Usina de Letras
Usina de Letras
171 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62213 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50606)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140798)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A/C INSÔNIA -- 01/04/2000 - 15:37 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A/C
INSÔNIA

Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli*

Presta atenção
O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó.
Cartola


Seqüência implacável. Todos os dias, todas as noites. E não havia razões aparentes para tanto. Saudável, atlético, bem-resolvido na profissão e na vida de trocas. Não experimentara mudanças bruscas, perdas ou rompimentos recentes. Era difícil encontrar uma causa para o incômodo. Incômodo que acabava por respingar nos outros, que tratavam com um vivo meio inativado. E que tinham de ficar repetindo coisas que não entravam, retardando o ritmo para acompanhar o andar da carruagem.

Assistia aos outros indo para a cama dormir e dormindo. De nada adiantava reduzir as luzes. Permanecia aceso, fazendo companhia para as lâmpadas. Se as apagasse, ficava como um duende iluminado, levitando pela casa. A fadiga estava dentro da carne e a carne não se deixava atravessar pelo fio da meada.

Quanto tempo perdido! Os outros roncavam, a noite se locomovia rápida para abrir o dia. Só ele estava ali parado sem saber o que fazer. Sozinho, tateando a solidão absoluta, longe de entender o que parecia ser automático e natural para milhões de corpos. Tentava reger o sono, cerrando as pálpebras, mas os pensamentos do dia continuavam a ser lidos. Seguia recomendações que favorecessem o sono por todos os meios. Tanta movimentação compunha a preparação de um operário para a jornada de trabalho noturna.

Olhou pela janela. Os folíolos do flamboyant pendiam e juntavam-se uns aos outros. Vegetais dormem? Se dormissem, vegetavam. Talvez se despedissem de fotossintetizar por algumas horas.

A cada quarto de hora, os ponteiros executavam um pequeno solo. Isso apenas dividia a noite em partes, não subtraía sono de ninguém. Meia-noite, meia-noite e quinze, gotejava o tempo na pia da escuridão. Desse filme fora protagonista na noite anterior. Ah!, a lembrança da noite passada o tornava espectador cativo de um filme havia várias semanas em cartaz.

Impacientou-se. Abriu a portinhola do relógio e o fez parar na marra. Flutuou no tempo, mas sem mergulhar. Já não sabia o quão próximo estava de dormir ou de despertar.

Enquanto os outros dormiam por decreto-lei, ele precisava aguardar tramitação de projeto de lei na Câmara do Sono.

O sono perdido só ia encontrar nos lapsos e distrações do trabalho. E como era difícil reconhecê-los! Ele os reparava prontamente para que se confundissem com um engano casual. Não tolerava ser relapso, ver cochichos sobre sua vida noturna privada. Para um único colega revelou o problema; ainda assim, com intenção cautelar. Se saísse do ar por um tempo que fugisse ao seu controle, o guardador do segredo passaria por perto para pisar em seu pé. Treinara intensamente para evitar o sobressalto. Tudo isso para não permitir cochilos diante dos mais argutos. Toda e qualquer suspeita de noite maldormida era rebatida com veemência, por considerar insulto a pecha de dorminhoco para um homem que amargava o fel da insônia. Que o acusassem de tudo, menos dessa sua improdutividade noturna.

Não necessitava de psicanálise para saber que não dormia, embora, às vezes, até dormitasse sem alcançar o prazer de saber, tal a contingência desse evento excepcional.

Se dependesse de persistência, o hábito estava arraigado. Todas as noites aproximava-se da cama, puxava o cadarço da persiana, desatava o sapato, beijava o crucifixo, enleava-se com o rosário, segurava o escapulário, enfim, tratava de tecer qualquer fio de esperança na agonia de golpear o último vestígio de lucidez noturna.

Conferindo as horas a cada momento, impedi-as de passar. Levantava-se e ia passear com elas. Então, devorava o que encontrasse pela frente. Geladeira, bloco de notas, maço de cigarros, tudo restava meio desfalcado.

No esforço derradeiro de acomodação, cuidou de voltar ao quarto, como se nele fosse ingressar pela primeira vez. Caprichando no ritual de se livrar das surpresas, matou um mosquito pousado na parede, trocou os lençóis vincados de tantas posições inúteis e espremeu algumas gotas de urina. Ainda havia um vaso com flores. Retirou-o para respirar apenas os odores que chegassem quando já estivesse dormindo. Por fim, certificou-se de que a roupa do corpo só o tocasse pelo tecido e não pelas costuras.

Não sabia lidar com a diferença. Queria dormir como os outros. Sem circunlóquios. Nunca atinou com transformar a insônia em atributo de vantagem para si. Considerava-a fila de espera sem atendimento, esquecendo, por instantes, que era essa uma época mais vocacionada para o auto-atendimento.

Em poucos minutos, descobriu que tinha a solução para o impasse num abrir de gaveta. Colocou um comprimido para dormir sobre a língua. Quando deglutir parecia o próximo passo, foi paralisado pelas dúvidas. A escolha era prática e eficaz, mas não havia outras vias? Sabia que essas pílulas causavam dependência. Não! Pelo menos à noite preservaria a autonomia.

Cansado de tanta insônia ociosa, permanecia conectado aos estímulos como os computadores que controlavam o tráfego aéreo. Mas já não sentia a iminência de coisa alguma. Tudo que ali era presença instava menos por respostas em tempo real.

Apagou a lâmpada de cabeceira e a luz do dia espalhou os primeiros ruídos pelo quarto.


Ainda é cedo ...
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar.
Cartola

*O autor é médico psiquiatra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: marcopiscitelli@bol.com.br
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui