MANHÃ DE FíGADO RUIM
Pablo Emmanuel
Marquei um ponto com P. na altura da 303 Norte para entregar-lhe alguns documentos. Na debandada, fui ao consultório da minha ortopedista de maxilares. O Estado vai me restituir isto aí, não quero nem saber.
Não era só isso, é claro.
O sinal ficou vermelho, ali perto dos estúdios da Rede Globo. Mas, eu ainda tinha de pagar a sacanagem de um DARF que recebi por causa de uma conta bancária antiga, creio eu, que pensava tê-la extinto em definitivo.
Um DARF. Se foi da conta, a Receita, ao invés de me avisar logo na época para eu saldar o débito, esperou mais de 9 anos para que uns centavos e uns reaizinhos fossem lançados devagar, com o intento obscuro de cobrar-me tudo de uma vez só (de grão em grão....).
Parece-me isto qualquer coisa semelhante aos macabros procedimentos que K. enfrentou durante todo a história que lemos em "O Processo", do Kafka.
Antes que o nome da gente vá para a dívida ativa, é melhor nem questionar, mas pagar de uma vez. Afinal, a sensação ininterrupta que eu tenho é a de ser sempre devedor, num ambiente selvagem em que todos querem ser credores de todos, distribuir culpas, ameaçar de execução judicial e física, imprimir cifras e protestar e não sei mais o quê.
"Você me deve algo!" - exclama o espírito-de-porco, ou melhor dizendo, o "porco espiritualizado", eis a expressão correta.
A razão de ser do homem é a economia. Se ela não existir, a humanidade não tem mais motivo. Cairá no vácuo. E depois algumas pessoas vêm afirmar que fomos criados por um ente superior.
Talvez sim, talvez não. Mas à sua imagem e semelhança? Deus não teria sido tão ocioso e fútil para tanto, a não ser que estivesse padecendo de um marasmo tão insuportável no meio do universo, a ponto de determinar a existência do ser humano apenas para ser amado. Isto não seria uma vaidade? Nós, um produto do tédio? Um Deus vaidoso, então?
Se eu fosse Deus, e se me sentisse sozinho, eu também teria criado alguém para me amar, desde que (e somente se) eu também pudesse corresponder.
Eu já acordara mesmo deprimido nesta manhã. Uma dose a mais, ou a menos, tem o mesmo efeito.
Sinal verde, primeira marcha. E pensei:
"Acho que está na hora de fazer essa merda de vida valer a pena".
Mais um retorno e mais outro, e estou no Hemocentro de Brasília.
De posse das informações que eu tanto precisava, na semana que vem deixarei ali meu suco-de-vampiro, mesmo contaminado por cortisol, adrenalina e cloridratos vários, para fazer parte do cadastro nacional de doadores de medula óssea, talvez o único cadastro verdadeiramente bom.
É a minha cota de sangue para o país, que não vou mudar e nem vou ver mudado. Tomara que ela salve alguma boa alma desta boa terra, em qualquer lugar do Brasil. É minha esperança
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