Usina de Letras
Usina de Letras
40 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50669)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->O bobo em seu quarto (o escritor, por Don DeLillo) -- 07/06/2001 - 20:45 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um grande escritor americano conta sobre a solidão da escrita



Por Don DeLillo

Do inglês por Frank Heibert

Do alemão por zé pedro antunes





Um romance é um segredo que o escritor às vezes mantém para si mesmo anos a fio, até deixá-lo sair para fora do seu quarto. O escritor trabalha na solidão. Olhar voltado contra a parede, ou de pé à janela, ele se deixa impulsionar pelo sentimento do tempo que passa. A boca se lhe mantém aberta. Rói um dos dedos, e o enfia na orelha. Uma câmera de vídeo, que o vigiasse, tornaria visíveis certas coisas, desencorajadoras, sobre a dinâmica do esforço humano.



O escritor principia algo novo e vive a sua vida nos limites de um vítreo estarrecimento. Encapsula-se, às vezes, semanas ou meses, cinzela frase por frase, experimentalmente. Deixa a cidade e se dirige ao campo. Um lugar qualquer que seja mais tranqüilo, que seja mais campestre –estas palavras se projetam em desespero.

Por mais distante, por mais solitário ou até mesmo alienado que ele possa ser, por débil que lateje o pulso destes ensimesmados inícios, em não importa qual plano o escritor sabe que a gigantesca realidade social, vibrando à sua volta, lhe configura a obra.



O romance possui algo de fundamentalmente histórico. Não em razão de um mandato artístico ou de uma obrigação moral, mas porque, para além da grandeza e da honradez, dispõe de um alcance psicológico, que possibilita ao escritor depositar, numa só existência individual, incomensuráveis energias históricas.



Para alguns autores, o romance é uma confrontação com o poder, ou um conflito com a idéia de uma unidade sufocante. O que é o escritor, já, contra a corrente? O bobo em seu quarto, que monta um fuzil de papelão e aprende que aquilo consegue disparar.



Ali onde os escritores são censurados, aprisionados ou lançados no exílio, cada palavra destemida aponta para o fim de um sistema de total controle.



Em 1936, Thomas Mann escreveu que em tempos de ameaças, "com sua intelectualidade analítica, sua conscienciosidade, seu criticismo inato", o romance coloca o escritor em perigo. Mann escreveu sobre a Alemanha sob o signo da suástica. Outras formas poderiam "florescer silenciosamente à margem", dizia, mas o romance haveria de ser colocado contra a parede.



O escritor trabalha com vírgulas e aspas. Tudo em ponto pequeno. Avança, tateando o domínio da proximidade. Um único indivíduo, com uma queda de cabelos mortal, perdido na pontuação e na sintaxe. O gato mata um passarinho e o traz à sua presença. Eis a verdade do mundo, e ela, seu terror informe, o envergonha.



As coisas andam devagar, as coisas andam mal.

É o tio que morre em Oklahoma. Ele pensa, vírgulas e aspas, mas não alcança decidir-se. Nada além de um amontoado confuso de páginas infelizes, e ei-lo que, dilacerado, já se põe a erigir uma visão da fama. Não a velha fantasia do poder e da riqueza. Aura, nada mais que isso, a mística auréola luminosa ao redor da cabeça de um escritor em pleno gozo do sucesso.



Ele sabe que, se continuar a escrever e a viver o tempo necessário, e se um dia vier a ter fortuna, dele sairão então camisetas, xícaras de café, sacolas de compras. Uma espécie de castigo, ao qual meio que receia, meio que aspira. Tornar-se uma parte do moinho de imagens que a tudo devora. Absorvido, inserido, reproduzido, atenuado e desrealizado. Idéia de algum modo agradável.

Desperta no meio da noite, uma frase na cabeça. Aí, alguma coisa se agita, alguma coisa começa a acontecer. Vence o cartão de crédito e um novo chega pelo correio. O antigo, ele o rasga em quatro, depois cinco partes, e o põe fora, e os põe fora, sucessivos, no espaço de várias semanas, para que ninguém possa pescá-los do depósito de lixo, tornando a recompô-los com cola, embora muito claramente ele saiba que isso, mesmo assim, pode e, supõe-se, irá acontecer.

Mas algo está ali, algo se agita. Faz anotações, esquenta uns restos de comida. Quando as perspectivas se tornam opacas, e isso acontece quase de imediato, e sempre sucessivamente torna a acontecer, e ele sabe, sente-o em sua caixa torácica, as dúvidas palpáveis, a perda da energia e da auto-confiança – pergunta-se, então, por que afinal de contas ele escreve.



Sabe que não escreve em favor de um mundo novo. Escreve para fazer justiça a um ímpeto interior. Encontra identidade nas frases que, do seu lápis, saem como que de rastos. É a mão que ele escreve. Escreve para pensar-se a caminho da existência. Escreve para ser livre, sobreviver como indivíduo.

Perguntam-lhe por que escreve, e ele lhes pergunta por que lêem. Há uma ligação entre o livro e o eu. Leitor e escritor, em secreta colaboração, criam personagens que vivem no ar conjuntamente respirado.



Personagens como signos impressos na página e como seres humanos inventados. "Character", essa que é a palavra do inglês de classe média para personagem, significa marca impressa na alma.



O objeto livro é um milagre da comodidade física e intelectual. O livro cabe na mão. Adequa-se ao indivíduo. A forma e a essência do livro, a progressão dos signos alfabéticos na página; a mão que o detém, e a mão que o folheia, a vida nele contida, a criança que lê um livro – um único espírito se desenvolve, página a página, sozinho, até tornar-se um tecido peculiar, inconfundível.



