Usina de Letras
Usina de Letras
160 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62070 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50477)

Humor (20015)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6162)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Infanto_Juvenil-->A ESCOLHA DE SOFIA -- 31/10/2005 - 14:19 (Nelson Ricardo Cândido dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Sofia entrou naquela casa pelas mãos de sua mãe, que arranjou ali um serviço de empregada doméstica. Na casa havia mais duas meninas, mais ou menos da sua idade, filhas da patroa, que, desde pequenas, souberam colocar Sofia em seu devido lugar e este lugar estava, naturalmente, de acordo com as opiniões da mãe. Assim, a menina, por mais que tentasse se aproximar das duas, não conseguia fazê-lo. Os brinquedos com que as duas riquinhas se divertiam durante todo o dia só se aproximavam das mãos de Sofia quando já estavam velhos e quebrados, pois enquanto pudessem servir às filhas, a patroa os guardava num enorme armário no quarto das meninas.
Mas, se por um lado, era desprezada pelos patrões e suas filhas, por outro, Sofia era adorada pelos empregados, que percebiam que uma boa alma não habita necessariamente um corpo bem tratado pelo dinheiro. Há no mundo pessoas ricas boas e más, assim como pobres bons e maus. Neste caso, a arrogância, a prepotência e o orgulho conviviam com a riqueza, enquanto a meiguice e a bondade, com a pobreza.
Apesar de maltratada pela família da patroa de sua mãe, Sofia não era infeliz. Tanto a mãe quanto os demais empregados cuidavam dela com todo o carinho, deixando-a sempre limpa e arrumada, dando-lhe a atenção que jamais dariam às duas insuportáveis irmãs.
Compreendendo desde cedo o que significava a diferença de classes sociais, Sofia foi crescendo, mas sem jamais se sentir verdadeiramente infeliz, muito embora, em diversas ocasiões, tivesse se sentido magoada com certas atitudes dos donos da casa.
A primeira infelicidade — permanente — que Sofria teve na vida foi a morte da mãe. A patroa havia pedido à mãe de Sofia que lavasse as janelas do andar de cima da casa. A empregada pediu para deixar para outro dia, pois acordara com um mal estar, que a estava deixando tonta. Como para a patroa só os patrões têm direito a doenças, ela afirmou que aquilo não passava de desculpas para não fazer o serviço e insinuou que poderia contratar outra pessoa com mais boa vontade. O receio de perder o emprego e, principalmente, desabrigar a filha, fez com que a mãe de Sofia fosse lavar as janelas. Enquanto se equilibrava do lado de fora da casa para limpar os vidros, uma tontura a desequilibrou, lançando-a no chão do jardim. O medo de perder o emprego a fez perder a vida.
A morte da empregada deixou a patroa muito apreensiva, afinal, teria que procurar outra, ensinar todo o serviço, discutir salário — e como as empregadas estavam abusadas hoje em dia, pedindo uma exorbitância para não fazerem nada direito! E ainda havia aquela menina, agora órfã. Que ela soubesse, e também os demais empregados, não havia parentes conhecidos na cidade. O pai da menina, sabe-se lá quem era! Talvez a mulher fosse casada e tivesse se engraçado com o primeiro homem que tinha encontrado por aí — esse pessoal é tão estranho, mal conhece uma pessoa e já vai para a cama, já tem filho, sem se preocupar em casar, em ter um lar, em constituir uma família; parece mais animais do que seres humanos. Depois, querem ter os mesmos direitos que os patrões. Um verdadeiro absurdo!
A patroa foi até o Juizado de Menores. Solicitou a tutela de Sofia — a menina havia crescido em sua casa, estava acostumada com todos ali, era bem tratada, tinha casa, comida e escola. Seria mais fácil suportar a perda da mãe num lugar conhecido do que num estranho, cheio de gente desconhecida, talvez até delinqüentes, que a influenciariam de forma negativa. Por que não a adotar? Impossível! Ela já tinha duas filhas e não seria justo privá-las de parte da herança a que tinham direito por nascimento devido a um ato de caridade da mãe. O importante era dar um lar decente para a pequena órfã, para que ela tivesse uma oportunidade de ser alguém na vida.
A mulher conseguiu a tutela da menina e saiu do Juizado muito satisfeita. Sofia já não era nenhuma criancinha, já estava crescidinha e poderia muito bem ficar no lugar da mãe nos serviços da casa. Ela sempre ajudava a mãe e sabia fazer o serviço direitinho. Assim, não perderia tempo em treinar outra pessoa e até economizaria um salário, já que a menina era sua tutelada e não sua criada, ao menos às vistas da lei.
E foi dessa forma que Sofia passou a fazer parte da família.


O que mais incomodava Sofia não era a quantidade de serviço que tinha a fazer; nem o pouco tempo que tinha para estudar, já que trabalhava o dia todo e ia à escola de noite; nem o desprezo com que continuava a ser tratada pelos donos da casa, apesar de não ser uma empregada; não era saber-se explorada além dos limites — nem se dirá humanos — humanitários. O que mais a incomodava era a saudade da mãe. Era sue único parente conhecido e que poderia livrá-la de sua atual condição. Mas, não havendo solução no momento, tinha que aceitar o que lhe fora imposto e aguardar a maioridade para poder sair dali, livre, para sempre.
O serviço que a tutora mais impunha a Sofia era a limpeza das janelas. Diariamente elas tinham de ser limpas, por dentro e por fora; por isso, parecia sempre que nem vidro havia, já que não se via nenhuma marca ou sujeira, a não ser as que as duas irmãs faziam propositadamente para dar mais serviço a Sofia e que, muitas vezes, resultavam em algum castigo. O mínimo que se podia esperar de uma órfã que não tinha onde cair morta e que vivia de favores era fazer de boa vontade e da melhor maneira possível o que lhe fora pedido pelas pessoas que cuidavam dela. Ingratidão era a única recompensa para a caridade!
E foi limpando diariamente as janelas que Sofia passou a prestar atenção a um outro morador da casa, que raramente via. Este era um senhor já velho, cabelos brancos, sobrancelhas brancas, bigode branco e até pêlos do braço brancos. Ele passava o dia todo fechado na biblioteca, lendo. Ele era, em realidade, o verdadeiro dono da casa, sogro da tutora de Sofia. Mas não gostava de ficar com a família, nem mesmo com as netas, que achava muito mimadas. Assim, todos tinham ordem de não entrar na biblioteca por nada, em tempo algum. Ali era local proibido para todo mundo e exclusivo do velho, que até tinha um divã lá para dormir, quando não quisesse ir para o quarto. Só saía da biblioteca para comer, tomar banho e, às vezes, ir dormir em seu quarto, momento em que uma empregada entrava para tirar o pó dos móveis e livros, e passar aspirador de pó, rapidamente, antes que o velho voltasse.
Sofia passou a prestar atenção no velho e todos os dias ficava mais tempo limpando a janela da biblioteca do que as demais. No entanto, porque as filhas de sua tutora não tinham acesso a este cômodo, era a única janela que não precisava de limpeza constante.
O velho estava sempre sentado numa grande e aparentemente confortável poltrona com um livro nas mãos, lendo com muito interesse e, ao que parece, nem percebendo que havia alguém à janela, observando-o. E Sofia, dia após dia, notava as expressões no rosto do velho, que se alteravam conforme as capas dos livros também se alteravam. Havia dias em que ele parecia muito pensativo, largando por vezes o livro e olhando para o teto como se ali não houvesse teto algum. Em outros, sua expressão era de alegria e não raro soltava uma risada alta e forte que assustava Sofia. Houve dias em que a expressão era de dor e Sofia via um brilho mais intenso em seus olhos, como se lágrimas quisessem descer daquelas vistas tão antigas. Mas daqueles olhos tão antigos, que geralmente transmitiam, à sua observadora, algo positivo — para não dizer bondade —, muitas vezes saíam expressões de ódio ou indignação, sempre através da leitura.
Como era possível aqueles livros mexerem tanto com uma pessoa, fazê-la sentir tantas emoções sem sair daquela poltrona?! Sofia, na escola, já tinha lido alguns livros, mas nunca tinha gostado muito deles. Eram chatos, cansativos, davam sono, eram difíceis de entender. Quando tinha que ler um livro, o que mais gostava era das atividades que a professora dava acompanhando a leitura. Ela participava de tudo com a maior alegria e boa vontade, mas, quando voltava pro livro, ai, que chatice! Por que nunca tinha se sentido como o velho da biblioteca? Por que nunca ria ou chorava quando estava lendo um livro? Será que ela é que tinha algum problema? Será que aquele velho solitário é que tinha um problema? Será que o problema estava na forma como a leitura era feita na escola? Ou será que estava no livro escolhido?


Houve uma manhã em que Sofia, após limpar rapidamente as demais janelas da casa, correu para a sua janela preferida e, para surpresa sua, não encontrou o velho sentado na poltrona. Colando bem o rosto no vidro, procurou por ele em toda a biblioteca, sem sucesso. Por sua mente passaram mil pensamentos, entre eles doença, viagem, mudança e mesmo morte. Não, morte não, meu Deus, já chega a morte da mamãe! O que teria acontecido?
Sofia sentiu uma apreensão crescendo dentro de si e já se preparava para correr à cozinha para ter notícias de seu velhinho, quando uma voz grave atrás de si fê-la voltar, assustada:
— Você está procurando alguém, menina?
Quando ela percebeu quem era, ficou até sem fala. À sua frente, sorrindo como nenhum dos donos daquela casa jamais sorrira para ela, estava o velho conhecido. Sofia gaguejou algumas palavras, negativas e justificativas que pareciam divertir o velho. Vendo-a tão constrangida, ele resolveu falar com ela para que ela não precisasse fazê-lo e, assim, parasse de gaguejar.
— Não precisa explicar nada, meu bem!
“Meu bem”? Ela tinha escutado direito? Ele a havia chamado de “meu bem”? Seria possível? Será que ele não a havia xingado com um palavrão que ela não conhecia e que tinha entendido como “meu bem”?
A expressão de surpresa e dúvida no rosto de Sofia era tão grande, que não passou despercebida pelo velho, que quis saber de onde provinha.
— Aconteceu alguma coisa, meu anjo? Por que esta expressão em seu rosto? Você parece assustada. Não está com medo de mim, não é mesmo?!
“Meu anjo”! Ele tinha chamado Sofia de “meu anjo”, como só sua mãe a chamava, e com um tom de voz vazando tanto carinho como o de sua mãe. Só podia ser sonho!
— Não aconteceu nada, não senhor! — conseguiu dizer Sofia a muito custo.
— Você é Sofia, não é mesmo?
— Sim, senhor. O senhor me conhece?
— É claro que sim, meu bem! Já ouvi falar muito de você na mesa de jantar e, pelo que sei, você não parece ser muito bem tratada nesta casa, apesar de quase fazer parte da família, ao menos perante a lei. Além do mais, sempre vejo você limpando a janela sem sujeira da minha biblioteca e me observando.
Ao ouvir essas palavras, Sofia corou até não poder mais. Ficou realmente encabulada, já que pensava que o velho jamais tivesse prestado atenção a ela ali na janela, fazendo o seu serviço. Mais uma vez tentou se justificar e gaguejou mais do que antes, divertindo ainda mais o velho.
— Não precisa ficar com vergonha, Sofia! Eu sei que você não sabia que eu a estava vendo, mas eu vi você todos os dias e, se quer saber, sempre gostei de vê-la me observando. Parece que você se interessava pelo que eu estava lendo, não é verdade?!
Sofia balançou afirmativamente a cabeça.
— É que eu ficava curiosa de saber o que o senhor estava lendo para emocioná-lo tanto. O seu rosto estava diferente cada vez que lia um livro diferente. Eu só li uns poucos livros chatos na escola, e nunca eles me fizeram sentir nada, só sono.
— Talvez você estivesse lendo os livros errados. Nem sempre os professores acertam na escolha dos livros para os seus alunos. Na verdade, nem sempre os professores estão preparados para orientar a leitura de seus alunos. Antes de mais nada, o professor precisa ser um leitor; se ele não tem o hábito de ler, se não tem o amor pela leitura, não vai conseguir fazer com que seus alunos adquiram este hábito, este prazer, porque a leitura é um grande prazer. No dia em que você escolher um livro que a emocione, pode ter a certeza de que quererá outro, e mais outro, e mais outro, sem nunca querer parar de ler. Você vai sentir como a sua própria ficará muito mais rica e interessante com a leitura. Para mim, há duas grandes escolas para o ser humano: a vida e a arte, e, pessoalmente, acho a literatura a mais envolvente forma de arte. A cultura de um povo pode ser transmitida através das esculturas, das pinturas, das músicas e, a partir do século XX, dos filmes no cinema. Mas nenhuma dessas artes contribui tanto para o conhecimento do ser humano como a literatura. Ela preserva a língua, os hábitos, os locais, as personalidades, em detalhes que outras artes não conseguem. E, de todas as artes, é ainda a mais simples e barata de se ter acesso. Você não precisa de eletricidade para ter um livro, pois a energia para a leitura vem de você. Não precisa de outras pessoas para fazer o livro funcionar; basta você retirá-lo da estante. Após o livro ser impresso — e para isto sim precisa de outros homens —, o leitor é o único agente que move a leitura desse livro. Se você gosta de pintura ou de escultura, no mais das vezes tem de se contentar em vê-las em museus ou galerias de arte, já que o preço para adquirir uma peça é proibitivo para a maioria das pessoas. O livro, porém, mesmo estando muito caro ultimamente, é acessível à maioria das pessoas. Quem não pode comprar um livro novo, vai a um sebo e compra um usado. Fora o fato de o livro ser muito barato se comparado a tudo o que ele nos oferece em termos de prazer, cultura e lazer. Mas... o que estou fazendo? Devo estar cansando você com essa conversa mole, não é, Sofia? Isso não é conversa para uma jovenzinha como você!
— Não, senhor! Eu estava achando muito interessante o que o senhor dizia. Não entendi tudo, mas achei muito interessante...
O velho riu da ingenuidade da menina, mas sentiu nessa frase e nas observações dela pela janela que talvez ela se interessasse por leitura.
— Sofia, meu bem, você não gostaria de ler algum livro comigo na biblioteca?
Sofia ficou surpresa e entusiasmada com a proposta e já estava pronta a exclamar um “é claro que sim!”, quando se lembrou de suas obrigações. No mesmo instante, a expressão de seu rosto alterou-se para uma profunda frustração.
— O que houve, Sofia? Algum problema? Você não quer ler comigo? Se não quiser, não há problema algum. Eu apenas pensei que você...
A menina interrompeu o velho antes que ele pudesse concluir o que pensava.
— Desculpe, mas não é nada disso. Eu adoraria ficar com o senhor, lendo na biblioteca, mas não posso fazer isso. Eu tenho muito serviço para fazer aqui na casa e a sua nora não vai deixar eu ficar parada lendo. Ela só me deixa parar de noite, na hora de dormir.
— Ora, ora, ora! — exclamou o velho. Então você não tem tempo livre para adquirir cultura, não é mesmo?! Vamos fazer o seguinte: vá trabalhar, que depois eu falo com você de nove, está bem?
Dizendo isso, o velho passou suavemente a mão pelo rosto de Sofia e sorriu-lhe. Sorrindo de volta, a menina respondeu-lhe.
— Está bem!
E, antes de afastar-se, voltou-se novamente para o velho e disse-lhe:
— Muito obrigada!
— Obrigado de quê, meu bem?
A menina não respondeu. Apenas sorriu mais uma vez e foi trabalhar.


— Sofia, venha cá!
A voz da tutora não era das melhores. Sofia ficou a imaginar o que teria feito de errado para irritá-la e não se lembrou de nada. Mas não demorou muito a descobrir o que ela queria.
— Eu não sei o que você andou fazendo ou dizendo para o meu sogro, mas o fato é que ele me pediu para liberar você toda tarde para trabalhar com ele na biblioteca. Eu tentei explicar-lhe que você já tem muito serviço e que eu não poderia liberá-la tanto tempo, mas não adiantou nada a minha argumentação. Ele quer assim e ponto final. Portanto, a partir de amanhã, você, depois do almoço, passa a trabalhar com ele na biblioteca.
— Oh, que maravilha, senhora! — exclamou radiante a menina, alegria que irritou profundamente a patroa.
— Mas... — continuou ela, com um leve sorriso maldoso nos lábios —, como eu disse, você tem muito serviço a fazer; portanto, é bom se empenhar muito mais no que faz, pois eu não vou dispensá-la de nada. O que você fazia o dia todo, agora terá de fazer só pela manhã, está me ouvindo? Nem que tenha de levantar mais cedo. Se você não conseguir fazer tudo — muito bem feito e não de qualquer jeito —, falo com meu marido e acabo em três tempos com essa besteira de trabalhar na biblioteca, compreendeu? E não quero ouvir um pio a respeito desta nossa conversa, principalmente com meu sogro, senão...
— Sim, senhora! Não se preocupe, que não vou dizer nada.
— Muito bem! Pode ir agora fazer o seu serviço.
Sofia estava saindo da sala, quando a tutora chamou-a de volta.
— Sofia, você não se esqueceu de nada?
A menina fez cara de quem não entende e procurou à volta a ver se via algo que tivesse esquecido ou que estivesse fora do lugar.
— Você não me agradeceu, Sofia!
— Agradecer?!
A exclamação de Sofia deixou a tutora vermelha de ódio. Ela ergueu a voz, quase gritando.
— É, agradecer, sim! Sua mal agradecida! Eu estou fazendo a gentileza de deixá-la livre à tarde para fazer sei lá o quê na biblioteca e você não presta nem para me agradecer. Ingrata! Miserável criatura!
— Desculpe-me, senhora! Eu não tive essa intenção. Desculpe! E muito obrigada por sua gentileza.
— E agora, fora daqui, antes que eu me arrependa de ser tão boa. Anda, fora!
Sofia não esperou mais nenhum segundo, saindo correndo da sala.


— O senhor ainda não me disse o seu nome e eu não o sei, porque sempre ouço chamarem o senhor de “vovô”.
Sofia estava na biblioteca com o velho, na primeira tarde em que passaria sem trabalhar, lendo somente, como ele lhe prometera.
— Pois eu gostaria que você me chamasse também de vovô. Você se incomoda? — disse ele, olhando-a nos olhos para ver bem a sua reação.
Um brilho iluminou todo o rosto de Sofia, ao mesmo tempo em que um imenso sorriso surgia.
— É claro que não me importo! — respondeu a menina. Na verdade, eu adoraria poder chamar o senhor de vovô, já que nunca conheci os meus avós.
— Pois estamos combinados. A partir de hoje você só me chama de vovô, está bem?
— Está sim, vovô! — e pronunciando esta última palavra pela primeira vez com o sentido dirigido a uma pessoa, Sofia encheu a boca para falá-la.
E a partir desse dia Sofia, orientada pelo Vovô, passou a viver todas as tardes mergulhada na leitura de livros.


Como a biblioteca do Vovô era muito grande e possuía os mais variados livros de todas as épocas, para todos os gostos, o próprio Vovô foi quem os escolheu para Sofia, ficando acertado entre eles que, se ela não gostasse de algum, não precisaria continuar a lê-lo. O importante era ela fazer do hábito da leitura um momento de prazer. Mas, como o velho tinha a experiência de anos e anos com os livros, soube escolhê-los muito bem, de forma que jamais Sofia desgostou de uma recomendação sequer.
Vovô resolveu que Sofia leria primeiro os clássicos da literatura infantil, escritos ou adaptados para as crianças. E começou com as fábulas orientais. Sofia leu o Pantcha-Tantra, o Hitopadexa, o Calila e Dimna e As Mil e Uma Noites. Depois, as fábulas do grego Esopo e do latino Fedro, terminando nas do francês La Fontaine. Com as Fábulas, Sofia aprendeu a conhecer o que se costuma chamar a “natureza humana”, ou seja, como o ser humano age, e percebeu que não mudou muita coisa desde a Antiguidade até agora, sendo que as fábulas resumem-se basicamente em duas lições: na sociedade, o poder pode mais que mil razões, seja este poder puramente físico ou econômico, político, religioso ou outro qualquer; e contra o poder só existe a esperteza, não a esperteza fruto da malandragem, mas a esperteza fruto da inteligência, do raciocínio. Nem sempre a esperteza vence a força, mas é a única que pode tentar fazê-lo.
Foi através das fábulas que Sofia, pela primeira vez, sentiu a importância da cultura para tentar conseguir um dia mudar de vida. Ali naquela casa, onde ela era fraca em relação ao poder econômico e social da família, ela seria sempre oprimida, menos pelo Vovô. A cultura a tornaria inteligente e isto a libertaria um dia. E ela só tinha acesso à cultura através dos livros que, segundo o Vovô, resumiam toda a cultura humana.
Das fábulas, Sofia passou para os Contos ou Histórias dos Tempos Idos, de Charles Perrault. Foi quando leu pela primeira vez as histórias de fadas que ela já conhecia de ouvir contar: A Chapeuzinho Vermelho; O Pequeno Polegar; A Bela Adormecida do Bosque; Cinderela (história que ela achava tão parecida com a sua e que a fazia sonhar para si um final tão feliz quanto o da Gata Borralheira); O Gato de Botas; Riquet, o Topetudo; Pele de Asno; As Fadas; e o Barba Azul.
A seguir, leu os Contos de Grimm que, além de recontar as histórias do livro de Perrault, contava dezenas de outras, como Rapunzel, Branca de Neve, João e Maria, O Alfaiatezinho Valente, o Rei Sapo, e mais e mais.
Leu também os contos do escritor dinamarquês que é considerado o Pai da Literatura Infantil, Hans Christian Andersen e, pela primeira vez em suas leituras, Sofia emocionou-se como tantas vira o Vovô fazer. Ela já havia rido ou ficado horrorizada, como quando leu a história do terrível Barba-Azul; mas com Andersen ela chorou, não uma nem duas vezes, mas várias, tantas que perdeu a conta. Como podia um homem ser capaz de escrever histórias tão belas e ao mesmo tempo tão tristes, que pudessem fazer uma pessoa chorar?! Tinha de ser um gênio da literatura! E não era para menos que o chamavam de Pai da Literatura Infantil. Com histórias como A Pequena Sereia, A Roupa Nova do Imperador, O Soldadinho de Chumbo, O Rouxinol, O Patinho Feio (seria ela também um Patinho Feio que um dia se transformaria em cisne?, perguntou-se Sofia), Os Sapatos Vermelhos, A Menina dos Fósforos, o Boneco de Neve, entre os mais ou menos 150 contos que o escritor dinamarquês escreveu, Andersen tornou-se o autor preferido por Sofia.
Seguindo o conselho de Vovô, que lhe repetia sempre que recomendava primeiro a leitura dos “livros clássicos” para depois ler os contemporâneos, isto é, aqueles escritos pelos autores de nossa época, Sofia leu vários livros da Condessa de Ségur; além de Pinóquio, do italiano Carlo Collodi; muito Júlio Verne, das aventuras à ficção científica; as duas Alice, no país das maravilhas e do outro lado do espelho, de Lewis Carroll, um escritor inglês que escreveu as histórias para uma menina de verdade chamada Alice Liddel, que ele conhecia; e Peter Pan, do também inglês James Barrie; a história do maior mentiroso do mundo, o Barão de Münchausen, de G. A. Burger. E leu ainda toda a coleção chamada Clássicos da Literatura Juvenil, com, por exemplo, A Ilha do Tesouro, de Robert L. Stevenson; O Conde de Monet Cristo, de Alexandre Dumas; As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain; David Copperfield, de Charles Dickens; Beleza Negra, de Anna Sewell; Ben-Hur, de Lewis Wallace; Robin Hood, a lenda inglesa de um nobre injustiçado que se torna marginal e, com seu bando, rouba dos ricos para dar aos pobres; Sem Família, de Hector Malot; Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (esta se tornou uma das autoras preferidas de Sofia, que leu outros livros com a história de Jo e sua família); O Pequeno Lord, de Francês Hodgson Burnett; As Viagens de Gulliver,de Jonathan Swift; Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe; num total de 50 volumes.
Para encerrar os livros clássicos estrangeiros apropriados à idade de Sofia, Vovô reservou para a menina quatro livros que, segundo ele, ensinavam ótimas lições de vida: O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon; e, finalmente, da americana Eleanor H. Porter, Pollyana e Pollyana Moça, livros cheios de esperança, de boa vontade e de entusiasmo, coisas raras em nosso tempo tão dominado pelo egoísmo e pela desesperança.
Estas histórias mostraram a Sofia o ser humano — como era de fato, como deveria ser e como poderia ser. O ser humano poderia ser melhor se assim o quisesse. Era uma questão de escolha, de utilizar o livre arbítrio que o homem, único animal racional, pensante, tem. Estas leituras deram a Sofia condições de fazer sua escolha e ela escolheu tentar tornar o mundo melhor para si e também para todos os que pudesse atingir com sua ação.


Finda a leitura dos livros estrangeiros, Vovô selecionou uma série de obras de autores brasileiros, dirigidas ao público infantil e juvenil. Os critérios para a escolha foram a importância das obras no momento em que foram publicadas e a sua qualidade enquanto obra de arte. Para que Sofia sentisse o desenvolvimento da literatura infanto-juvenil no Brasil, Vovô estabeleceu uma ordem cronológica para a leitura, ou seja, primeiro ela leria os livros mais antigos e depois os mais recentes.
Primeiramente, Sofia leu os Contos Infantis da Júlia Lopes de Almeida e da Adelina Lopes Vieira. A seguir, alguns livros de Figueiredo Pimentel: Contos da Carochinha, Contos de Fadas, Histórias da Avozinha e Histórias da Baratinha.
Sofia, que já conhecia a maioria das histórias recontadas nestes livros, estranhou algumas alterações que Pimentel havia feito. Comentando essa estranheza com o Vovô, a menina concluiu seu raciocínio dessa maneira:
— Até parece que esse Figueiredo Pimentel pensava que toda criança é boba e não entende nada de nada da vida. Pois ele estava redondamente enganado. Se reescrevesse as histórias como elas são, descobriria que as crianças entenderiam tudo perfeitamente e gostariam mais dos seus livros. Na época, as pessoas podiam dar nota 10 para o trabalho dele, mas hoje eu acho que não passaria de 5.
Ao ouvir tal comentário, Vovô olhou para Sofia com espanto e satisfação, pois percebeu que a leitura estava incentivando o raciocínio da menina e criando uma visão crítica do mundo. Ele não lhe disse nada, mas sorriu de tal maneira, que Sofia sentiu em sua expressão aprovação das suas idéias a respeito dos livros de Figueiredo Pimentel. E esta simples aprovação expressa no olhar do Vovô serviu como incentivo para que Sofia passasse a dizer quais suas expressões sobre os livros que ia lendo.
As próximas leituras foram de dois livros do Olavo Bilac, Contos Pátrios, escritos em parceria com o Coelho Neto, e Através do Brasil, escrito em conjunto com o Manuel Bonfim.
Já da leitura de Saudade, do Tales de Andrade, a menina gostou muito, talvez por possuir uma natureza um tanto melancólica. Ao final do livro, quando Mário parte para a Escola de Agronomia, Sofia começou a chorar.
— Como a separação é triste! — disse a Vovô, enxugando algumas lágrimas. Mesmo quando é para o bem de uma pessoa.
Depois foi a vez de ler Cazuza, de Viriato Correia, e, então, Sofia chegou a uma obra que a encantou, na qual viveu durante meses e a qual releu inúmeras vezes: a de Monteiro Lobato.


Antes de Sofia começar a ler os livros de Monteiro Lobato, Vovô contou-lhe um pouco da vida desse grande escritor brasileiro, considerado o Pai da Literatura Infantil brasileira. Ele foi tão importante para a literatura infanto-juvenil em nosso país, que na data de seu nascimento — 18 de abril — comemora-se no Brasil o Dia Nacional da Literatura Infantil. De tudo o que Vovô falou a Sofia sobre Lobato, uma frase foi emergindo de sua memória à medida que lia as histórias de Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde, D. Benta, Tia Nastácia e das outras personagens: “Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant”. Essa frase fazia parte de uma carta que o escritor havia mandado para seu amigo de faculdade, Godofredo Rangel, quando já era um escritor consagrado de contos para adultos, não tendo ainda publicado nenhum livro infantil ou juvenil.
Literalmente, Sofia passou a morar nos livros de Monteiro Lobato, a viver todas as suas tardes e até domingos inteiros.
Ah, como se divertiu com as aventuras no Sítio do Picapau Amarelo. Não conteve uma gostosa gargalhada lendo Reinações de Narizinho, quando Miss Sardine, uma sardinha que estava na comitiva real do Príncipe Escamado, mergulha na frigideira cheia de óleo fervente na cozinha de Tia Nastácia e morre fritinha da silva. Tia Nastácia chora muito diante daquela tragédia, mas, ao sentir o aroma de peixe frito, para de chorar, começa a tirar pedacinhos da sardinha e acaba por comê-la todinha, lambendo os beiços de satisfação. Apesar de trágico, era muitíssimo cômico!
E o vestido de casamento de Narizinho! Que encanto! Nunca havia lido descrição mais linda de um vestido, nem na obra de Hans Christian Andersen.
Os livros de Monteiro Lobato aconteceram na vida de Sofia numa fase de sua vida em que ia deixando de ser menina e se transformava em mulher. Sofia iniciou a leitura da obra de Lobato como menina e a terminou como adolescente; e percebeu que os livros de Monteiro Lobato faziam esse mesmo percurso — iniciava-se como literatura infantil, com as Reinações de Narizinho e terminava com literatura juvenil, em obras como Os Doze Trabalhos de Hércules.
Que riqueza de cultura havia dentro daqueles livros! Com Lobato, Sofia aprendeu História, Geografia, Matemática, Língua Portuguesa, Ciências diversas, Folclore... Quanto interesse despertou em Sofia a obra O Minotauro! Passou a sonhar com a Grécia antiga e começou a sonhar com algo que nunca sonhara, algo tão distante de sua vida: viajar! Viajar e conhecer o mundo todo, todas as culturas, todos os povos... Que maravilha seria conhecer lugares como Atenas e suas ruínas históricas, visitar os museus no mundo, nos quais o passado grandioso de civilizações passadas estava de alguma forma preservado!
Com Lobato, Sofia morou, viveu, comeu, respirou, sentiu, dormiu dentro dos livros. Havia ido mais longe do que talvez o próprio Monteiro Lobato houvesse imaginado.


Uma coleção de livros encantou Sofia quase tanto quanto os de Monteiro Lobato: a série da Vaca Voadora, escrita por Edi Lima. A autora ia criando situações tão absurdas, mas com tanta naturalidade, que era impossível não se divertir com aqueles livros, tão gostosos de se ler.
Vovô separou uma pilha de livros de autores variados, que considerava com qualidade artística e intelectual, a maioria escrita a partir da década de 70 do século XX. Eram livros que convidavam a criança e o jovem a ver o mundo e a vida com outros olhos, não ficando restritos a fantasias, mas que mostravam a realidade em que vivemos — opressão política, fome, miséria, perseguição, morte, doença, abandono, separação. Sofia passou por autores nacionais como Lúcia Machado de Almeida, Odette de Barros Mott, Maria Clara Machado, Wander Piroli, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo e Lygia Bojunga Nunes.


Ah, Lygia Bojunga Nunes! Uma experiência semelhante à que teve com Lobato, Sofia teve com Lygia. Sofia sentiu que a obra dessa autora gaúcha, que vive no Rio de Janeiro e tem um pouco de seu coração em Londres, era algo vivo. Um dia, lendo uma passagem da Bíblia sobre Jesus, encontrou a seguinte frase: “E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça” [Lucas 2,52]. Ao ler a obra de Lygia Bojunga, pareceu-lhe que era um ser vivo crescendo em idade, em sabedoria e em encanto. Começou como literatura infantil para crianças pequenas e foi-se desenvolvendo como o faz uma criança, passando à adolescência e, depois, à idade adulta.
Sofia leu, em ordem cronológica, todos os livros que Lygia Bojunga Nunes havia publicado. Se, para sua idade, sentiu que os primeiros livros eram um pouco infantis, já os últimos eram para um adulto, para uma pessoa mais madura do que Sofia era naquele momento; mas a linguagem de Lygia era tão fluente, que Sofia não teve qualquer dificuldade para lê-la.
Seu livro preferido de Lygia Bojunga foi o de contos intitulado Tchau, identificando-se com o problema de diferença de classes sociais presente no conto O Bife e a Pipoca.
Quando soube que Lygia Bojunga Nunes havia criado uma “Casa” onde suas personagens e seus livros todos pudessem morar, Sofia pensou consigo mesma que a autora até poderia juntar tudo nessa casa, mas que não o faria em tempo integral e nem por muito tempo, porque cada vez que alguém lesse um daqueles livros, as personagens sairiam escondido de sua casa e passariam a morar com quem as estivesse lendo; e quando Lygia morresse, seus livros pertenceriam ao mundo e não seriam eles que habitariam em algum lugar, mas seus leitores é que morariam nele, como havia acontecido com Monteiro Lobato. Era o destino das grandes obras!


Um dia, Vovô vendo a jovem terminando mais uma leitura, aproximou-se e falou-lhe:
— Acho que você já leu muita coisa até hoje, não, minha querida?
O coração de Sofia começou a bater aceleradamente, pois ela pensou que, após aqueles poucos anos, Vovô havia se cansado de sua presença constante na Biblioteca e a dispensaria dali.
— Você está bem, Sofia?! — perguntou Vovô, preocupado com a aparência da adolescente e sua respiração ofegante.
A jovenzinha só conseguiu menear afirmativamente a cabeça. Vovô então lhe disse:
— Não tenho mais nenhuma dúvida de que você é uma “leitora” — e Vovô frisou bem essa última palavra, dando-lhe um sentido mais profundo que o de apenas compreender o que estava escrito em algum lugar. Até agora, você só leu livros em prosa, e há ainda muito mais para ler. Estava pensando se você não gostaria de começar a ler alguns livros de poesia! Quer tentar?
Um suspiro de alívio escapou da boca de Sofia e um sorriso estampou-se em seu rosto todo, iluminando-a. Mas continuou sem palavras, balançando sua cabeça para cima e para baixo, em sinal de aceitação.
— Para começar, leia estes aqui! — disse Vovô, entregando-lhe três livros: A Arca de Noé, de Vinícius de Morais; Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles; e um mais grosso, Poesia Brasileira para a Infância, uma coletânea de poesias em língua portuguesa.
Que coisa maravilhosa era aquela combinação de idéias, palavras e sons contidos na poesia! Naturalmente, Sofia já havia lido ou ouvido alguns poemas na escola ou em outros lugares, mas nunca havia atentado para a riqueza que havia neles.
Como alguém podia “brincar” assim com as palavras, combinando-as de forma tão perfeita e musical, extraindo de cada uma delas o máximo sentido que elas podiam dar ou até mesmo dando-lhes um novo sentido?!
Sofia descobriu que uma história também podia ser contada em forma poética e não apenas em prosa. E tocou-lhe particularmente a história do pintinho cego, que o poeta Olegário Mariano contou em versos. Quando o pintinho morre, Sofia chorou junto com a personagem-narradora.
Essa experiência e todas as que vinha tendo desde que começara a ler levaram Sofia a conversar com Vovô:
— Sabe, Vovô, eu tenho sentido algo que ainda não sei explicar direito. Quando a mamãe morreu, eu senti uma grande tristeza e ainda sinto. A morte dela faz parte da minha vida e eu vivi aquela perda. Quando eu leio alguma coisa, sinto as mais diversas emoções; não é algo que eu esteja vivendo na minha vida, mas sinto que essas emoções entram na minha vida e acabam fazendo parte das minhas lembranças, como se eu tivesse vivido tudo aquilo que eu li. O senhor me entende? Não sei como explicar isso.
Vovô tirou os óculos, baixou o livro que tinha em mãos e sorriu orgulhosamente para Sofia.
— Claro que eu entendo, meu bem! Você está descobrindo que as experiências de vida podem ser adquiridas de duas maneiras: você pode viver de fato algo, de forma concreta, como foi o fato de você, Sofia, perder a sua mãe; ou você pode vivenciar algo através da experiência de outras pessoas, através da narração dessas experiências, seja de que forma isso aconteça — alguém contando, um filme, uma reportagem, um livro... A literatura faz com que você viva muito mais a sua vida e também viva outras vidas, tornando suas várias experiências que normalmente você jamais teria condições de ter. Sentada nesta biblioteca, você viaja para lugares com os quais jamais sonhou, a tempos passados e futuros; tem contato com pessoas, povos e culturas que, provavelmente, você jamais poderá conhecer; sente uma infinidade de emoções que a sua vida nesta casa não lhe permitiria sentir.
Meditando aquelas palavras de Vovô, Sofia, em silêncio, agradeceu a Deus por ter criado o ser humano com essa capacidade de criar e recriar a vida através da arte, de forma que uma pessoa, em qualquer tempo ou lugar, pudesse vivenciar — tinha sido essa a palavra usada por Vovô, não? — as experiências de toda a humanidade.

À medida que Sofia crescia física e intelectualmente, Vovô ia-lhe sugerindo leituras adequadas à sua maturidade. “Tudo a seu tempo certo, para que você possa aproveitar ao máximo a sua leitura!”, dizia-lhe Vovô, quando Sofia pedia-lhe para ler algum dos livros que o velho senhor acabara de ler.
Após a leitura desse panorama da literatura infanto-juvenil e preparando Sofia para os grandes clássicos da literatura mundial — da Antiguidade aos nossos dias, em prosa ou verso, teatro ou romance —, Vovô selecionou as principais obras da literatura brasileira para que a jovem as lesse. Ele tinha elaborado uma relação que chamara de “Biblioteca Básica da Literatura Brasileira”, em ordem cronológica, que iniciava com a Carta de Pero Vaz de Caminha, contando ao rei de Portugal sobre o descobrimento do Brasil. A leitura dessa “biblioteca” levou muito tempo, acompanhando Sofia em sua entrada na idade adulta.
Sofia já estava com 18 anos quando descobriu um escritor que tinha a capacidade de contar histórias semelhantes, mas sempre com um ar de novidade, porque suas narrativas exploravam o interior do ser humano: Machado de Assis. Naturalmente, já ouvira falar muito neste que é considerado um dos maiores — se não o maior — escritor brasileiro e um dos maiores do mundo. A jovem tinha receio de lê-lo, pois achava que sua leitura seria extremamente difícil, como o fora a leitura dos textos do Pe. Antônio Vieira. No entanto, surpreendeu-se com a clareza das frases de Machado de Assis. E com o seu vocabulário, então! Aquele homem que produzira sua obra no final do século XIX e início do século XX usava de um vocabulário tão límpido, que Sofia nem precisava recorrer a um dicionário para compreender alguma palavra desconhecida.
A comparação entre a vida de Machado de Assis e a história do patinho feio, de Andersen, não pode ser evitada na mente de Sofia. Machado de Assis nascera pobre, mulato, gago e epiléptico; ficara órfão de pai e mãe muito cedo. Cresceu reservado e tímido. E conquistou, ainda em vida, o reconhecimento do Brasil como um de seus grandes intelectuais.
“Outro autor para se viver em sua obra!” — pensara Sofia consigo mesma, em um dos seus momentos de digressão, durante a leitura do escritor carioca.

Foi por essa época que começou uma movimentação fora do comum na casa em que Sofia morava. Sua tutora a chamara e lhe ordenara que cuidasse com muito mais zelo da cada e dos objetos de decoração, deixando tudo muito limpo e brilhante para uma grande festa que seria dada em homenagem a um jovem que estava voltando ao Brasil, após estudar muitos anos no exterior.
Sofia tentou saber, pelos outros empregados da casa, quem era aquele jovem para quem estava sendo preparada uma festa tão grandiosa, para a qual, pelo que ouvira dizer, estava convidada apenas a alta sociedade local. Mas ninguém sabia dizer-lhe. Foi Vovô quem lhe esclareceu a identidade do rapaz: tratava-se do neto de um amigo seu, extremamente rico, para quem sua nora estava preparando uma “armadilha” (Vovô riu, ao dizer esta palavra), querendo que ele se case com uma de minhas netas. “Pobre rapaz! (e Vovô riu novamente). Mal sabe o que o espera!”

No dia seguinte à festa, um jornal local estampou uma notícia de primeira página com foto, dizendo que a festa da noite anterior havia sido a mais espetacular já acontecida na cidade em todos os tempos. Realmente, tudo o que se pode se chamar de luxo — e com certeza muito de brega, quando se exagera no luxo (naturalmente esse comentário não fora feito pelo repórter, caso contrário perderia o emprego no mesmo dia!) — estava presente na festa, a começar pela decoração abundante em flores e brilhos, pelas luzes, pelas roupas dos convidados, pela riqueza de iguarias e bebidas das mais finas qualidades servidas por um número de criados como nunca se vira naquelas bandas, pelos carros que chegavam, quase sempre conduzidos por motoristas uniformizados, pela quantidade de flashs das câmeras fotográficas, que registravam cada momento dos convidados, dos mais elegantes aos mais constrangedores.
O convidado de honra, chamado Sócrates, chegou quando a festa estava já pela metade, acompanhado por seus pais, visivelmente enfadado com a homenagem. Cada mãe de filha solteira procurou apresentar (ou seria melhor dizer empurrar) sua filha, acompanhada de uma lista de qualidades que a garota tinha e que a fazia o melhor partido da cidade. Por ser a dona da casa e a organizadora da festa, a tutora de Sofia deu seu jeitinho e retirou o rapaz para uma sala mais íntima, onde ele pudesse conhecer melhor suas filhas e fugir ao assédio daquelas meninas oferecidas e vulgares.
Devidamente apresentados, o primeiro comentário que as filhas fizeram foi quanto ao nome do rapaz. “Sócrates! Se não me engano é o nome de um artista!”, disse uma das irmãs. “Não, maninha, é o nome de um jogador de futebol que virou médico!”, replicou a outra. E riram escandalosamente do equívoco. Um leve arquear dos lábios tentando aparentar um sorriso foi a expressão vista no rosto do rapaz, que por dentro se lamuriava por ter de estar ali, onde já ouvira uma dezena de vezes perguntarem-lhe se seu nome era em homenagem ao jogador. Por dentro, perguntava-se: “Ninguém lê nesta cidade?! Ninguém tem algo inteligente a dizer ou algum assunto interessante a conversar?!”


Enquanto a festa corria solta para a alegria da anfitriã, esperança das jovens solteiras e de seus pais e angústia de Sócrates, Sofia, na cozinha, lavava as louças junto com duas auxiliares. A velha governanta, responsável por fazer cumprir as vontades e ordens da patroa junto aos empregados, aproximou-se discretamente de Sofia e disse-lhe ao ouvido: "Deixe esta louça aí e vá até a biblioteca, que o patrão quer falar com você!” Um sorriso de benevolência e incentivo estampou-se no rosto da velha senhora, que sempre tratara Sofia com carinho, desde que a conhecera ainda pequenina.
Procurando não ser vista, Sofia esgueirou-se até a biblioteca, encontrando Vovô, como sempre, sentado em sua poltrona, lendo. Sofia ficou ali na sua frente parada algum tempo, até que ele a olhou por cima dos óculos e sorriu.
— Ah, minha querida, você já está aqui” — disse-lhe ele.
— Sim, Vovô, a governanta disse que o senhor desejava me ver.
— É verdade, minha filha! Preciso que você me faça um favor e salve uma pessoa.
Sofia franziu a testa, demonstrando não ter entendido o que Vovô pedira. Após alguns instantes de silêncio, com Vovô olhando-a, ele voltou a falar.
— Você sabe para quem está sendo oferecida esta festa, não sabe, Sofia?
— Sim, Vovô, o senhor me disse que era para o neto de um amigo seu que voltou ao Brasil.
— Isso mesmo, querida. O avô desse rapaz foi um homem muito inteligente, que passou muito de sua educação e de sua cultura para o neto. Eu só o conheci pelas cartas que seu finado avô me escrevia regularmente, nas quais partilhávamos nossas vidas. Esse jovem que está aí na sala não é um jovem qualquer, como os jovens de hoje. Ele foi lentamente preparado pelo avô para assumir a direção de suas empresas, mas também para ser um patrono das artes e da cultura. Possui uma cultura acima da média e, com certeza, incompatível com a mediocridade das pessoas que estão lotando esta casa hoje, a começar pelas minhas netas. Preciso que você vá salvá-lo da situação constrangedora em que sei que ele se encontra.
Franzindo ainda mais a testa, Sofia exclamou:
— Eu, Vovô?! Como posso salvá-lo dessa gente?! O que o senhor deseja que eu faça?! Ajudá-lo a fugir da festa pelas portas do fundo?!
Vovô deu uma gostosa gargalhada ao ouvir Sofia.
— Não seria uma má idéia, Sofia, mas isso causaria um escândalo muito grande e, além disso, ele não seria capaz de uma grosseria tão grande. Mas seria uma idéia bem interessante!
E voltou a rir gostosamente.
— E então, Vovô, o que devo fazer? Como salvá-lo?!
— Só preciso que você vá até ele e... converse!
O coração de Sofia bateu descompassado, fazendo-a até ficar sem fôlego. Assim que pôde, exclamou:
— Vovô?! Eu?! Como posso...?! Eu não...!! Olhe pra mim...!!!
Vovô, vendo-a sem palavras, tranqüilizou-a.
— Não se preocupe, minha filha. Já providenciei tudo.
Pegou no telefone, ligou para um dos ramais da casa e disse:
— Pode vir. Ela está pronta!

Duas senhoras e um rapaz entraram na biblioteca, com caixas e maletas. A primeira coisa que fizeram foi pedir a Sofia que fosse ao banheiro anexo para tomar um banho, com um perfumadíssimo e fino sabonete.
Em seguida, sentaram Sofia em uma cadeira e atiraram-se em cima dela. Mexiam em seus cabelos, em suas faces, em suas mãos e pés. Enquanto trabalhavam, faziam diversos comentários entre si, elogiando uns aos outros pelos resultados do que faziam. Sem um espelho à frente para se ver, Sofia estava angustiada, sem saber o que estavam fazendo. Com o canto do olho via Vovô em sua cadeira, lendo, olhando-a de vez em quando por sobre os óculos e sorrindo de forma aprovadora.
Quando terminaram o trabalho, abriram uma grande caixa de onde saiu um vestido negro lindo, como Sofia jamais vira. Tinha a estranha capacidade de ser simples e ao mesmo tempo luxuoso. De uma caixa menor, tiraram um sapato preto que parecia cintilar como um vaso negro de cristal de Murano, que sua tutora tinha na sala. Ajudaram Sofia a vestir-se e calçar-se, deram-lhe os últimos retoques na maquiagem e nos cabelos e pararam à sua frente, lado a lado, balançando afirmativamente as cabeças, unânimes na aprovação de seus trabalhos.
— Uma verdadeira obra de arte! — disse o rapaz, com um leve sotaque. Très chic et très belle!
Vovô aproximou-se sorrindo e com lágrimas nos olhos. Segurou Sofia pelos ombros, olhando-a orgulhosamente de alto a baixo.
— Linda, minha querida! A minha gata borralheira transformou-se em Cinderela!
Trouxeram um espelho do banheiro e o colocaram diante de Sofia. Num primeiro momento, ela não reconheceu a si mesma, pensando tratar-se de um retrato. Mas como ele repetisse os mesmos gestos que ela fazia, sua razão fez-lhe ver que aquela jovem linda à sua frente era ela mesma, quase irreconhecível, mas ela mesma, Sofia.
— Só mais um instante e estaremos prontos! — disse Vovô.
Ele foi até uma cadeira, pegou a parte de cima de seu traje de gala, vestiu-o e aproximou-se de Sofia, oferecendo-lhe o braço.
— Vamos?! — disse-lhe o velho.
Uma das senhoras que trataram da transformação de Sofia abriu-lhes a porta da biblioteca e ambos caminharam em direção à festa.

Enquanto caminhavam pela sala, entre os convidados, Vovô ia-os cumprimentando com um leve aceno com a cabeça, sorrindo ao ver em seus rostos a expressão à vista da bela Sofia. As jovens solteiras fecharam seus rostos, permanecendo sisudas e emburradas por haver alguém entre elas que realmente chamava a atenção. À passagem do casal, bocas aproximavam-se de ouvidos e um burburinho de comentários cochichados ia dominando o ar. Afinal, quem era aquela jovem acompanhando o dono da casa?!
A tutora de Sofia estava a um canto, de costas para a direção de onde Vovô e Sofia vinham. Percebendo a expressão no rosto das pessoas com as quais conversava, e para onde olhavam, virou-se, ainda sorrindo e seu sorriso sumiu imediatamente ao ver seu sogro com aquela jovem maravilhosa, mas que ela não reconhecera.
Nesse instante, o jovem Sócrates apareceu na sala de braços dados com as duas irmãs. Estas sorriam envaidecidas por estarem ao lado do homenageado e este, coitado, aparentava tédio e resignação. Ao ver Sofia, estacou, desvencilhou-se das irmãs com um pedido de desculpas e aproximou-se da jovem e de Vovô. Parando em frente a eles, percebeu que não tinha o que dizer, pois era convidado e não os conhecia. Vovô rompeu o silêncio, apresentou-se como amigo do avô do rapaz e apresentou-se a sua neta.
— Pensei ter entendido pela sua nora que havia apenas duas filhas — disse o rapaz.
— Da parte dela, sim. Mas esta é a minha neta preferida: Sofia.
O rapaz tomou a mão de Sofia, beijou-a delicadamente, sem tirar os olhos de seus olhos.
— Sofia, acredite que estou verdadeiramente encantado em conhecê-la. Muito prazer! Sócrates.
Sofia sorriu ao mesmo tempo encabulada e orgulhosa. Só lembrou de dizer:
— Sócrates...! Como o filósofo grego!
Um imenso sorriso dominou o rosto de Sócrates. Finalmente alguém sabia a verdadeira origem de seu nome. Vovô, percebendo a empatia entre os dois, desculpou-se e afastou-se, deixando-os a sós e retornando à biblioteca.

Sócrates e Sofia não se largaram mais durante o resto da noite. Por mais que tentassem, o jovem não deu atenção a mais nenhuma jovem nem aceitou nenhuma dança, a não ser com Sofia.
Invejas, fofocas, lágrimas de decepção e de raiva brotaram em diversos olhos, sentimentos negativos em vários corações. Ao ver suas filhas chorando a um canto, a tutora de Sofia indignou-se com o desrespeito desse rapaz mal educado que desprezara tão encantadoras jovens, dando atenção apenas àquela sujeitinha que ninguém sabia quem era e de onde vinha. Arrependeu-se de haver oferecido aquela festa, na qual investira tanto em favor das filhas. Mas o velho ia ver com ela. Com certeza ele estava por trás de tudo aquilo. Não fora ele quem a trouxera para a festa?!
Alheios a tudo, Sofia e Sócrates conversavam sobre tudo, mas, incrivelmente, quase não falaram sobre si mesmos. Tantas coisas a comentarem, livros a discutirem, viagens e locais extraordinários pelos quais passara e que Sofia conhecia a partir de suas leituras e sobre os quais perguntava detalhes como se já tivesse estado lá. Dançavam e conversavam. Na sala, conversavam. Na varanda, vendo a lua e as estrelas, e refrescando-se com suaves brisas da noite, conversavam. Quanta coisa em comum eles pareciam ter. A mesma cultura, os mesmos gostos, sonhos semelhantes... Sentiam que havia sido feitos um para o outro.
Sofia, que não estava acostumada com sapatos de salto alto, estava começando a sentir dor nos pés. Sócrates, percebendo o incômodo, abaixou-se e tirou os sapatos de Sofia, deixando-a mais à vontade ali na varanda.
Quase meia-noite, a governanta aproximou-se de Sofia e estacou sem fôlego ao ver a transformação da jovem. Chegando ao seu ouvido, disse-lhe que a patroa estava enraivecida e procurava por ela em toda parte, prometendo castigá-la.
Sofia desesperou-se, desculpou-se rapidamente com Sócrates e saiu correndo para dentro de casa. O rapaz tentou ir atrás, mas a governanta o impediu entre lágrimas, dizendo que era melhor assim.
— Mas ela nem me deu o número do telefone dela ou o e-mail. Onde posso encontrá-la?
Disse isso olhando na direção para onde Sofia havia ido. Mas ao voltar-se para a senhora que a chamara, ela já não estava mais ali.

Sofia subiu rapidamente para o seu quarto, trocou a roupa, lavou o rosto, colocou a touca nos cabelos e desceu para a cozinha. Estava lavando a louça, quando a sua tutora entrou.
— Então você está aí, não é mesmo, sua irresponsável?! Onde esteve, que eu a estava procurando e não achei?! Metendo seu nariz na festa dos outros, não é?
Sem saber o que dizer, Sofia respondeu:
— Perdão, senhora, mas a festa parecia tão linda... a senhora a organizou tão bem, que não resisti a dar uma olhadinha e perdi a noção do tempo... Está uma festa maravilhosa... parabéns...
A expressão de ódio no rosto da mulher não se atenuou em nada, ao contrário, pareceu acentuar-se:
— Maravilhosa uma ova!!!! Está horrível! Não saiu nada como eu esperava! O velho acabou com tudo o que eu preparei... todos os meus sonhos... tudo por causa de uma vadiazinha que ele trouxe não sei de onde. Mas eles vão se ver comigo, ah, se vão!!!
E saiu furibunda da cozinha, esquecendo-se até mesmo de castigar Sofia.

Ao final da tarde do dia seguinte, Sofia estava guardando parte da louça utilizada na festa da noite anterior, quando a governanta entrou esbaforida na cozinha, cochichando ao seu ouvido: “O rapaz da festa de ontem está aí na sala com a patroa.”
O coração de Sofia quase saiu pela boca, ao saber que Sócrates estava na casa. Não parara de pensar nele um só instante e mal dormira à noite lembrando-se do que sentira e do que conversaram.
Sofia correu em direção à sala e escondeu-se atrás de uma coluna, para ouvir o que sua tutora e Sócrates estavam conversando.
— ... mas ele disse que era neta dele! — foi o final da frase que Sofia ouviu Sócrates dizer.
A tutora, procurando manter uma simpatia que talvez revertesse a situação criada na festa, falou ao rapaz:
— Meu jovem, o meu sogro, infelizmente, está muito idoso e já não está no domínio total de suas faculdades mentais. Como nós o amamos muito e cultivamos os mais nobres valores humanos, que eu sempre procurei passar paras as minhas encantadoras filhas, que você teve a oportunidade de conhecer ontem, mas vocês infelizmente foram separados por aquela jovem sem eira nem beira que apareceu Deus sabe de onde... nós o amamos muito e, na sua situação mental, precisaria ser internado num asilo, mas minhas filhas, as únicas netas que ele tem, são terminantemente contra isso. Meninas maravilhosas, de um coração de ouro, que fariam qualquer homem feliz. Esqueça essa jovem que ninguém conhece e que você nem sabe dizer onde mora. Espere que vou chamar as minhas filhas. Conversem bastante e você descobrirá duas jóias raras.
— Não, senhora, por favor! — apressou-se em dizer o rapaz, lembrando-se das futilidades que elas lhe haviam dito enquanto estavam juntos. Eu não vim procurar suas filhas, vim procurar Sofia.
O rosto da senhora endureceu-se como pedra.
— Sofia?! Que Sofia?! Do que você está falando?!
— Sofia é o nome da jovem que eu conheci ontem na festa. Por isso vim até aqui, pois a senhora deve ter o endereço dela, afinal foi a senhora quem convidou todas as pessoas que estavam presentes.
— Não convidei nenhum Sofia. Não conheço nenhuma Sofia, a não ser...
A mulher parou de falar. Não, não era possível! A empregadinha nunca conquistaria um jovem tão rico, culto e viajado como Sócrates. Além do fato de a moça da noite anterior ser lindíssima.
— A não ser quem?! — quis saber o rapaz.
— Ninguém... ninguém... talvez essa jovem que você conheceu nem exista, tenha sido um sonho que você teve durante a noite. As únicas jovens encantadoras que você conheceu foram as minhas filhas. Se quiser...
— Não, por favor! — mais uma vez disse o rapaz, cortando pela raiz a infeliz idéia da mulher —. Eu estou procurando Sofia e ela não é um sonho. Um sono não deixa um par de sapatos como este que ela esqueceu na varanda de sua casa.
Sofia, ouvindo tudo isso, estava desesperada, pois não sabia o que fazer. Como podia apresentar-se a Sócrates, sendo empregada e vestida como empregada. Uma mão tocou-lhe o ombro nesse instante, dando-lhe um susto imenso que a fez estremecer toda. Atrás de Sofia estava a governanta, com o vestido negro da noite anterior em suas mãos.
— Entre ali no lavabo e ponha essa roupa rapidamente — disse-lhe a governanta.
Num impulso, Sofia entrou no lavabo, retirou seu uniforme e vestiu o traje da festa. Nem percebeu que estava ainda com a touca na cabeça. Saiu do lavabo e encontrou a tutora ainda tentando convencer Sócrates a conhecer mais a fundo suas filhas. Sofia chamou pela tutora:
— Senhora?
A mulher voltou-se indignada por reconhecer a voz de Sofia e ser interrompida por ela.
— O que você deseja, menina impertinente?! — disse, voltando-se para Sofia e estacando ao vê-la com o vestido negro.
Seus olhos arregalaram-se de espanto. A governanta aproximou-se por trás de Sofia, tirou-lhe a touca e ajeitou-lhe os cabelos. Sócrates abriu um imenso sorriso e caminhou apressadamente em direção a Sofia.
— Sofia! — disse-lhe, tomando-a nos braços.
A tutora, não acreditando no que estava acontecendo e sentindo-se dentro de um pesadelo, soltou um grito de horror, que se espalhou por toda a casa:
— NÃO!!!
O grito atraiu os empregados, as duas filhas e Vovô. Todos apareceram assustados, querendo saber o que havia acontecido. Vovô foi o primeiro a compreender tudo, ao ver Sócrates abaixado, colocando os sapatos nos pés de Sofia. A tutora continuava a gritar.
— Não pode ser!!! Isso é ridículo! Um absurdo! Essa menina é minha empregada... não tem eira nem beira... é uma ignorante que nem chega aos pés das minhas filhas...
Olhando Sofia nos olhos, Sócrates disse:
— É a mulher mais encantadora e inteligente que eu jamais conheci.
Vovô aproximou-se
— E não é verdade, minha cara nora, que ela não tem eira nem beira. Afinal, ela é a herdeira de metade dos meus bens.
Três baques sucessivos foram ouvidos. Eram a tutora de Sofia e suas duas filhas que desmaiavam.

Creio não ser preciso contar tudo o mais que aconteceu. Os dois jovens apaixonados se casaram e passaram a lua de mel nos diversos locais pelos quais ele já passara e que Sofia conhecia dos livros. Visitaram cidades históricas e museus inumeráveis.
Instantes antes do casamento, Vovô aproximou-se de Sofia e disse-lhe:
— Minha querida, desejo a você toda a felicidade do mundo, pois você a merece. Lembre-se de que ela está sendo conseqüência de uma escolha que você fez na sua vida. Assim como eu fiz com você e o avô de seu noivo fez com ele, ajude outras pessoas a fazerem a escolha certa na vida.
A história de Sofia foi um verdadeiro conto de fadas. E como é mesmo que eles terminam...? Ah, lembrei: E FORAM FELIZES PARA SEMPRE!
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui