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Contos-->A sala terminal dos esquecidos -- 25/06/2001 - 02:08 (Maria José Limeira Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A SALA TERMINAL DOS ESQUECIDOS
Maria José Limeira



Era meio-dia, quando peguei o carro, no local do trabalho, para ir pra casa, na expectativa do feriado prolongado.
Havia um gosto travoso de pressa no ar das ruas.
Engarrafamento.
Impaciência no trânsito.
Irritação.
As pessoas queriam ir embora para nunca mais voltar.
Saíam às pressas, como se tivessem acabado de cometer um grande crime e precisassem se esconder.
Reconheci, com desgosto, que também me sentia assim.
Mas, fui vencendo o embaralhamento do tráfego, até sair fora e pegar a via marginal, uma estrada quase deserta, que me encaminhava ao meu lugar de repouso, onde queria ficar longe de tudo.
Na solidão, como se conquistasse um prêmio merecido.
Restos do barulho da cidade ainda ecoavam dentro de mim.
Revia a sala do escritório onde trabalhava durante a semana, com o chefete sempre nervoso e de cara feia, a secretária espevitada querendo passar por cima de todo mundo, a subsecretária humilde vagando pelo meio do recinto, sem saber o que fazer, e o contínuo pobre e perdido, atendendo ordens e contra-ordens, com as mãos cheias de papéis para entregar em variados setores. Sempre sorrindo.
O grande chefe mandão, todo poderoso, figura etérea, mas inesquecível, dono da empresa ou principal acionista – como queiram - este era um ilustre desconhecido.
Porque só entrava no prédio por um tubo subterrâneo, que ninguém nunca localizou.
Usava um elevador privativo, e trancava-se numa sala, onde só os eleitos tinham acesso.
Diziam dele que não pisava no chão, voava acima do nível do mar, para não estragar o brilho dos sapatos e nem manchar o modelo de roupa impecável que o vestia, sempre.
Mas, ali, naquela sala dos medíocres, com o chefete, as duas funcionárias e o office-boy baratinado, num canto de parede, debruçada em cima de um birô cheio de documentos, estava eu, tentando desvendar os segredos da empresa.
Eu, contabilista oficial, sem curso superior, mergulhada em divagações.
Pelas minhas mãos não passavam grandes jogadas financeiras, caixas dois da empresa, quanto de capital acumulava, impostos sonegados, empréstimos governamentais desviados e depósitos bancários sigilosos nas Ilhas Canárias.
Só sabia mesmo da arraia miúda do departamento, com seus adiantamentos em dinheiro para pequenas despesas, sem grandes mistérios.
Sobravam para mim, portanto, os rebotalhos da função de quinta categoria, esbarrando em servidores menores, cheios de razão, na sala terminal dos esquecidos.
Entulhados, obedecendo sem palavras a um chefe enfurecido o qual sabia que ocupava um cargo sem valor, abaixo da escala social que o oprimia.
O carro deslizava no asfalto e todo o escritório da empresa, com seus móveis novos e limpos, os papéis em cima da minha mesa, o chefete zangado, a secretária atrevida, a subsecretária aflita e o contínuo debochado estavam junto de mim, cobrando-me coisas que eu não entendia.
Não era nenhuma novidade o fato de estarem ali, como companhias incômodas, dentro do Fusca apertado, às vésperas do feriadão.
Eu os trazia para minha casa todo dia, mesmo que os detestasse.
Porque eram personagens da vida vazia que eu levava.
Passageiros de um barco sinistrado em alto mar, só tínhamos uns aos outros em quem nos agarrar, como prova real de que continuávamos vivos, num mundo que já não nos pertencia.
Eu, a subsecretária dolorida e o office-boy atarantado formávamos um trio coeso e calado, para enfrentar a zoada do chefe, que parecia estar sempre falando sozinho para um auditório de cadeiras vazias.
Esbravejando contra tudo e contra todos.
Tivesse razão, ou não.
A secretária oxigenada era driblada através de curtos sorrisos disfarçados sob pedaços de papéis que eu levava à altura da boca para esconder a ironia com que a olhava.
Fora desse joguinho safado, que pouco me divertia, nada mais havia a fazer, a não ser o tédio.
O tédio que me assaltava pela manhã, me empurrava para o meio-dia-sol, jogava-me contra as paredes do escritório, e me fazia debruçar sobre papéis com os quais não tinha nada a ver...
O tédio que me emparedava contra mim mesma, isolava-me do resto do mundo, e me azedava.
A monotonia do escritório, por tomar todas as minhas horas que, às vezes, ultrapassavam o tempo convencional, invadiu minha vida particular, apagando o sol que entrava pela janela da casa, secando as rosas do meu jardim, empanando o brilho da lua nas quentes noites de verão e congelando meu coração.
Meu coração, outrora quente e deslumbrado, era agora um poço vazio plantado em plena área seca, ferido pela amargura em que eu definhava.
Sem flores, sem lua, sem sol, eu mergulhei na escuridão, e o brilho dos meus olhos tornou-se coisa supérflua.
Estava assim tomada pelo susto dos pensamentos, na expectativa de chegar e encontrar minha vida íntima destroçada dentro de casa, em meio à desarrumação geral, quando vi, de repente, um corpo leve de homem jogar-se ao meio da estrada à minha frente.
Não deu tempo frear.
No último instante, entre roncos de motor, sacolejar de ossos quebrados e pancada surda que, para séculos e séculos sem fim zumbiriam eternamente dentro dos meus tímpanos, assisti ao formidável vôo daquele pássaro que, alguns metros adiante, pousou no asfalto, como atingido por um raio.
Não foi o pouso ágil de elegância e contentamento.
Foi a aterrissagem da morte que o embalou assim, de cara no chão.
O carro ainda avançou uns dez metros adiante, derrapando no asfalto quente, dançando como bailarino louco no palco do Teatro Municipal, antes de parar nos matos que margeavam o caminho, enquanto dentro dele se estabelecia o caos.
Os móveis do escritório, papéis com que trabalhava, e todos os fantasmas que me acompanhavam na viagem estavam fora dos lugares.
Foi assim que começou meu feriadão, conforme as leis trabalhistas do repouso remunerado:
Eu estava à margem da estrada deserta.
Dentro de um carro sinistrado.
Lá, mais atrás, estendido no asfalto, um cadáver.
Minhas pernas bambas.
O rosto coberto de sangue dos estilhaços miúdos de vidro que se despregaram do pára-brisa quebrado.
Uma das pernas do birô do escritório saía pra fora do carro pelo vidro dianteiro, e estava em cima da tampa do porta-malas.
Foi um momento de grande comoção: eu estava aqui, estava ali, abaixo do chão mil metros e acima do céu, pra lá de toda a compreensão, vagando no espaço sideral.
Meio cega, meio tonta e fora de toda a realidade possível e imaginária.
Então, comecei a gritar, sem nenhum pudor.
Gritava desairosamente.
Zangada e ferida.
Eram gritos semvergonhas.
Gritos de mulher safada e carente, pedindo pra gozar, sem ter com quem.
Gritos de animal enjaulado, perdido de sua contemporaneidade, jogado numa cela infecta do mundo-hoje, no picadeiro de um circo decadente, enfeitando a fantasia dos meninos pobres, num bairro da periferia.
Gritos.
Simplesmente gritos.
E mais gritos.
E quanto mais gritava, gritava mais.
Até que fui trazida desse devaneio histérico para a realidade, pela voz tonitruante do chefete furibundo e autoritário.
Estavam ali junto de mim a secretária abusada, rindo nervosamente, a subsecretária dolorosa, chorando copiosamente, além do chefe zangado.
Todos incólumes, sem arranhões, como se nenhum desastre rodoviário tivesse acontecido.
O garoto office-boy, de sorriso debochado, já não estava mais, eu não sabia explicar por que.
Mandei que saíssem do meu carro, com toda aquela troçalhada que me incomodava.
Minha culpa não era mais um estado filosófico-metafísico que podia ser manipulado nos exercícios da mente.
Acabara de matar alguém atropelado, e não devia esperar que as testemunhas de acusação chegassem.
Já na estrada, de novo, olhei pelo retrovisor, vi a turma que eu expulsara, de pé à beira do caminho, como estranha comunidade de desvalidos, fugidos da seca braba, ou favelados expulsos de suas casas.
A noite chegara, de repente, e me acobertava.
Já avistava as luzes do bairro onde morava.
Ao chegar à casa, guardei o carro na garagem, tirei toda a roupa, que ficou espalhada no chão da sala, e fui direto ao banheiro, onde tomei o mais demorado banho de toda a vida.
Ao sair, enrolada na toalha, fui para o quarto e, ao acender a luz, vi, deitado na cama de casal, o funcionário office-boy seminu, olhando pra mim, com uma mecha de esparadrapo na fronte, e o sorriso gaiato que lhe iluminava o rosto.
Havia muitas marcas de arranhões, naquele corpo bonito, que eu gostava tanto, como se tivesse sido vítima de algum desastre.
E, mais embaixo, seu sexo duro vibrava, sob o tecido elástico da cueca zorba.



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