeram despencar do seu rosto, algumas lágrimas que ele rapidamente enxugou na manga da blusa, juntamente com o ranho que escorria do seu nariz.
Nunca tive um amigo igual àquele. Sempre quieto, porém disposto a ajudar a quem dele precisasse.
Queria ser jogador de futebol e jogar no time do Brasil. Tinha um sonho de andar em cima do caminhão de bombeiros com a sirene ligada, quando fosse campeão em uma Copa do Mundo; gostaria então, de ser aclamado por todos os moradores do seu bairro, como o herói que marcara o gol do campeonato.
Ele chegava a carregar no bolso da camisa, juntamente com as figurinhas de jogador de futebol, uma capa dobrada e encardida, rasgada de um caderno escolar, em que nela vinha impresso a letra do Hino Nacional Brasileiro. Sempre que tinha um tempo, tentava ler aquele pedaço de papel amassado, na tentativa de decorar, porém em vão; ele freqüentava o primeiro ano primário na mesma classe que eu, e o aprendizado ainda era insuficiente para tal proeza.
Coitado, ele nunca queixava-se de nada. O seu corpo era franzino, mas acho que internamente era enorme, pois só assim para caber tanta bondade misturada com amargura dentro de uma só pessoa. Resistia porque era um menino ótimo e jamais trouxe um desgosto sequer para a sua mãe. Ele comia broa recheada com banha e sal e no recreio da escola, cansou de repartir comigo a merenda que levava.
O único ressentimento grande que carregava em seu coração, era em relação as maldades praticadas pelo pai.
Lembro-me daquele fatídico dia, como se fosse hoje. Tínhamos acabado de recolher algumas torinhas de lenha, no intuito de auxiliar a dona Adelaide. Ela, com a mesa posta, aguardava-nos para um lanche simples com alguns pedaços de batata-doce, assados na chapa quente do fogão à lenha.
__ Inácio, beba seu café e ponha uma roupa limpa, que seu pai vem para visitá-lo. Depois coloque um pouco de água, no potinho onde tem as pedrinhas da sorte__ ordenou contente a sua mãe.
O homem havia se aproximado novamente. Aquela já era a terceira ou quarta visita depois da separação. Em todas as anteriores, nenhuma foi com intenção de ver o filho, já que sempre que chegava, nós éramos obrigados a sair. Dona Adelaide vasculhava o bolso do avental na cata de algumas moedinhas e nos presenteava para que comprássemos algumas balas de goma, na banca de guloseimas. Durante aquelas “visitas”, o casal passava a tarde inteira, trancafiado no quarto da pequena casa.
Parece que os amuletos, segundo ela, estavam dando resultado. Eu particularmente duvidava que poderia ser as pedras de “cevá” , as responsáveis pela reaproximação daquele homem ruim. O Inácio já acreditava, e sempre que era ordenado à “alimentar ou dar de beber” aquelas coisinhas, fazia a contra gosto.
Fui embora mais cedo. Não quis aguardar pela chegada daquele infeliz. Ele era malvado mesmo quando chegava “sóbrio”; bêbado então... nem pensar. O Inácio ficou emburrado, cumprindo sua obrigação para com as pedrinhas de sua mãe.
Era noite e eu já tinha até deitado, quando escutei o estalar de batidas de palma no portão de casa. A vizinha e o marido, ambos preocupados, procuravam pelo filho. Parece que o menino, estava sumido desde a metade daquela tarde.
__Não o vi, dona Adelaide. Quando fui embora, ele cumpria os serviços determinados pela senhora.
O desespero tomou conta de todos, já que o piá nunca havia feito algo parecido. Procuramos durante a noite toda e nem notícias sequer.
O pior ainda estava por vir, pois já de manhãzinha, a notícia trazida por um capataz de um sítio vizinho, dizia que o menino estava afogado, boiando em um tanque de peixes, ali próximo.
O amigo, vestido com a roupinha de passeio, colocada para aguardar a visita de seu pai no dia anterior e todo inchado pela água que engoliu, encontrava-se já na barranca do tanque.
O corpo de bombeiros, afastava os curiosos que queriam a todo custo, presenciar aquela fatalidade.
Segundo o tenente que atendeu aquele desastre, foi encontrado, fechadas em uma de suas mãos, três pedrinhas esquisitas... As mesmas, retiradas entre meio os dedos enrijecidos, foram jogadas novamente para dentro do lago.
Esquisitas somente para o bombeiro e para aquele bando de gente que se aglomerava ao redor, porém facilmente identificadas por mim: eram as pedras de “cevá” de propriedade de sua mãe. As mesmas que realizaram o tão sonhado desejo de dona Adelaide; e quem sabe até, por ironia do destino, vieram também a realizar o sonho do menino, que era de ficar longe do pai... mesmo que de uma forma tão trágica.
Acho que a idéia de conviver novamente com uma pessoa que o espancava e não dedicava-lhe a menor atenção, fez o piá tomar aquela triste decisão de suicídio.
Sem dúvida alguma, esta foi mais uma das tristes passagens que já presenciei em minha vida.
O caminhão vermelho com a sirene ligada, abria caminho entre a multidão. Um soldado, comovido com a situação, jogou por sobre o pequeno corpo embrulhado em pano branco, uma bandeira do Brasil.
Mesmo não sendo ele um herói de final de campeonato como sonhou um dia, foi aclamado pela vizinhança inteira; que inconscientes até, vieram por satisfazer a outra vontade que o menino tinha.
As pedras de “ cevá” que a dona Adelaide “cultivou” com tanto carinho, parece que trouxeram o seu marido de volta para casa...
... mas, levaram para sempre, o meu amigo Inácio.
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