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cronicas-->Saudades -- 02/10/2008 - 14:25 (JANE DE PAULA CARVALHO SANTOS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tenho saudade de coisas esquisitas... nem sempre relacionada a pessoas ou fatos. Tenho saudade dos sentimentos que não consigo remontar, de um cheiro determinado, uma brisa específica, um tom rosado de uma tarde comum de fim de inverno.

A saudade mais presente é a da água, nas suas mais variadas formas.

Tenho saudade de uma garoa que vi espelhada na luz de um poste, que me pareceu então o tecido com a trama mais perfeita, na plenitude efêmera da chuva, tão perene quanto aquele pedaço de minha infància, tão fugaz quanto o sopé da montanha da cidadezinha, passagem de viajante, de que não me lembro o nome.

Tenho saudade do mar, uma assim doída, meio que de um amigo distante pra quem se esqueceu de mandar um cartão, alguém que quando vir de novo encontrarei magoado. Acho o mar um bicho vivo. Não essa coisa comum que está nos livros de biologia, com órgãos, tecidos musculares, coração, algo que possa ser dissecado. Um bicho gigante e único, que tem o poder de acolher, afagar... ao mesmo tempo em que pode dar um caixote e expulsar pra areia sem o menor pudor. Um bicho de uma imensidão impossível de domesticar, fora dos padrões de vida cientificada e atestada em tomos de biblioteca, fora da cadeia alimentar, algo que os astrónomos buscam em Marte.

O mar é maracatu pesado, alfaias nervosas, tambores tensos.

Quando me encontro com o mar sorrio feito menino do interior, me entrego às suas gracinhas como se fosse um cão labrador gigante, até cansar e me embebedar de sua essência de ser único, escancarado, esparramado para até onde a vista alcançar. Maior que o mar, só o céu, acho...

E tem a cachoeira, que, diferente do mar, só se alcança depois de trilhas, subidas, suor e cansaço. Também é bicho vivo, amiga saudosa, serena nos poços formados pelas quedas enormes, forte de moldar pedras, constante como o tempo, eterna. Ali eu entro devagar, sinto a água gelada me expulsando, mil facas me rejeitando, ao tempo em que a persistência torna tudo um grande manto afável, terno, coisa de mãe que põe no colo e canta pra ninar. Dá pra brincar também, dar cambalhotas, mergulhar, receber pequenos mimos em pedrinhas coloridas. E se a cachoeira gostar da sua visita pode mandar uma borboleta, uma joaninha, uma libélula azul. Se puder esperar anoitecer, certamente chegarão vaga-lumes.

Estar sob uma queda d´água é ser martelado pela energia direta do universo, é luz percorrendo os ossos, dançando na corrente sanguínea, estacionando em cada célula, choque direto nos elétrons das moléculas... saio dali meio imantada.

A música da cachoeira é um chorinho pequeno e belo, daqueles que a gente põe pra repetir duzentas vezes sem cansar de ouvir, catando em cada nota o sentido da próxima.

Tem ainda a provocação de outros poços ocultos, a cachoeira é longa e diferente em cada ponto, tudo depende da vontade de ir buscar, desbravar, meio que um bandeirante atrás da esmeralda... ou do Eldorado. De qualquer forma, o encanto estará presente no conjunto de folhas, pedras, água.

A acolhida da cachoeira deve ser conquistada, a do mar já é garantida. Cada um em sua beleza própria, o camuflado e o aberto, ambos de intensidade mágica, transformadora. Cósmica.

E o companheiro rio... Um samba canção morninho e leve, um bumbo marcando lento, um pandeiro compassado, um cavaquinho fazendo graça pra um violão tranquilo. Um cafuné na nuca, uma mão suave bulindo com os cabelos. Gosto da beira do rio, a correnteza meio brincando, meio séria, águas que já viajaram muito e estão impregnadas de histórias e causos, que é só uma questão de afinar o ouvido pra entender.

Falei antes da garoa refletida na luz do poste, mas somente em ato de contemplação, a chuva - eita saudade que maltrata nesse cerrado seco - a chuva é a amizade mais próxima e incerta, a gente não visita a chuva, espera por ela. Ou é surpreendido. Tanto pior se está no meio do nada paramentado para uma reunião de negócios. Melhor estar na janela sentindo o vento frio que a precede, adivinhando o primeiro pingo, observando o movimento do céu nos clarões dos relàmpagos, uma imensa rede elétrica de fios desencapados, brilhando longe e soando perto... assustando pra desafiar, incitando, se anunciando.

O mar, a cachoeira e o rio lavam o corpo, expulsam demónios, fazem a alma nova. A chuva banha a terra, limpa o ar, umedece até os pulmões dos senhores paramentados da tal reunião no escritório com ar condicionado, não é facultativa. Quero estar sob a chuva de braços abertos no meio da rua, me encharcando de céu... a chuva é gota de céu.

E tem a água que nos pertence, aquela que aprisionamos no próprio corpo, que vem fresca da bica, da quartinha, do filtro de barro, que desce mansa e acalma a sede. E volta em suor que pinga solto numa dança libertária, na saliva trocada num beijo intenso, ou num mijo longo do tipo que a gente solta quando acorda de manhã. Vem ainda numa gota furtiva que marca toda saudade que aperta o coração, salgada como o mar, elétrica como a cachoeira, morna como o rio, caindo como a chuva.

E nos meus olhos turvos está ali, na ponta externa aguardando que a pálpebra a liberte, a lágrima que rola pelo rosto e morre sobre o teclado. A água que mora em mim, saúda a água do mundo.


03/09/2008 23h30
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