Transforma-se um romance com o passar das décadas. Seja que a textura se lhe altera, seja que a energia se lhe desgasta, seja que ele se transforma, em Taiwan, numa embalagem adesiva, respectivamente, de acordo com o fluxo cultural em que se vê inserido.



O escritor tenta entender que tipo de romance escreve, isso, na verdade, sendo algo que, absolutamente, ele desconhece.



O romance de idéias. O romance de costumes. O duro romance-testemunho. O puro romance onírico. O romance excessivo. O romance ilegível. O romance cômico. O romance romântico. O romance missivístico. O romance do principiante, cheio de promessas. O triste, o artesanal, o póstumo romance-tão-somente-sobre-o-meu-cadáver para saqueadores de túmulos. O romance eletrizante. O romance policial. O romance experimental. O romance histórico. O romance realista, detalhatamente exato. O romance matrimonial, sedento de vingança. O romance de praia. O romance de guerra. O romance contra a guerra. O romance do pós-guerra. O romance esgotado. O romance cujos direitos de filmagem são vendidos antes de ele ser escrito. O romance do qual os críticos dizem preferir fazê-lo atravessar o quarto em vôo diagonal. O romance de ficção-científica. O romance de metaficção. O romance do tipo o-romance-está-morto. O romance que transforma a tua vida, porque você é jovem e aberto, e está preparado para dar o salto existencial.



Quer escrever um livro com muitas vozes. Quer distinguir estas vozes de ... – sim, distingui-las de quê? Da História com seus crescendi de sangue e sofrimento. Da tendência a substituir o autêntico por sua representação. Da busca por identidade em imagens fragmentárias.



Mas a verdade é que, disso tudo, ele não quer nada. Quer escrever frases e parágrafos. Quer, pelo sonho, vasculhar por dentro as correntes cerebrais de seres humanos imaginários. Briga ao telefone com a ex-mulher. Ela o diz preguiçoso, pretensioso e agressivo. Ele diz a ela que todo escritor é assim. Ela lhe diz que ele não passa de um paranóico. Ele lhe diz que teria podido picar-lhe os cartões de crédito em oito ou dez, em vez de fazê-lo em quatro ou cinco pedaços. Dez, onze, doze pedaços. Bem como o teria feito um escritor mais inteligente.



Antes da história e da política, a linguagem. Ele tenta passar para um prosa correta, de aspirações progressistas, uma prosa atlética. Assim ele se salva, assim, com determinação, ele desintoxica o próprio sangue destituído de coragem.



Inventa, recorda, tropeça, pesquisa. É o que pensa, ao descrever-se como escritor. Arranja as palavras em grupos e projeta uma vida solta, por aí. Qual um asceta, voltado para o sol, penetra na natureza selvagem, o escritor, o pescoço acima da cabeça, bate contra a linguagem. Ou talvez isso também não passe de uma ilusão romântica pessoal. O romance da auto-ornamentação bem-aventurada. Não é à sobriedade que ele aspira, mas a uma obra farta. A linguagem não o separa do mundo, antes faz por conduzi-lo às suas entranhas.



Sua acomodação feita de palavras é a superfície comum entre o Eu lacônico e a outridade ululante fora do Eu.



Um pouco mais tarde, ei-lo que já de novo se perde, lançado de volta ao vítreo estarrecimento. Ei-lo ali sentado, meia-noite adentro, essa hora de epiderme delgada, e sucumbe à própria terrível franqueza sobre o que ele mesmo escreve.

Para devaneios, toda hora é hora. Olha para a parede vazia e imagina ter recebido um honroso prêmio literário.



No páthos de seus próprios limites, no sagrado dever de que o seu romance teria de ser imperfeito – porque todos os romances são imperfeitos, diferentemente das histórias curtas ou poemas -, e, no obnubilamento surreal da obra mesma com as obscuras motivações e recordações oníricas fora do tempo, admira-se de que, de repente, ali esteja postado, em meio a uma ilusão maravilhosamente lúcida, cueca e colarinho, e cite algumas frases decoradas de um romance de William Gaddis:



"O que resta, pois, dele, ao completar a sua obra? O que é, então, o artista, senão o resíduo de sua performance? O fator humano que, obrigatoriamente, sempre a acompanha. O que permanece do ser humano, uma vez realizada a sua obra, afora desculpas irremediavelmente desarticuladas?"



Ou o escritor é alguém inteiramente outro. Talvez não passe de uma mulher jovem, que ainda não publicou nada, sozinha num apartamento emprestado. Ela é o ser humano que um dia, talvez, logo, haverá de reinventar, palavra a palavra, a nossa realidade, criando, a partir de um insight, muitos outros insights.



Contra toda expectativa, contra a grande e exaustiva corrente da inovação modernista, haverá de encontrar uma linguagem tão peculiar, originária e cortante, que nós, chocados, reconheceremos como sendo a nossa.



Trabalha meio período e, claudicante, às cegas, escreve durante a noite. Ou, então, assiste televisão. Ou chama seus amigos online, para lamentar-se pela vida que leva. É um segredo dela, escrever contra-ficção, o romance que se sobrepõe a todos os romances já escritos. É preguiçosa, pretensiosa e agressiva. Decidiu-se, o que é o mais raro, por uma obra de arte que rejeita o passado.



Grandes romances debulham a consciência. Ela é o ser humano não importa onde, lá fora, anônimo, um bobo em seu quarto, a tremer de insuficiência, e mal consegue esperar pelo momento de nos tornar a surpreender com uma coisa: O romance é, e continua a ser o caminho mais profundo que conduz ao mistério de nossos solitários motivos, e de nossas almas mergulhadas em solidão.









Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui