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Infanto_Juvenil-->VIGÍLIA -- 31/10/2005 - 14:48 (Nelson Ricardo Cândido dos Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A avó morreu. Ligaram agora há pouco do hospital para dar a notícia. Eu atendi o telefone; era a tia Berê; ela só perguntou quem estava falando e quando eu disse meu nome ela mandou chamar meu pai. Não disse nem oi ou qualquer palavra carinhosa como costuma fazer quando falo com ela ao telefone. Por essa mudança de seu tratamento comigo, senti que não vinha notícia boa por aí. Meu pai atendeu o telefone, Alô... sim,,, a que horas?... Está bem... sim, vamos sim... obrigado por avisar.
Não era preciso falar mais nada, mas ele falou, A vovó morreu. Vim para o meu quarto e comecei a tremer, não a chorar, mas a tremer, apesar da noite estar quente. Não sei porque reagi assim, talvez porque sempre me disseram que homem não chora e eu já sou quase um homem, ou talvez por ter sido muito chorão até o dia em que, aos doze anos, meu pai, ao invés de me consolar, disse, Você também só chora; parece uma manteiga derretida. Naquele dia tive vontade de fugir, sumir desta casa para nunca mais voltar. Na verdade, eu fugi. Logo após meu pai dizer isso, eu fiquei tão revoltado que saí de casa só com a roupa que estava usando. Meu desaparecimento seria um castigo por não me compreenderem. Fui até a esquina e não descobri nenhum lugar aonde ir; assim, dei meia volta, joguei o meu orgulho no lixo e voltei para casa sem que ninguém soubesse dos meus planos de fuga e castigo. Acho que junto com aquele orgulho devo ter jogado também no lixo o meu choro fácil.
A avó está morta e só o que consigo fazer é tremer e tremer, sem derramar uma só lágrima por ela, apesar da tristeza que sinto.
A morte é estranha. Ela transforma a pessoa que morreu em alguém feito só de qualidades boas, fazendo com que a gente esqueça seus defeitos. A avó já me deixou bravo várias vezes e não consigo lembrar as razões. Parece que essas razões foram apagadas da minha memória. Em compensação, as coisas boas que ela me fez e me ensinou estão vindo a todo instante à minha mente. E são essas coisas boas que estão como que me obrigando a escrever o que estou escrevendo agora. A avó morreu, nunca mais teremos a sua presença ao nosso lado e eu tenho medo de que as boas coisas que ela ensinou, ao menos para mim, desapareçam com o tempo. Acho que é por isso que eu escrevo: para manter a avó um pouco viva, assim como que reencarnada nas palavras.
Faz tempo que a avó estava morando com uma tia minha, mas ela morou muitos anos aqui em casa. Lembro-me dela preparando mingau ou banana amassada com aveia e me dando na boca em colheradas, quando eu era pequeno; ou sentada no sofá em frente à televisão, com a minha cabeça em suas pernas, acariciando-me os cabelos para eu dormir; cuidando das roseiras no jardim; costurando ou consertando as roupas, sempre com a lata antiga de biscoito onde guardava a tesoura, as linhas, as agulhas, o dedal, os botões. Ninguém podia mexer naquela lata, só ela, e, por isso, a lata era um objeto de certa forma proibido e tentador, pedindo a toda hora que eu a pegasse e abrisse, sozinho, escondido do olhar de todos, e descobrisse dentro um segredo que, naturalmente, não havia, a não ser na minha cabeça. Quando penso na lata proibida, acho que Adão sentia a mesma coisa que eu sempre que olhava para a maçã no Paraíso. Ele comeu a maçã, mas eu jamais abri escondido aquela lata que, provavelmente, agora que a avó morreu, vai parar na lata de lixo.
A avó morou muitos anos aqui em casa. Por vê-la todos os dias, todas as horas, eu não pensava na importância que ela tinha na minha vida. Eu só comecei a percebê-la de uma maneira diferente quando ela passou a conversar comigo sobre algumas coisas da vida, a me ensinar o que a vida lhe havia ensinado. Após a primeira conversa séria que tivemos, outras se seguiram e me ajudaram a organizar dentro de mim alguns sentimentos confusos que me deixavam inquieto. Após a primeira conversa séria que tivemos, descobri na avó uma amiga em quem podia confiar. Após a primeira conversa séria que tivemos, descobri que, apesar da grande diferença de idade entre nós, com sua compreensão ela se tornava jovem como eu e, com sua atenção, fazia-me sentir não uma criança dizendo coisas tolas mas um homem discutindo seus problemas.
Lembro-me até hoje da primeira conversa séria que tivemos.
Eu estava num canto da sala quando a avó se aproximou, Por que este meu netinho está tão quieto e triste, aí sentado? Olhei para ela e tentei forçar um sorriso, sem conseguir. A avó sentou-se ao meu lado, passou a mão nos meus cabelos, acarinhando-me, Você não quer me contar o que está te aborrecendo? Demorei ainda algum tempo a falar pois não estava conseguindo dizer nenhuma palavra. Sentia um nó na garganta que me faria chorar se dissesse alguma coisa. É que um aluno lá da escola morreu ontem, consegui dizer por fim. Era amigo seu?, perguntou-me a avó após algum silêncio, tentando talvez encontrar algo para me dizer. Não, vó, eu só conhecia ele do recreio. O que me deixa triste é lembrar que antes de ontem ele estava vivo e brincando, e hoje está morto, imóvel dentro de um caixão debaixo da terra e sendo comido pelos bichos. Eu fico pensando em mim, em tantos planos que tenho para o futuro e que quero realizar, e pergunto: e se fosse eu que tivesse morrido? A morte é muito triste, vó, e eu tenho medo dela. Eu acho que a senhora não entende este meu medo porque a senhora é muito sábia.
Ainda me afagando os cabelos, a avó sorriu e olhou-me com certo espanto, procurando entender o que eu havia dito por último. Sábia? Quem te disse que sou sábia?; Foi a minha professora, vó. Eu disse pra ela que estava com medo da morte e ela falou que isto acontecia porque eu sou muito jovem ainda e que quando eu for velho e tiver tido muitas experiências na vida não terei mais medo da morte porque vou ter adquirido a sabedoria que só os velhos têm.
Dando um suspiro, a avó baixou os olhos para o chão, refletindo sobre o que eu havia acabado de dizer. Talvez sua professora esteja certa e eu seja realmente sábia. Hoje eu sei muito mais sobre a vida do que quando era jovem. Com a experiência de hoje eu não cometeria muitos erros que cometi no passado. Entretanto, eu desconheço a morte. Imagino o que seja ela, tenho esperança de continuar a existir mesmo após ela vir me buscar e é esta esperança que me ajuda a não ter mais medo. Quando você for mais velho e seus parentes e amigos tão queridos começarem a partir para o além, e você não puder mais vê-los e tocá-los ou conversar e divertir-se a seu lado, sentirá um vazio e uma saudade tão grandes e pensará no quanto seria bom estar com eles novamente, caminhar lado a lado como nos bons tempos. Aí a morte deixará de ser este monstro que agora te assusta e se transformará no único meio de reencontrar aquelas pessoas queridas que nos deixaram.
Aquelas palavras da avó mexeram realmente comigo, provavelmente porque eu estava muito sensível à idéia da morte, e, de uma certa forma, me confortaram um pouco. Pensei que minha professora estava certa, E isto não é sabedoria, vó? E ela, Meu querido, em relação à morte e aos mortos não sei se sou sábia ou simplesmente saudosa.
Se eu tivesse de estabelecer um momento preciso em que comecei a deixar de ser simplesmente uma criança, o momento seria o desta primeira conversa séria com a avó. A partir daí, deixei de apenas sentir a vida e passei também a pensar sobre ela.
Não era sempre que a avó e eu conversávamos. Ela tinha seus serviços e eu tinha a escola, a lição, as brincadeiras com os amigos. Na maioria das vezes em que ela falava comigo, era para me chamar a atenção, me corrigir, me pedir para fazer algo. Muitas vezes eu ficava bravo com ela, mas após nossa primeira conversa séria eu sabia que, no momento em que precisasse, em que tivesse qualquer dúvida ou medo, eu poderia procurá-la.
Havia uma tia que vinha até nossa casa de vez em quando e que era muito religiosa. Ia à missa todos os dias às seis da tarde e sempre que me encontrava, me dava lições para eu ser um homem bom e justo. Apesar de ainda ser uma criança, eu já tinha minha idéia de para que serviria a religião, e ela deveria servir para ajudar as pessoas, para consolá-las, para deixá-las tranqüilas. Só que, todas as vezes que a tia falava comigo de religião, eu ficava apavorado. Uma vez, fiquei toda uma noite sem dormir pensando na "danação eterna" por causa dos meus pecados. Uns dias antes da tia aparecer em casa, eu estava com vontade de tomar sorvete e não tinha dinheiro. Fui até a cantoneira do armário da cozinha, onde ficava guardado o troco das compras, e peguei escondido o dinheiro para o sorvete. Pelo que a tia me disse, eu ia arder no fogo do inferno por toda a eternidade porque havia roubado.
Quando o dia amanheceu e a avó acordou, fui conversar com ela, desesperado. A avó foi até o seu quarto e voltou trazendo um caderno. Eu também já tive este mesmo pavor que você está tendo, há muito tempo atrás. E para acabar com este medo, depois de pensar muito, escrevi uma história que vou ler para você e espero que ela te ajude como me ajudou.

Um pretenso suicida interrompeu seu derradeiro ato ao ouvir a voz do homem.
— O que você está fazendo?!
Indeciso e agarrando-se, talvez, à última esperança de vida que lhe restava, respondeu:
— Vou me matar... aliviar o sofrimento desta vida e cumprir o meu destino no Além.
— E qual você pensa ser seu destino no Além?
— A danação eterna!
— Não é destino muito cruel para alguém tão jovem? O que você fez de tão grave para merecer semelhante castigo?
— Matei! Eu matei um homem. Cometi um dos pecados capitais e devo, por isso, arder pela eternidade no fogo do inferno. Não é este o castigo dos pecadores?
— Quem te disse isso? — indagou, perplexo, o homem.
— Como “quem”?! Ora, todos sabemos; aprendemos desde pequenos na Igreja, no catecismo, nos livros religiosos e mesmo em casa.
Pensando por alguns momentos, o homem falou:
— Meu filho, isso é tão verdade quanto a certeza de se ir para o Céu comprando-se indulgências, como se fazia na Idade Média. Você acredita em Deus, não é mesmo?
Espantado com a pergunta, o jovem respondeu:
— Acredito, sim, e é por Ele ser justo que eu vou me danar pela eternidade. Ele disse para não matar e eu matei. Sua ira e Sua justiça deverão agir sobre mim agora.
Sorrindo um sorriso de discordância e de benevolência, o homem afirmou:
— Deus não tem ódio de Seus filhos, mas fará justiça. Prestou atenção a essa palavra — “justiça”? Você, tão jovem e imaturo, e talvez por essa razão tenha falhado e cometido um crime; você acha justo um ato realizado num instante de insanidade, um instante que é um ponto invisível no cronômetro da eternidade...; um ato do qual você parece estar profundamente arrependido de ter cometido...; você acha justo ser castigado com a danação eterna? Isso não me parece justiça, e Deus É justo. Pense no que eu te disse, julgue por si e tome a atitude que julgar mais correta.
Dizendo isso, o homem virou-se e seguiu seu caminho.
O jovem recuou da beira da ponte e partiu para a vida.

Naquela noite, dormi tranqüila e pesadamente. O fantasma da danação eterna havia partido. A avó, mais uma vez, me ajudou a enfrentar um problema, me confortou e me ensinou, mesmo sem o saber, a importância da literatura. Até então, a literatura sempre tinha estado relacionada à escola; a professora afirmava sempre que a literatura deveria dar prazer a todos os que lessem; para mim, era uma obrigação chata e sem sentido. Ouvindo a história da avó e sentindo em mim o seu efeito, como ela o havia sentido quando a escreveu, percebi que a literatura me permitia experimentar coisas e sensações que iam além das coisas e sensações que eu podia experimentar na vida que eu levava. Enquanto a avó falava, eu era aquele homem no parapeito da ponte. Eu sentia o que ele estava sentindo e as palavras do outro homem haviam sido ditas diretamente a mim. Acho que a literatura é um pouco mágica, fazendo a gente se transformar em outras pessoas, viajar por lugares e tempos distantes, viver as mais diferentes experiências sem levantar da poltrona onde estamos sentados, lendo. Ler é outra forma de viver.
Eu pedi o caderno da avó emprestado e copiei a história. Dobrei a folha copiada, coloquei num envelope e levei de presente pra tia. Ela abriu e começou a ler. À medida que lia, seu rosto foi ficando vermelho. Quando terminou, dobrou a folha, colocou no bolso, olhou pra mim sem dizer nada e saiu da sala. Da cozinha, ouvi sua voz dizendo para alguém, Esse menino está esperto demais pro meu gosto. O fato é que nunca mais ela me procurou para dar suas lições de moral religiosa.
Essa mesma tia, em outra ocasião, permitiu que a avó me ensinasse algo sobre a diferença entre falar e fazer. Há pessoas que falam muito em fazer o bem, dão esmolas aos pobres por ser um ato rápido e fácil, que lhes aliviam a consciência. Mas um ato real de bondade, de “consideração humana”, como me disse a avó, é mais difícil. A avó me disse que, infelizmente, as pessoas não estão acostumadas a FAZER coisas boas — para os outros, é claro!
Há um tempo atrás, o marido de uma cunhada dessa tia faleceu. Como era um homem muito pobre — e por esta razão havia se distanciado de nossa família —, não tinha onde ser enterrado. Alguns parentes procuraram a tia para pedir-lhe que o enterrasse no túmulo de nossa família. Ela, a beata que freqüentemente ia à missa e me dava lição de moral, foi terminantemente contra o enterro ali, Onde já se viu misturá-lo com nossos parentes?!
Uma amiga dela, que por acaso estava visitando a tia, ao ouvir aquilo, ofereceu-se prontamente para enterrar o defunto no jazigo de sua família. Você está ficando louca?!, disse-lhe a tia. Você nem conhece o homem e vai enterrá-lo junto aos seus mortos queridos?! Você deve estar ficando velha e louca! Essa amiga suspirou fundo — quando me contaram essa história, pensei que ela suspirou para não soltar um palavrão pra tia, que bem o merecia — e falou, Não conheço e nem preciso conhecer. É um ser humano como todos nós e que merece um enterro descente. Há espaço de sobra no túmulo da minha família e não creio que os meus mortos farão qualquer objeção.
A avós, ao saber da atitude da ti, ficou indignada. Eu também fiquei e não conseguia entender a tia. A avó me disse, depois, que, na verdade, muitas pessoas agiam igual à tia e poucas igual à amiga, e contou-me uma história que ilustrava isso.

Um pobre cavalo tinha sido tão maltratado e explorado por seu dono que, certo dia, caiu morto em plena rua. O homem sem compaixão desatou os nós que prendiam sua carroça ao cavalo e saiu blasfemando contra o animal, deixando-o estendido no mesmo local em que caíra.
As pessoas que passavam, olhavam curiosamente para o cavalo morto, mas sem tomarem nenhuma providência. Os dias também foram passando e a carcaça do animal foi entrando em decomposição, atraindo inúmeros insetos e exalando forte odor.
Homens, mulheres e crianças, enojados pela cena, desviavam seus olhares e teciam os mais diversos comentários.
Um filantropo, alterando seu caminho para evitar o local, exclamou:
— Oh, mas que cheiro horrível! — e partiu.
Uma beata, voltando da Igreja após suas orações diárias, disse, inconformada:
— Como Deus pode permitir que uma cena dessas se apresente aos nossos olhos?! — e também partiu.
E assim, outras tantas pessoas pelo pobre animal passaram e lá o deixaram.
Um homem humilde, que por sua roupa deixava transparecer toda a sua simplicidade, ao avistar o animal, exclamou:
— Era um bom animal. Que belos dentes ele tinha!
Sozinho, fez uma cova num terreno baldio próximo, onde enterrou o cavalo.
Os indivíduos que presenciaram essa atitude, olhavam espantados para o homem. Alguém, ao vê-lo seguir seu caminho, ainda falou:
— Coitado, deve ser louco!

E, como aquelas que observaram o pobre homem, assim parecem ser as pessoas, que mais falam do que agem. Há um ditado que diz: Falar é fácil, difícil é fazer. Até hoje eu não entendo uma atitude assim. Se as pessoas não querem fazer, porque ensinam que deve ser assim? Isso deve ser a tal “hipocrisia do ser humano”, da qual ouvi falar e não entendi o que era. Relembrando esta passagem e esta história que a avó me contou, começo a entender.
Ah, vó, que pena que a senhora se foi! Quanta coisa a senhora me ensinou! Quanta coisa eu tinha ainda para aprender!
Lembra, vó, quando eu achei que estava apaixonado? Gozado! Com a senhora eu conseguia demonstrar alguns sentimentos que normalmente eu procurava esconder, talvez por vergonha, talvez porque o pai, apesar de eu sentir o seu amor, não fosse muito efusivo e eu tinha ficado igual, ou seja lá o porquê.
Certo dia, eu estava deitado na rede estendida na varanda, o olhar voltado para o céu e o pensamento para o infinito. Sem me virar, perguntei pra avó, que lia, sentada em uma poltrona próxima, Vó, o que é o amor?
Ela baixou os óculos até a ponta do nariz e, por sobre eles, olhou-me. Senti seu olhar e voltei-me para ela, notando em seu rosto uma expressão de... dúvida?! seria dúvida ou espanto?, Por que você quer saber? Alguém especial está mexendo com você?; Não sei, vó. Tem realmente uma menina da minha classe que tem me chamado a atenção, mas eu não tenho certeza se é amor... a senhora entende?... por isso queria saber...; É difícil, meu bem, explicar o que é o amor, porque amor é sentimento, é emoção, e estas coisas são impossíveis de serem traduzidas em palavras. Eu só posso te assegurar que, se for amor, você saberá.
Sentei-me na rede e, olhando a avó de frente, pedi, E não dá pra senhora ao menos tentar descrever como é? ... por favor?! A avó sorriu, fechou o livro e tirou os óculos, Você me coloca em cada situação, menino, com essas suas perguntas! Não superestime sua avó, pois ela não é uma enciclopédia e não sabe tudo; portanto, não espere respostas para todas as suas dúvidas, porque minha ignorância é muito maior que o meu conhecimento.; Eu não concordo! Acho a senhora muito inteligente. A avó mandou-me um beijo e, Bem, querido, nós não estávamos falando de mim, mas de outro assunto, a amor. Como eu disse, o amor é emoção, é sentimento. Dizem que existem várias formas de amor: o de um homem por uma mulher; o de uma mãe pelo seu filho; o de um amigo pelo outro; o de um ser humano por uma planta, por um animal, uma casa, um carro, um quadro, um livro, enfim, qualquer coisa. Eu já acho que tudo não passa de uma única espécie de amor, pois tudo isso é coisas a que queremos bem e nos despertam emoções.; Então, vó, tudo aquilo de que gostamos e nos provocam sentimento, qualquer que seja ele, é amor?; Sim, tudo. Veja você, que gosta muito de animais e encontra um lindo gatinho na rua e se enternece. Naquele momento, você o está amando, porque ele despertou em você um bom sentimento, o que não quer dizer que exista apego seu em relação a ele. O apego surge de acordo com a intensidade e a constância desse amor. Você compreendeu?
Fiquei pensativo um bom, tempo e, depois, concluí, Puxa, vó, isso é lindo! Vendo o amor por esse ângulo,a gente percebe que ele está em todo lugar, nas mínimas coisas. É algo bem próximo de nós e não como lemos nos livros, um sentimento tão forte que pensamos jamais poder senti-lo.
Eu fiquei tão empolgado com aquilo que, pulando da rede, abracei a avó, beijei-a e disse, Eu te amo muito, vó!
Mas a verdade é que, apesar de acreditar que o amor esteja nas mínimas coisas, está cada vez mais difícil de encontrá-lo no dia-a-dia. Parece que as pessoas têm vergonha de demonstrar que amam, seja lá o que for. Talvez por isso o mundo tenha tanta luta, tanta guerra, tanta violência, tanto sofrimento, tanta tristeza.
Acho que se as pessoas demonstrassem um pouco mais os seus bons sentimentos, só um pouquinho mesmo, o mundo ficaria bem melhor para todos nós e nós nos sentiríamos mais felizes.
Felizes... felicidade...
Isto me lembra uma história que a avó me contou.
Agora penso na quantidade de histórias que ouvi da avó. Quando eu era pequeno, ela me contava aquelas histórias de fadas: Cinderela, Branca de Neve e os sete anões, Os três porquinhos, Chapeuzinho Vermelho, João e o pé de feijão, e tantas mais. Uma vez ouvi dizer que existe uma história para cada época de nossa vida e é por isso que num momento gostamos mais de uma do que de outra, e em outro, gostamos mais da outra do que de uma. Mas havia também as histórias que a avó contava e que eu nunca ouvi de mais ninguém, só dela. Será que ela inventava as histórias, como tinha inventado aquela do suicida? Puxa, vai ver a avó podia ter sido uma grande escritora e não foi!
A história que eu lembrei agora foi contada pela avó, porque eu tinha ida na casa de um primo muito rico, que tinha tantos brinquedos, que acabou me deixando com inveja. Todos os brinquedos que eu podia imaginar e desejar ele os tinha.
Quando eu voltei para casa, a avó percebeu que eu estava triste. O passeio na casa do seu primo não foi bom?; Foi, vó.; E por que você está triste? Apesar de não ter vontade de falar nada, ela tanto insistiu que acabei dizendo. Ela então me contou que, apesar de todos os brinquedos e de todo o dinheiro, meu primo era infeliz. Os meus tios viviam brigando e meu primo não recebia amor como eu. Os pais procuravam compensar os problemas da família com dinheiro, mas dinheiro compra tudo, menos o amor e a real felicidade. Você conhece a história do rei que quis premiar o homem mais feliz do seu reino?; Não, vó...; A história é assim...

Um rei, certo dia, resolveu premiar o cidadão mais feliz de seu reino com uma medalha de ouro. Ordenou, então, a todos os seus ministros que fossem aos palácios e mansões mais suntuosos entrevistar seus proprietários a fim de descobrir o merecedor de tão singular premiação.
Obedecendo às ordens reais, todos os ministros retiraram-se do paço, certos de logo concluírem a tarefa.
Um mês depois, o rei mandou chamá-los, pois se preocupava com o fato de ainda não lhe terem trazido o indivíduo que faria jus à honraria. Um a um, os ministros narraram suas infrutíferas buscas nas mais esplendorosas propriedades do reino, onde a tristeza fazia-se presente, apesar das fortunas acumuladas.
Irado, o rei determinou que trouxessem à sua presença, até as 12 horas do dia seguinte, o cidadão mais feliz do reino, caso contrário todos seriam demitidos e castigados severamente, por serem incapazes de solucionar um problema, a seu ver, tão simples.
Novamente os ministro partiram mas, desta vez, cabisbaixos, certos do resultado insatisfatório das buscas.
Na manhã seguinte, um edital do reio convocou todos os súditos para a grande festa. Ao meio-dia, todos reunidos na praça em frente ao palácio-real, os ministros começaram a chegar, sem terem encontrado o ganhador da medalha. O rei, nervoso, já se preparava para assinar as demissões, quando chegou o último ministro acompanhado por um mendigo.
O rei gritou, vermelho de raiva:
— Senhor Ministro, mas o que significa isto?!
O ministro, sorrindo, pegou o mendigo pelo braço e disse:
— Majestade, após muitas pesquisas, concluí que este mendigo é o vosso súdito mais feliz!
— Mas isto não é possível! — exclamou o rei. Eu conheço este homem. Não possui bem algum, nem sequer um teto onde se abrigar. Por várias vezes mandei afastá-lo da proximidade de meu palácio e de meus jardins, porque sua presença atrapalhava a beleza da minha propriedade. Como pode ele ser feliz?
— Pois assim é, Majestade! — afirmou o ministro. Este indivíduo desprovido de todos os bens terrenos é plenamente feliz. E se esta surpresa ainda não bastasse, saiba que ele se nega a aceitar a medalha de ouro.
Um murmúrio de espanto e incredulidade fez-se ouvir entre a multidão.
— Nega-se?! — indagaram, uníssonos, todos os presentes.
— Sim, nega-se por não ter uma camisa onde colocar a medalha.
Diante dos olhares estupefatos do rei e dos ministros, o mendigo deixou o palácio, pensando consigo: “Pobres infelizes! Quantas preocupações banais a infernizar-lhes a existência!”
E seguiu seu caminho, feliz.

Lembro-me que, depois de conversar com a avó e ouvir esta história, fiquei com pena do meu primo e convidei-o para vir aqui em casa. Brincamos muito e nunca o vi tão feliz como aqui. Só que sua mãe não deixou que ele voltasse mais vezes e ele continuou em sua casa, cercado por centenas de brinquedos, sozinho.
Uma das últimas lições que a avó me deu, deu-a sem saber.
A avó já estava no hospital, muito doente. Um dia, fui visitá-la e entrei em seu quarto semi-escuro, num momento em que todos estavam no corredor , conversando. A avó dormia.
Fiquei olhando para ela por um longo tempo, lembrando do tempo nem tão distante, antes de se mudar para a casa de outra filha, em que ela estava saudável e forte, morando lá em casa, vivendo conosco, ensinando-me tudo o que me ensinou.
E agora, lá estava ela, doente e fraca, sofrendo muito.
Eu ainda estava olhando para ela, quando seus olhos se abriram, arregalados. Vó?, chamei, a senhora está bem? Ela não respondeu. Sua respiração foi ficando ofegante. Cada aspiração mais intensa. Os olhos ficaram esbugalhados, girando como se procurassem algo com enorme aflição. A avó estava tendo uma crise. O médico já havia previsto crises que poderiam matá-la, se não fosse socorrida imediatamente.
Vó?!, chamei novamente, segurando-a com as duas mãos.
Fiquei desesperado, ali sozinho. Soltei a avó e virei-me em direção à porta, dizendo, Vó, fica calma que eu vou chamar o médico. Antes de chegar à porta, parei. Em poucos segundos, milhares de idéias e imagens passaram pela minha cabeça. Eu me coloquei no lugar da avó e conclui que, se eu fosse ela, preferiria morrer agora do que prolongar a agonia por mais tempo.
Sentei-me ao pé da cama e orei. Um tremor passou a dominar meu corpo e, como sempre, não consegui controlá-lo. Mas uma estranha força me deteve e uma espécie de voz gritou dentro de mim, Você preferiria morrer, é uma opinião sua. E sua avó? Será que ela também preferiria? Que direito tem você de decidir sobre a vida dela?
Olhei pros olhos da avó e senti neles uma expressão de súplica. Levantei, corri pra porta e gritei por socorro. Um médico apareceu e socorreu a avó. Graças a Deus não foi desta vez!, disse o médico aos nossos parentes, ao se retirar.
Algum tempo depois, fomos para casa, mas voltei no dia seguinte. Quando entrei no quarto, a avós estava acordada e lúcida. Conversamos muito tempo e, quando comentamos a crise da noite anterior, ela exclamou, Que bom, meu neto, que ainda estou com vocês!
A avó não compreendeu exatamente o motivo do meu silêncio ao ouvir estas palavras.
Ontem também fui visitá-la. Durante toda a visita eu não disse nada. Fiquei sentado na cama ao lado da dela, tentando controlar o tremor no meu corpo, o mesmo tremor que tive ao saber de sua morte. Na hora de vir embora, dei-lhe um beijo e disse, Fica boa logo, viu, vó? Ela sorriu e respondeu que já era hora de virar borboleta. Virar borboleta, vó?! O que é isso?!; Você lembra, meu bem, daquela lagarta que uma vez encontramos no jardim lá de casa? Fiz que sim com a cabeça. Todo dia nós íamos ao jardim e lá estava ela. Com um mundo tão grande, devido à sua limitação física, o seu mundo ficava restrito àquele pequeno jardim. Você se lembra que ela teceu um casulo à sua volta e, depois de um tempo saiu de dentro do casulo transformada numa linda borboleta? Bateu asas em volta do jardim, pousou em algumas plantas como se estivesse se despedindo e, então, ganhou o mundo. Eu também, até agora, fui uma lagarta. Fiz muita coisa, não tudo o que queria, pois havia uma série de restrições sociais e econômicas que podaram muitos dos meus sonhos. Mas na medida do possível, fiz tudo o que estava ao meu alcance e fui feliz. E agora o meu espírito sairá livre como a borboleta do nosso jardim. Naquele instante, senti que a estava perdendo para sempre e, não querendo isso, supliquei, Eu também quero ser borboleta, vó! Quero voar junto com a senhora! A avó passou a mão suavemente em meu rosto e falou, Não, meu querido, ainda não é a sua hora. Você, para se transformar em borboleta, tem de primeiro viver como lagarta. É a lei natural da vida. Mas, enquanto for lagarta, conheça ao máximo o teu jardinzinho. Não tenha preguiça, pela distância, de passar de uma planta para outra. Agora vá. Minha lagartinha, que a vovó precisa descansar.; Tchau, vó!; Adeus, meu querido!
Não tornei a ver a avó com vida.
A avó morreu e eu estou aqui em meu quarto, sozinho, escrevendo durante toda a noite, relembrando tudo o que consigo, para jamais esquecê-la.
O dia já está amanhecendo e estou escutando barulhos pela casa. Já devem estar se arrumando para o enterro.

***********************

Parei de escrever um pouco e fui até a cozinha preparar um chá para mim.
Coloquei a água pra esquentar. A água ferveu, eu desliguei o fogo, peguei uma colher, despejei um pouco de chá na água e fiquei observando aquelas centenas de pedacinhos de folhas soltando a cor e o aroma na água, manchando-a aos poucos, transformando-a, então, em chá.
Pensei na avó, em nossas conversas e em mim. Eu era aquela água que as conversas com a avó aos poucos foram mudando, até transformar-me no que sou hoje.
Coei o chá, coloquei numa xícara, Ergui a xícara como num brinde, pensando, A você, vó. Descanse em paz e obrigado.
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