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Humor-->Estórias de Propagandistas -- 27/08/2006 - 09:06 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A Velha Pasta de Amostras


A você, que encontrar uma velha pasta
Coberta de folhas e musgo
Nalgum canto da floresta
Autorizo: pode abrí-la!
Vai encontrar bulas rasgadas
E alguma amostra vencida.
Procure devagarinho
Que vai encontrar certamente
Uma carta que deixei escrita
Pode ler e contar a todos.
Falo da mulher e dos filhos
Que amei, e do meu jeito eduquei.
Visitei os médicos que consegui
Tive chefes que não escolhi.
Encontrará nesta pasta
Um pouco do resto de mim.
Meu corpo? Não procure
Nem vasculhe a floresta... desista!
Não tenho mais corpo, só uma coisa me resta:
Alma de Propagandista...






Quem se Lembra Deles?


Vou buscar na memória e relembrar de alguns farmacêuticos e médicos mais importantes do meu tempo. Com clínicas e drogarias estratégicas, aproveitavam o sucesso e o orgulho passageiro para temperar em fogo brando a nossa paciência. Mas, sem eles, como cobrir as cotas? Aqui estão eles: em Cruzeiro havia o Faury, que aceitava as duplicatas dando tiros de trinta e oito; o Zé Penicilina, que comprava bem, mas pagava mal; o Batista dizia que era eternamente grato aos propagandistas mas dava um chá de cadeira legal; a dona Albertina, que era poetisa e (que pena!), ninguém de nós sabia.
Em Cachoeira Paulista havia três farmácias, mas somadas não valiam uma. Havia na cidade o Dr. Darwim, tímido e boníssimo, que se escondia atrás da porta para fugir do propagandista, mas a gente tinha pressa e metia a cara. Em Piquete havia o Joãozinho, que tinha verdadeira ojeriza por amostra-grátis. Em Lorena havia o Bilu, o Edmundo, o Joel, o seu José e outros Ivos. Alguns eram comunistas e viviam fugindo da polícia. Lembro-me do Dr.Getúio, o seu consultório era mofado, usava barbas longas e brancas, tinha mãos macias de veludo, era carismático como Fidel, a nos dizer sempre, a cada visita: “Estou aqui, meu filho, esperando a morte..."
Em Guaratinguetá havia o Guilherme, chamado também de “homem feito a canivete” pelos propagandistas, pelo fato de ser "mal acabado"; o Sarraipo tinha enormes orelhas de abano e se julgava muito culto. Assinava os cheques com uma assinatura fantástica, em forma de borboleta. Era tão fantástica que o banco não a reconhecia e devolvia o cheque. O Serapião só nos comprava míseros pedidos após uma rodada de “porrinha” na qual tinha que ganhar sempre, caso contrário, nada de pedido! O homem ainda se despedia dos vendedores, dizendo: "Caso não o veja mais, que seja por morte vossa!..."
Em Aparecida tinha muita gente boa. O Oswaldo Elache, o Alemão, o Tião, mas é preciso que seja dito: nenhum farmacêutico respeitou e tratou com maior respeito e gentileza a nós propagandistas do que o farmacêutico OSMOCA —Oswaldo Morais Castro, que era irmão do Dr. Paulo Guimarães Castro, também muito amável com todos nós. Estes nomes sagrados serão lembrados para sempre. Em Pindamonhangaba, havia o Paim e seu “factótum” Gordo, o Reynaldo Wolff Salgado, Bizinho e o senhor Delamare. Estes reinavam absolutos no pequeno trono das suas micro-drogarias e monopolizavam o comércio de medicamentos. Não esquecerei jamais do San Martin, um comprador maravilhoso. Se pudesse, e fosse possível, ele compraria apenas uma drágea ou somente meia gota!...
A maior concentração de médicos centenários por metro quadrado também ficava em Pindamonhangaba. Havia os doutores Lessa, Paulo D alessandro, George Heidushka, Kaio e Edimundo, cujas idades somadas chegavam fácil a mil anos. Em Campos do Jordão havia o Castorino, uma figura sem igual; o Kaku, lacônico e elegantíssimo. Os médicos de Campos do Jordão eram todos muito gentis. O pessoal só não gostava muito era do Dr. Rios, que atendia muito tarde, dava um chá de cadeira legal. O Dr. Além era amado por todos e quando fraturou a bacia, fizemos romaria até São José dos Campos para visitá-lo no hospital. Em São Bento do Sapucaí havia outro Sarraipo, igualmente culto e orelhudo, tal como o seu irmão, de Guaratinguetá. Detestava ouvir falar em amostra, tinha verdadeiro horror.
Em Taubaté havia o Wanordem, o Diaulas, o Julinho, o Rodolphinho, o Manoel Araujo, o Alaor, o Lélé, os Gonçalves; o Robertinho —corintiano fanático— e o seu fiel escudeiro Carlinhos; Taubaté era uma “curva-de-rio”. Nem é bom lembrar.
Em Caçapava havia o Pessoa Barros, o Adhemar P. Siqueira. A compradora do hospital era a dona Iolanda, rainha da enxaqueca. O senhor Pessoa Barros era coronel e sua farmácia mais parecia um “tiro ao alvo” de tão pouco estoque que tinha. Certo dia inaugurou uma filial na rua 7 de Setembro e estendeu uma faixa sobre a rua com os dizeres:“Aqui, mais uma filial das “Organizações Pessoa Barros Ltda”. Era apenas um outro “tiro ao alvo”.
Em São José dos Campos havia o Paulo Takahashi, que fazia o levantamento de estoque das prateleiras mais altas através de um prático espelhinho pregado em ângulo apropriado num cabo de vassoura. Havia o Saloni, o Mauro, o Álvaro, o Ribeiro, o Rui Barbosa, o Dito e seu irmão José, que usava um olho de vidro e por essa razão foi apelidado pelos propagandistas de Pirata. Havia o Dedinho. Este preenchia o cheque e empurrava a caneta com o dedinho da outra mão, fazendo justiça ao apelido. Dá pra esquecer?
Eis alguns médicos que marcaram aquele tempo: Dr. Maimone, cujo secretário era um rapaz, de nome Tupi, “nome de cachorro” segundo o João Macaco; O dr. Moisés era pediatra num dia, mas após fazer uma curta viajem de ônibus a São Paulo, retornou psiquiatra. O Doutor Froes era um pediatra simpaticíssimo que puxava o propagandista com bastante força na entrada, e depois o empurrava igualmente para a rua. No Litoral Norte havia o Filhinho, o Lafaiete, seu Homero, a dona Olimpia. Não posso esquecer do Ari em cuja drogaria, após muitas caipirinhas, e ele já mais que bêbado, cobríamos as nossas cotas com folga. Relembranças da escada rolante do tempo...



República Durango Kid


O nome diz e revela tudo, pois era ali que moravam os propagandistas “durangos” do Vale do Paraíba. Pela ordem: Osvaldo, o famoso Barriga de Bagre, João Macaco, Elon, José Wilson Hoffman, Carneiro, Dirceu e eu, este escriba. Estes eram os habitantes fixos da república. Havia os eventuais como o Mão de Onça, o Conde Fazanaro e um ou outro supervisor que preferia dormir ali a ficar na solidão dos hotéis de Taubaté. Apesar do esforço que se fazia para aparentar moralidade e manter as boas relações com a vizinhança, a “Durango Kid”, era na verdade uma mini-filial da bíblica Sodoma.
O Barriga de Bagre, quando chegava do Sul de Minas, trazia consigo uma loira, casada com um corno de Lorena, e só a devolvia na segunda-feira. O Hoffman era misterioso, preferia a intimidade dos motéis, pois Temia perder a mulher. O Carneiro sempre preferiu as gordinhas e queria privacidade, mas as portas dos quartos tinham mais furos do que peneira e tampar o buraco da fechadura era inútil. O João Macaco, que de bobo não tinha nada, sempre trazia a Amélia, mulher feia como o diabo, mas “apertadíssima”, justificava. felizmente a república “Durango Kid” foi anterior à Aids, porém conviveu soberana com chatos e gonorréia. Os chatos ali encontrados pareciam tracajás de tão grandes. O que acabou com a famosa república do Jardim Ana Emília, pasmem, foi o casamento. O casamento fez com a “Durango” o mesmo que a cólera fez com as tradicionais famílias da Europa, no século dezenove: DIZIMOU !
Primeiro, casou o Barriga de Bagre com a sua princesa, depois casei eu, depois o Macaco, a seguir o Hoffman. O Carneiro e o Dirceu foram para São Paulo e estão casados. Acredito que só uma instituição forte como o casamento teria poderes para acabar com a “Durango Kid” —uma espécie de bastilha dos propagandistas solteiros e talvez mais felizes do Vale do Paraíba.





Doutor Bassil, o Gentil


Gostava de um bom papo. Seu consultório era todo espelhado, um luxo só. Os propagandistas gostávamos de visitá-lo. Além de ele ter boa clínica, receitava rapidamente os novos lançamentos. Era alto, enorme, olhava para o propagandista com olhos de peixe morto. Sempre gostava de saber das fofocas. Ouvia tudo com atenção e interesse incomuns. Ouvia as minhas histórias e sorria, tudo muito discretamente. Como bom árabe, jamais passava para frente o que lhe contavam. Sempre que eu chegava, ele me dizia: “Você vai ter que me contar direito aquela história do Florista e o Jumento, que até hoje não engoli...’ Ele falava e sumia para dentro da clínica. Algum tempo depois voltava mais curioso e insistente. Queria ouvir a história. Eu contava, claro, porque precisava de receitas. O Florista tinha sido um velho habitante de Taubaté que passara a vida fazendo flores de papel, perfeitas aliás, para decorar filmes de famoso cinegrafista. O homem era um artista e fazia outras coisas. Coisas de que até Deus duvida...
Assim, no tempo em que as prefeituras retiravam o lixo das ruas com veículos puxados por animais, a administração de Taubaté tinha sua baia, onde os animais eram alojados e preparados para o serviço. Ali eram tratados com ração e muito carinho. Porém o Florista exagerou e foi visto sob o jumento Desprezo, cheio de amor para dar. Comentavam as más línguas que o Florista tarado chamava o jumento de "meu bem", mas aí já era demais e o doutor Bassil, claro, não acreditava na minha história, mas dava boas risadas e me receitava bastante. No mês seguinte era tudo igual. Eu tinha que repetir a história. Mas houve um fato novo, uma fofoca que estava rolando lá pelos lados de Cruzeiro que o doutor Bassil tinha ouvido, mas queria que eu lhe contasse em detalhes. Foi o seguinte. A esposa de um médico viajara e voltou de repente, surpreendendo o marido na cama, com o motorista da casa! Contei do jeito que também ouvira. Contei de novo e o doutor Bassil ficou só me ouvindo. Havia no seu rosto uma expressão de interesse e dúvida. De repente, me disse: “Mas este médico é muito burro, tinha que tomar mais cuidado, especialmente um...” “Mas que cuidado é esse, doutor Bassil?” —perguntei. E ele respondeu no ato: “Trancar a porta, meu filho, claro!...”
Depois desse dia, sempre que me via chegando, levantava o dedo e me alertava em tom de brincadeira: “Nunca deixe de trancar a porta, meu filho, nunca!...”




Meu Gerente Maluquinho


Meu melhor e mais competente gerente de vendas foi um "quase doido", mas nenhum outro me ensinou tantas coisas e lições positivas como ele. Seu nome era Sinésio Salles. Trabalhei com ele em dois laboratórios. No Lafi e no Wesley, ambos absorvidos por multinacionais. Quando o conheci, e disse que vinha de Taubaté, ele me declamou um verso improvisado, trazendo descontração ao nosso encontro: “Cavalo pangaré,
Mulher que mija em pé,
Homem de Taubaté...
Socorro, meu São José...”
Desse dia para frente foi só amizade e muito trabalho, um trabalho gostoso de executar. O Sinésio dava autonomia total ao GD, mas cobrava resultados. Os resultados vinham e se tornavam melhores a cada mês. Nas reuniões, defendia os propagandistas. Na matriz, pedia ao patrão os benefícios que melhoram a vida do "homem de campo". Usava argumentos irresistíveis como: “viajante, amante e bode: só tem quem pode...” e conseguia sempre um benefício a mais para sua equipe. Se algum propagandista o irritava, ia logo dizendo: "Cuidado comigo! Tenho fama de louco!". Um dia, um propagandista desavisado, retrucou numa reunião: " Não sei se o senhor já sabe, mas o melhor remédio para tratar um louco é outro louco com um porrete na mão..." O jovem até que tinha razão, mas não deu outra: perdeu o emprego assim mesmo...
Das coisas que me ensinou, a mais útil foi a teoria dos “5cs” da boa propaganda médica. Segundo ele, a propaganda que funciona tem que ser: Clara, Concisa, Consistente, Com Choro...
Havia ainda mais dois “cês“, Conhecer a Concorrência, mas isto era uma obrigação do propagandista que ele julgava desnecessário lembrar. O Sinésio era doido mas foi o melhor gerente que tive.




O Cardiologista de Aparecida do Tabuado

Os propagandistas tinham verdadeiro pavor de trabalhar em Aparecida do Tabuado. O hospital da cidade era precário e o único cardiologista que havia por lá era o doutor Arvelino, que clinicava mal e operava pior. Diziam que, de cada paciente que operava, morriam dois. Portanto, não era aconselhável ao propagandista ter problemas cardíacos naquela praça.
O Fabião era propaagandista do Carlo Erba e já tivera problemas vasculares. Estava com mais de cincoenta anos e só ia lá acompanhado. Sòzinho nunca, jamais!
O pensamento negativo parece que traz o azar. O Fabião chegou na temida praça e começou visitar os médicos mais difíceis. Queria terminar antes do almoço, mas não conseguiu. Sentiu-se mal. Começou a suar frio, uma dor no braço esquerdo, um formigamento e desabou. Removido para o hospital, foi socorrido exatamente pelo doutor ARVELINO!...
Foi medicado com Dolantina e Valium. Dormiu e acordou algumas horas depois completamente tonto, com muita confusão mental. A primeira pessoa que viu foi o doutor Arvelino, com sua barriga proeminente e seu manjado bigode amarelo de nicotina. Entre sombras e pensamentos desencontrados, o Fabião emitiu um longo e triste gemido, arrancado de suas últimas forças e temores: “Pelo amor de Deus, o Dr. Arvelino não!... Ele vai me matar...”
Ouviram o apelo do Fabião e o removeram para São José do Rio Preto,SP, onde foi salvo. Dias depois, bem disposto, foi visto comentando com alguns colegas: “O doutor Arvelino?... Prefiro mil vezes o Mengele, nunca mais volto naquela cidade!...” E realmente o Fabião cumpriu com a sua palavra. Aposentou-se sem nunca mais voltar a Aparecida do Tabuado...





O Estimulante do Apetite e o Elefante


Em São Sebastião, no Litoral Norte de SP, havia um casal de médicos muito simpáticos. Eram eles o doutor Álvaro e sua esposa Eliza. Ele era bem magrinho e ela gigantesca, devia pesar alguma coisa perto de cento e vinte quilos. A doutora era ginecologista e o marido pediatra. Os propagandistas visitavam os dois e deixavam as amostras de acordo com suas respectivas especialidades.
Um dia, chegou lá o João Macaco, propagandista do Frumtost, trazendo um novo estimulante do apetite. O tal estimulante, era o Carnivix, um medicamento que haveria de salvar as crianças do Brasil. Todas ficariam gordinhas e fortes, certamente. O que complicou foi a literatura do Carnivix, que trazia uma ilustração criativa onde um elefante (com olhos de felicidade), era literalmente saboreado, com aparente prazer, por um menino magrinho e faminto que teria tomado o Carnivix. O João Macaco abriu a literatura e disse as palavras fatais: “Doutor Álvaro, se o senhor quiser comer um elefante hoje, tome Carnivix...”
O doutor Álvaro, marido da obesa doutora Eliza, coçou a cabeça, olhou bem para os propagandistas que enchiam seu consultório e, como num lamento, disse: “Meu filho, não me faça esta proposta, já como elefante quase todos os dias!...” Rimos bastante do trocadilho, mas o João Macaco não entendeu a piada. Mais tarde, quando visitava a doutora, ainda passou recibo: “Doutora, não entendi. O doutor Álvaro é tão magrinho e acaba de me dizer que come um elefante por dia. Creio que ele está precisando é de tomar Carnivix, a senhora não acha?”
Não posso assegurar porque não vi, mas estou quase certo de que, por causa do Macaco, o doutor Álvaro passou por momentos difíceis quando chegou em casa...



Doutor Francisco Pinto de Souza


Durante muitos anos sua clínica de ginecologia foi a maior de Taubaté. A sala e o corredor estavam sempre lotados. Só deixava o consultório depois das dez horas da noite. Apesar de tanto trabalho, nunca o vi aborrecido. Atendia aos propagandistas com prazer e até com uma certa felicidade, pois aproveitava nossas visitas para tomar um cafèzinho e fumar um cigarro na copinha que tinha ao lado. Jamais deixou um propagandista esperar. A cliente saía por uma porta e o representante entrava pela outra. Saindo aquele, ainda que lhe tivesse tomado meia hora, mandava entrar outro. As clientes entravam em pânico. O doutor Francisco, sempre alegre, abria os braços: “Vem pra cá, vamos conversar!...” O propagandista indagava se tudo estava bem, e ele respondia longa e pausada- mente: “Tudo bem... tudo como manda o figurino!...” “Mas, doutor Francisco, seu consultório está cheio e já é tarde, se quiser passo amanhã...” “Não, meu filho, vamos conversar já!...” E rolava mais meia hora de gostoso papo. Parecia que nossas visitas lhe recarregavam as forças. Era um recíproco prazer visitá-lo.
O doutor Francisco jamais cobrou uma consulta, pré-natal ou parto, de uma esposa de propagandista. Um dia ficou doente, com hepatite, e se ausentou do consultório. Tinha que ficar de repouso por uns quarenta dias e foi para sua chácara na estrada de Tremembé. Nesses casos, normalmente, quando o médico está doente, os propagandistas anotam na ficha “médico doente” e a obrigação está cumprida. Com o doutor Francisco foi diferente. Fizemos romaria até sua chácara, levamos amostras e presentes... Ainda lembro que lhe dei uma faca serrilhada, de "pescador", comprada em Piquete.
Se não estivesse em Ubatuba naquela hora fatídica, ainda hoje ele continuaria a receber com um sorriso largo os propagandistas que jamais o esquecerão. Para ele tudo está bem, tudo exatamente “como manda o figurino...” Obrigado, Doutor Francisco, por tudo e também pelo pré-natal do meu filho que hoje também é propagandista. Contei pra ele que o senhor já o respeitava mesmo antes de nascer. Um beijo na sua mão.



O Primeiro Propagandista do Sertão


Seu nome era Onofre, também conhecido por Onofrão. Quando saía de Rio Pret, SP, para trabalhar no sertão, chegava em Mirassol e alegrava os médicos e farmacêuticos. Um médico da cidade já sabia a resposta, mas sempre lhe perguntava: “Veio passear em Mirassol?” O Onofrão respondia de imediato: “Não, doutor, só vim cagar no mato...”
O chamado sertão de Rio Preto vai até Cassilândia, do outro lado da fronteira com o Mato Grosso do Sul. O propagandista Onofre "fazia" este setor todos os meses. O seu fiel escudeiro era o Hélio Simões, conhecido por Chupa-Coco. O apelido de Chupa-Coco ele herdou de quando era balconista de um armazém e vários cocos vazios (antes cheios de pinga), foram encontrados escondidos nos fundos da loja sem o conteúdo principal. Segundo a lenda, o líquido precioso tinha sido sugado com muita habilidade pelo Hélio, através de um canudinho de plástico. Daí o apelido Chupa-Coco, mas isto é outra história.
O Onofre trabalhava com um antigo laboratório italiano, de nome Lutécia e o Chupa-Coco com o Lafi, ambos engolidos por multinacionais. Numa dessas viagens ao Sertão, os dois chegaram a Nova Granada, onde se exibia um circo mambembe que anunciava novidade para o espetáculo da noite. Haveria a exibição de um gigante e feroz lutador de boxe que nunca fora derrotado. Quem conseguisse derrotá-lo receberia uma considerável importância em dinheiro. As vendas andavam fracas naquele mês e o salário seria também certamente muito pequeno. Aconselhado pelo “mui amigo” Chupa-Coco, o Onofrão resolveu encarar o desafio e "levantar" um trôco extra. Não devia.
Na hora combinada —o circo lotado até à tampa—, lá estava o Onofrão, devidamente equipado com luvas de “boxer” e calção de cetim. Saltitante como um profissional, mas ridículo. Da platéia, o Chupa-Coco, seu único torcedor, gritava: “Vai, Onofrão, vai pra cima do homem que será moleza!” O pior é que não foi. Ao primeiro soco, uma verdadeira marretada, o Onofrão caiu. Caiu e não levantou mais, só acordou no hospital. Assim que conseguiu ficar de pé e tomar consciência da besteira que fizera, ergueu-se e abandonou rapidamente a cidade. Na volta para Rio Preto, com o nariz amassado, Onofrão dizia para o Chupa-Coco “Nosso negócio, amigo Chupa, é visitar médico. Juro que fico um ano sem cobrir a cota mas nunca mais farei uma besteira igual...”
Aí o Chupa-Coco falou o que não devia: “O pior, meu amigo, é que na platéia tinha pelo menos uma dúzia de médicos, todos amigos nossos...” O Onofrão nunca mais foi visto no sertão de Rio Preto e muito menos em Nova Granada...






O Farmacêutico que mancava

Dizem que o Diabo é manco, coxo ou coisa parecida. Porisso sempre fico esperto quando deparo com um homem mancando. Aquele farmacêutico, o Palhares, mancava. Sua farmácia era a maior de Santa Rita, a freguesia era enorme e eu tinha que visitá-lo, com medo ou sem medo. O pior é que o tal Palhares era neurótico e tinha estranhas manias. Não admitia que o vendedor, ainda que por pouquíssimo tempo, colocasse sua pasta de vendas sobre o balcão. Se o fizesse, ele pegava a pasta do pobre e jogava na rua e ainda não fazia pedido, só de pirraça.
Um dia chegou lá o Expedito, um vendedor inexperiente, e foi colocando a pasta sobre o balcão. Não deu outra: foi buscá-la na rua! Ao voltar com a pasta, ainda ouviu um sermão: “Diga seu nome, seu ignorante, e diga-me o nome do seu gerente que vou mandar demiti-lo!” O Expedito pronunciou o próprio nome, mas não forneceu o nome do gerente, temendo perder o emprego. Então, o Palhares extrapolou: ”Além de ignorante, tem nome de preto... Era só o que me faltava!...”
Aí, o Expedito, educadíssimo, perdeu a calma, aquilo já era demais, tinha escutado besteira demais. Virou-se para o farmacêutico manquitola e disse a maior ofensa que lhe ocorreu dizer naquele momento: “Desculpe, senhor Palhares, mas o senhor não tomou a vacina contra aftosa?” Pegou a pasta e saiu correndo...
Aftosa é uma doença do gado. Quando ataca um rebanho, os animais perdem o apetite e ficam mancando pelo pasto afora. A vingança do Expedito, aparentemente inocente, teve endereço certo. O Palhares nunca mais jogou na rua a pasta de ninguém.





As farmácias de Caçapava


Em Caçapava havia apenas duas farmácias, a do Billa e a do senhor Adhemar. Vender para o Billa era difícil, receber do Adhemar era fácil, mas ambos tinham características e neuroses, manias que deveriam ser assimiladas pelo vendedor. Assim procedendo, tornava-se uma moleza para o vendedor a tarefa de vender e receber. Para amolecer o Billa, bastava dizer que o seu implante de cabelos ficara uma perfeição, o que era uma absoluta mentira, pois parecia uma boneca. Ao senhor Adhemar, era bom elogiar a cagada de negócio que fizera com a Nestlê, vendendo um belíssimo terreno nas margens da Dutra a preço de banana. Exigia-se muito tato, porém, para receber uma duplicata dele. Primeiro, o vendedor tinha que levantar o estoque e anotar o pedido. Só depois, bem depois, falar na duplicata. O vendedor que denotasse pressa e pretendesse mudar a rotina, estava com problemas.
Um dia, chegou lá um vendedor novo que não conhecia o esquema e foi logo apresentando a duplicata para cobrança. Seu nome era Bira, representante do Ison, laboratório que não existe mais. O senhor Adhemar ficou uma fera e disse, fazendo cena para os clientes que lotavam a farmácia: “O senhor é novo e precisa aprender a trabalhar. Veja como se faz. Vou lhe ensinar boas maneiras...”
Disse isso e solicitou ao Bira que passasse para dentro do balcão. Pegou a duplicata e assumiu postura de vendedor. A idéia era simular uma cobrança abrupta, deselegante e colocar o vendedor Bira, agora suposto dono da farmácia, em situação embaraçosa diante dos clientes que lotavam a farmácia. O senhor Adhemar virou vendedor e o Bira passou a ser dono da farmácia.
Imaginem a cena. A farmácia cheia e os clientes observando. Era óbvio que torciam para ver a lição que o importante farmacêutico daria no vendedor novato, atrevido. O senhor Adhemar foi até à calçada e retornou agitando a duplicata, dizendo alto para o Bira que estava dentro do balcão e agora era farmacêutico improvisado: “Por gentileza, faça o favor de me pagar esta duplicata!...” Disse e aguardou a reação do vendedor novato, certo de que ele ficaria em situação embaraçosa. Aí, o Bira, que era novato mas muito esperto, respondeu para risadas gerais:”O querido representante quer receber em dinheiro, ou prefere em cheque?” O senhor Adhemar passou o maior vexame da vida e descobriu que o seu negócio era mesmo ser farmacêutico. O Bira foi promovido a GD.





O Mão de Onça

O Mão morava em Poços de Caldas e seu setor chegava até Pindamonhangaba. Às vezes era visto em Taubaté, rondando a República Durango Kid. Não dirigia, preferia andar ônibus ou de carona. Sua estatura era gigantesca, sempre bem humorado, chamava para si toda atenção nos consultórios ou nos hospitais aonde chegasse. O detalhe que lhe valeu o apelido foi o tamanho de suas mãos, iguais a duas pencas de banana nanica na ponta dos braços. Trabalhou vários anos, creio que todos, num só laboratório, o Baldacci. Ao final de suas propagandas, sempre dizia: “Para o doutor não se esquecer de receitar meus produtos, use Memoriol!” , e deixava uma montanha de amostras, saindo em seguida com seu jeito de menino arteiro. Estava sempre apressado, indo ou vindo de algum lugar. Talvez fosse por causa do setor longo, ou coisa assim. Descobrimos mais tarde que era por causa dos horários dos ônibus, escassos naquele tempo, e ele precisava conciliar os horários.
Essa sua pressa crônica lhe valeu alguns dissabores, alguns momentos de saia justa nos consultórios médicos. Uma vez, ao se despedir de um médico pediatra de Lorena, SP, saiu pela porta errada e arrancou a maçaneta dos fundos com a força das suas mãos gigantescas. De outra feita, em Guaratinguetá, visitando o doutor Lacaz, que mantinha em seu consultório uma estante divisória decorada com figuras riquíssimas dos doze profetas, feitos em pedra-sabão, deu outra mancada incrível. Apressado, despediu-se do médico, deixou o Memoriol, mas esqueceu-se da estante e dos profetas, derrubando-a e quebrando a metade das estátuas. O médico quase entrou em pânico. O Mão de Onça não se abalou: “Sabe, doutor, estas coisas acontecem com quem não toma Memoriol...”
Nos meses e anos seguintes, o doutor Lacaz sempre perguntava aos propagandistas:”Vocês não viram o Mão de Onça?” Não, ninguém, nenhum colega jamais viu o Mão de Onça sequer passando por Guaratinguetá...





Os dois gatos cegos


Quando um laboratório ético vai lançar um novo medicamento no mercado, toma todos os cuidados para que este seja um sucesso. Pesquisas são feitas em laboratórios modernos e sofisticados. Um dos estudos preferidos é o chamado “duplo cego” —no qual nem o médico nem o paciente sabem qual o remédio que está sendo avaliado. Se a empresa é nacional, brasileira de verdade, apresenta aos médicos dezenas de trabalhos internacionais afim de agregar mais credibilidade ao seu novo produto. Na ponta do processo, porém, está o propagandista que precisa ter boa cultura, uma assimilação acima da média e muita versatilidade no contato com os médicos para que estes venham a receitar a novidade. Isto porém nem sempre é possível, pois o médico gosta de saber detalhes técnicos sobre o novo medicamento que vai receitar. Aconteceu que, em Rio Preto, SP, existia um propagandista, de nome Bigatinho, que era capaz de "torcer" qualquer informação e criar novas palavras. O Bigato era um sujeito simpático, porém de pouco estudo, com incríveis saídas para situações difíceis. Quando fui seu gerente, no Sintofarma, lançamos vários produtos mas jamais poderia imaginar que, em sua companhia, um dia passaria por tamanho vexame. Estávamos em visita ao professor Costacurta e lançávamos um novo produto. Entramos, cumprimentamos o médico e o Bigatinho deu início à propaganda. Apresentou vários gráficos e ilustrações justificando as vantagens do novo medicamento. Eu, seu GD, fiquei observando. O Bigato estava indo muito bem, mas num dado momento, o professor Costacurta perguntou: ”O senhor tem algum trabalho, um estudo nacional ou internacional sobre este produto?” O Bigatinho respondeu rápido e firme: ”Claro, professor, este produto foi testado com o maior sucesso em dois “gatos cegos” e lhe trarei o resultado na próxima visita!...”
Levei um susto, pois era seu chefe e não conhecia o tal trabalho dos “gatos cegos”. Descobrimos depois que o Bigatinho se referia a um estudo “duplo cego”, mas já era tarde demais. A propaganda tinha ido para o brejo. Perdemos o receituário e o Bigatinho entrou para a história...



O susto do Salvador

Todo propagandista e vendedor do Vale do Paraíba já sabia: se no final do mês não estivesse com a cota coberta, era só mandar uma “bola” substancial para o Salvador Pacetti, em Cunha, que tudo estava resolvido. Ele nunca devolvia. Nunca voltou uma "bola" de sua farmácia. O Salvador era um grande amigo dos propagandistas. Mas tudo tem limites...
Havia por aqui um vendedor, chamado De Lavia, que se tornara famoso pelas "bolas" gigantescas que mandava. Certa vez, na época da Ditadura Militar, ele estava trabalhando no Organon e mandou uma “bola” de anticoncepcional —umas quinze mil unidades— para o Reembolsável da Aeronáutica, o que acabou gerando uma enorme confusão e um posterior desemprego. Mas isto é outra história.
Chegamos em Cunha pela manhã. Eu e o Faro estávamos preparados para cobrir a cota. Era um mês difícil e teríamos que contar com a bondade do Salvador, ou por outra, com sua tolerância, pois a “bola” viria de qualquer jeito. A farmácia do Salvador parecia um armazém. Tinha mercadoria para a população de Cunha beber por vários anos. Havia caixas de mercadorias desde o porão até o teto. Se o telefone tocasse ficava difícil encontrá-lo sob a montanha de remédio. Na frente da farmácia havia uma carreta estacionada. Não era carreta pequena, era carreta gigantesca e estava lotada de Biotônico Fontoura. Parado e pensativo ao lado da jamanta, fumando o seu cigarro de palha, estava o Salvador Pacetti. O farmacêutico, perdido em dúvidas, parecia prestes a chorar. Olhei para o Faro, o Faro olhou para mim. Logo percebemos que havia cheiro de rolo no ar. Chegamos perto do Salvador e ele desabafou: “Meus filhos, vejam se isto é coisa que se faça comigo!” “Mas o que houve de errado, Pacetti?”, perguntou o Faro. “O De Lavia me mandou remédio demais... Assim eu não agüento...”, resmungou, quase num lamento, o pobre Pacetti.
E não poderia agüentar mesmo. Dentro da carreta, parada na frente da sua farmácia, havia uma carga de trinta e oito mil vidros de Biotônico Fontoura, tamanho grande. Era estoque para vários anos, fortificante demais para os pouco mais de quatro mil habitantes da cidade de Cunha. Naquele mês não cobrimos a nossa cota e nunca mais vimos o De Lavia. Por culpa dele o Salvador se transformou, ficou desconfiado e passou a conferir todos os pedidos que chegavam. Só recebia a mercadoria conforme a cópia em seu poder. Biotônico, nem pensar...









A Baixada do rio Una


Quem passa por Taubaté, na Rodovia Presidente Dutra em direção ao Rio de Janeiro, pega um longo declive de vários quilômetros que termina na ponte do rio Una. Aí começa um novo e longo trecho, em subida, que vai acabar na entrada de Pindamonhangaba. Foi nesse trecho de estrada que, nos idos de 1950, morreu o famoso cantor Francisco Alves. Em virtude disso criou-se uma lenda entre os viajantes do Vale do Paraiba segundo a qual, os motoristas solitários que passassem por ali à noite, receberiam um carona involuntário, um misterioso senhor vestido de branco, usando chapéu panamá, que se sentava pesadamente, sem ser convidado, no banco de trás. Diziam que era o fantasma do Chico Alves. Pelo retrovisor interno, o motorista, apavorado, podia vê-lo quieto e pensativo. O passageiro, diziam, era de pouca prosa...
Nunca acreditei nesta lenda, mas o Carneiro, propagandista do Lilly, nunca voltava à noite de Guaratinguetá. Tinha pavor de passar sozinho por ali. Mas em Guaratinguetá havia o doutor Guilherme, um médico importante que só atendia após às oito horas da noite. O doutor Miléo também. De sorte que, passar pela baixada do rio Una, à noite, não dependia só da vontade ou do medo, havia o emprego em jogo. A gente era obrigado a visitar os dois médicos. O propagandista que não quisesse passar por ali, à noite e sozinho, tinha que trazer um colega de carona, ou dormir em Guaratinguetá.
Aconteceu que o Carneiro precisou retornar de repente a Taubaté, seu chefe chegara de surpresa. Era uma noite de lua cheia, o asfalto novo da Dutra brilhava na noite. O Carneiro só lembrou do passageiro misterioso quando já passava por Pinda. Aí, pensou ele, “Seja o que Deus quiser..." Como não dava mais para pegar o desvio de Moreira Cesar, o jeito era tocar em frente, pisar fundo no acelerador. Mudou o retrovisor de posição para evitar surpresas e ligou o som bem alto. Do rádio veio a música: “Criança Feliz”, de Chico Alves!... Até hoje o Carneiro não sabe como conseguiu chegar em Taubaté e jurou nunca mais visitar o doutor Guilherme, mesmo que lhe custasse o emprego. Hoje a Dutra é uma longa avenida e ninguém mais se dá conta de que existe a baixada do rio Uma, nem se lembra mais das músicas do Chico Alves. Que pena!





As amostras chegaram hoje

Cheguei do trabalho e vi que o plano de amostras do mês seguinte já tinham chegado. A nota fiscal estava sobre a mesa e os pacotes ancorados no chão ao lado. A esposa, feliz, me disse: “Está empregado por mais um mês!...” Ela se acostumara às brincadeiras do marido, velho propagandista. Afinal, foram tantos anos juntos, tantos sustos, tantos telegramas que ela acabou se tornando uma propagandista também.
Ah!, havia um recado da secretária do doutor Brasil, solicitando uma amostra com certa urgência, o resto tudo bem. “Tudo bem, mesmo?” —perguntei. Bem, bem, não estava porque chegara um telegrama da matriz. Abri e li: “Não mexa nas amostras, encontre supervisor amanhã no hotel habitual”.
Pronto, o resto do dia e da noite estavam acabados.Tudo podia ser, inclusive demissão, foi uma agonia sem fim. No dia seguinte encontrei o chefe no hotel e junto com ele havia um outro jovem. Era um "neófito", um aprendiz que ele estava trazendo para ficar uma semana comigo e fazer as primeiras propagandas, saber como se entra no médico, essas coisas. Um alívio!
Fui instrutor de propagandista —"égua-madrinha"—, por muitos anos. Ensinei a incontáveis jovens iniciantes o jeito de como entrar num consultório médico, como fazer a primeira visita. Sempre colaborava com este serviço extra. Quando retornei para casa, à noite, minha esposa estava triste, preocupada. Ela tinha quase certeza de que eu já era um desempregado. “Calma, meu bem, era apenas mais um "neófito" para ser treinado...” Deste dia em diante, sempre que ouvia falar em neófito ou aprendiz, minha mulher ficava uma fera, com justa razão...





Acredite, trocou o céu por um pedido

Houve um tempo em que os propagandistas efetuavam também vendas, tinham objetivos individuais e lutavam bravamente para alcançá-los. Visitavam farmácias e hospitais e precisavam "arrancar" um pedido diário. Era ponto de honra "padronizar" um produto no melhor hospital da cidade.
O fato aconteceu na cidade de Monte Azul, SP. Eu trabalhava como propagandista do Sintofarma e o Fernando era do Organon. Como o nosso itinerário coincidia sempre, aproveitávamos para trabalhar juntos. Os propagandistas gostavam de estar juntos e andar em duplas. Pela manhã, em Monte Azul, o encontro era sempre na Santa Casa. Enquanto os médicos não vinham, era bom aproveitar o tempo. Fomos até à farmácia levantar o estoque, ver trabalho dos concorrentes, as faltas e arrancar o esperado pedido. A irmã Olimpia, madre que cuidava da farmácia, apareceu toda alegre: “Meus filhos, que bom que vocês vieram. Estava mesmo esperando por vocês!...”
A irmã estava muito gentil conosco e logo ficamos desconfiados, pois sabíamos que vender ali não era fácil. Não deu outra, ela queria algumas amostras para sua obra de caridade. O propagandista nunca nega uma amostra para um comprador ou para um médico. Acabamos lhe dando algumas amostras, sempre na esperança de que saisse alguma venda, um pedido pequeno que fosse. Mas, doce e ledo engano, não saiu nada. Lembro-me como se fosse hoje. A irmã Olimpia virou-se para o Fernando e disse: “Você foi muito gentil, meu filho... que Deus lhe dê o céu!...” O Fernando, desconsolado e quase chorando, retrucou: “Irmãnzinha, sinceramente?... eu preferia um pedido!...”



Popó e o boneco Chico

Todos os anos, antes das férias coletivas, o Sintofarma oferecia uma festa aos propagandistas e respectiva família. A última festa de que participei foi na Fonte Santa Teresa. O que aconteceu ali não se pode esquecer, teve de tudo. Havia mágico, boa comida, presentes, ventríloquo, foi uma loucura. As crianças se divertiram e os propagandistas esqueceram de todo o stress do ano que se findava. O que mais agradou foi o ventríloquo. O homem trouxe um boneco de nome Chico, que logo se invocou com o propagandista Claudinês, cujo apelido era Popó. O Claudinês detestava o apelido de Popó.
A festa rolava e, volta e meia, o Chico se virava na direção do Claudinez e o fitava longa e demoradamente com seus dois olhos enormes, arregalados, e dizia: “Conheço este cara, não me lembro de onde...” Depois de muitas encaradas, que deixavam o Popó vermelho, o boneco Chico foi enfático: “Mas eu sabia que o conhecia, é ele, é o Popóóóóóó!...! Houve risos de todos, inclusive da esposa e filhos do Popó, que, furioso, exibia um rosto vermelho feito um tomate. Mas, o mais engraçado ficou para o final da festa, quando o Popó disse numa roda de colegas: “Vou confessar pra vocês uma coisa, quando vi êste boneco chegando eu já sabia que ele ia acabar me enchendo o saco...”





A Tampa da Ratambuca

De vez em quando chegava no Vale do Paraiba um propagandista novo. Os mais antigos logo o pegavam para cristo. Foi assim comigo, com o Moringueira, com o Babão e com muitos outros. Porém, o que mais marcou foi o Elon. Ele era paulistano típico da Mooca, de fala arrastada e suportava as brincadeiras como ninguém. Aliás, nem acreditava que fossem brincadeiras, era um ingênuo saudável. Um dia seu carro pifou e os colegas logo se prontificaram a “ajudar”. Levaram-no a um mecânico conhecido e armaram a gozação.
O problema do carro era coisa simples. Uma pequena sujeira no carburador, nada sério. Dava para ir rodando, mas segundo o mecânico —devidamente instruído pelos vendedores mais antigos—, haveria necessidade de trocar a “tampa da ratambuca”, do contrário o motor do carro poderia fundir... O Elon ficou preocupado e tratou de comunicar por telegrama, ao seu chefe na matriz, o grave problema: “Preciso trocar urgente tampa da ratambuca/ carro pode fundir motor/ aguardo sua resposta”. Os colegas que armaram a brincadeira ficaram na expectativa aguardando pelo resultado. Qual não foi a surpresa de todos quando o Elon apareceu orgulhoso dias depois no Café Paris, exibindo um telegrama que mostrava para todos:“Porisso que gosto de trabalhar para firma multinacional, o pessoal não tem miséria...” O telegrama era claro, enfático: “Cuide bem do carro da companhia/substituição tampa da ratambuca autorizada/pode fazer serviço.” O telegrama era assinado pelo gerente geral da empresa... Rimos bastante, e o Elon quase perdeu o emprego. Aprendemos a respeitar os propagandistas novos, puros e ingênuos, e descobrimos que existem gerentes que sabem tudo, que autorizam substituir até mesmo "tampa de ratambuca...".




O Farmacêutico Josué


No caminho de Campos do Jordão fica a pequena Monteiro Lobato. Ali havia uma farmácia que faturava mais que muita drogaria da capital. Tudo graças ao milagroso curandeiro Josué, cuja fama já chegava a todo Vale do Paraíba, de onde vinham pacientes a procura de milagres. O Josué era negro, com a voz mansa e delicada, cativava a todos com seu jeito particular de ser. Nunca dizia não, para tudo tinha uma solução. Isso deixava os pacientes confiantes e já saíam da sua farmácia a meio caminho da cura total. Havia fila de pacientes com senha à sua espera. Os médicos não gostavam muito dele, até trabalhavam contra e falavam mal, denunciavam-no aos fiscais da saúde. Mas o Josué sobrevivia com mais sucesso do que nunca.
Ao ver a própria farmácia cheia, sempre brincava com os propagandistas que o visitavam. Eles iam para realizar vendas, mas aproveitavam para apresentar algum produto novo(às vezes dava mais resultado que muito médico). Mostrava a fila de clientes e dizia: “O Pacaembu está sempre cheio, meus filhos, isso é ótimo para todos nós...”
Os anos se passaram e o Josué foi ganhando cada dia mais fama e respeito entre os pacientes que o procuravam. Mudou-se para São José dos Campos. Ampliou os negócios e continuou trabalhando dia e noite e em pouco tempo ficou rico. Certo dia, apareceu na sua farmácia uma família numerosa, gente humilde, conhecidos de antigas curandeiragens lhe trazendo um velho ancião em fim de carreira, à beira da morte.
O Josué logo percebeu que o velho não tinha mais cura, apenas recomendou algumas vitaminas e entregou o caso nas mãos de Deus. Dias depois, voltou lá o filho do moribundo trazendo notícias. O Josué, curioso, quis saber qual fora o resultado das vitaminas dadas àquele paciente terminal. O jovem caipira não quis ofender ao tão famoso farmacêutico e saiu-se com esta pérola de desculpa: “Meu pai morreu, seu Josué, mas graças aos seus remédios ele ficou bonito, um defunto corado mesmo, o senhor precisava ver!...”




O médico que amarelou

Todo o propagandista que o visitava ficava seu fã. Era um trocadilhista incorrigível. “Remédio para vermes?... Não se esqueça de vir “ver-me” todo mês, certo? Era o doutor Álvaro Lima, pediatra, há muitos anos clinicando no centro de Ribeirão Preto. Uma de suas brincadeiras preferidas era dizer para o propagandista que “a qualquer momento iria amarelar o pé”, insinuando que estava apenas aguardando a morte. Mas tinha uma saúde de ferro. Assim eram todas as visitas, todos os meses, todos os anos. Visitei-o por várias empresas, até que mudei de setor.
Fui viajar por outros lugares e no meu lugar ficou o Vanderlei Georgenon, que o visitava, invariavelmente, todo mês. A brincadeira era sempre igual:” A qualquer hora dessas, meu filho, você vai ficar sabendo que eu amarelei o pé...” O Vanderlei o ouvia e dava um sorriso tímido: “Não brinque, doutor Álvaro, o senhor viverá mais do que eu.” O tempo foi passando, anos se passaram, até o dia que me encontrei com o Vanderlei no corredor da Santa Casa e ouvi dele a pergunta: “Adivinhe quem amarelou o pé?” Estava na cara, só podia ter sido ele. O corajoso doutor Álvaro, o grande amigo dos propagandistas, sempre alegre, tinha ido na nossa frente. Com o pé amarelo talvez, mas certamente encontrando sinal verde para entrar no Céu —coisa que só os bons merecem de Deus. Obrigado, doutor Álvaro, um beijo na sua mão.


O Pirata

Muito propagandista perdeu o emprego e grandes oportunidades de um futuro brilhante por puro medo, pavor da rodovia Presidente Dutra. Nos anos sessenta, quando a rodovia foi duplicada, era grande o número de acidentes fatais. Muitos propagandistas se acidentaram, outros morreram. Foi o caso do Elon, do Carlinhos Bahiano e de tantos outros. Na Dutra você aprendia a dirigir ou ficava pelo caminho.
O Faro, um excelente motorista, capotou algumas vezes. O Décio atropelou cones de sinalização por várias e incontáveis oportunidades. Bem fazia o Mão de Onça que só andava de carona, e somente com motoristas confiáveis. Certo dia, apareceu no Vale do Paraíba um propagandista do Welcome, paulistano da gema, que se dizia ótimo motorista. Foi alertado pelos mais velhos dos perigos e das armadilhas da Dutra. “Deixa comigo, conheço estradas... Podem ficar tranqüilos”, respondia confiante. Na sua segunda viagem teve uma surpresa desagradável.
Quando retornava de Caçapava para Taubaté, sob uma garoa fina, derrapou na ponte do Córrego do Barranco Alto, rompeu as grades de proteção e foi parar dentro do rio. Socorrido ao hospital de Taubaté, politraumatizado, sobreviveu por milagre. Na violência da queda teve expelido o globo ocular esquerdo, que se perdeu e não mais foi achado. Colocaram-lhe uma prótese de vidro, o que não é a mesma coisa. Apelidado de Camões, nunca mais tivemos notícia dele.
Provavelmente estará em São Paulo, com um só olho, a dirigir perigosamente, falando de suas aventuras. Provavelmente dirá aos netos que, na década de sessenta, desafiou os perigos do Vale do Paraíba. Bem feito.



Pequenos pacientes


Já falei do Elon, mas é sempre bom reforçar que se tratava de um propagandista jovem, recém-chegado de São Paulo. Trazia consigo todo o sotaque carregado dos italianos da Mooca. Era um garotão ingênuo e boníssimo. Estava sempre alegre, animava os clientes em todo consultório que chegava. Vez por outra, ou quase sempre, dava uma mancada. Aos médicos contava uma piada velha e conseguia com seu jeito infantil um receituário bom e firme para seus produtos. Nesse tempo, estava lançando os novos produtos do Laboratório Keto-Wemaco, que hoje não existe mais. Em Guaratinguetá havia o doutor Miléo, um importante ginecologista que nos atendia nos finais do dia, às vezes bem tarde da noite. Mas valia a pena visitá-lo. Sua clientela era uma das melhores do Vale. Como todo médico importante, seu diálogo era difícil e não gostava de esticar conversa.
O Elon, porém, ignorava as características do médico e queria mesmo era vender o seu peixe. Esse doutor Miléo conservava em formol uma coleção de fetos, restos de abortos, numa estante de madeira, bem atrás da sua cadeira. Aquilo era produto macabro de vários abortos expontâneos de suas pacientes. Alguns fetos, exibindo anomalia, eram usados como material de estudo ou mesmo para orientar às pacientes. Pareciam vidros com enormes pepinos em conserva, tipo "picles". Aqui entra o Elon.
Estávamos em um grupo de oito colegas, o Elon seria o primeiro a fazer sua propaganda. Após os cumprimentos habituais ao doutor, o Elon resolveu fazer uma pergunta genial para quebrar o gelo e começar sua apresentação: ”Doutor Miléo, desculpe perguntar, mas quando é que o senhor dará alta para estes seus pequenos pacientes?” —e apontou para os fetos dentro dos vidros de formol. O doutor Miléo ficou sério, nem se mexeu.
Nós, todavia, não conseguimos segurar o riso coletivo. Nos meses seguintes, nas visitas que se seguiram, não me lembro mais de ter visto os tenebrosos vidros de formol com fetos na estante do doutor Miléo. Possivelmente, atendendo à sugestão do Elon, dera alta para aqueles pequenos pacientes...




Pedido espontâneo


Chico era português e trabalhava como propagandista naquele mesmo setor havia muitos anos, mais de trinta anos. Mudara de laboratório várias vezes, mas permanecia em Jaú, cidade que amava. Excelente propagandista, cultivava amizades como ninguém. Tinha receituário garantido, mas vender não era o seu ponto forte. Vivia recebendo críticas dos gerentes por não cobrir suas cotas. Era uma agonia as reuniões para o Chico.
Um dia, porém, faltando apenas algumas unidades para alcançar seu objetivo, o Chico resolveu mandar uma “bola” para um amigo seu, um farmacêutico e também português, dono de uma boa farmácia em Angatuba. “Vamos ver no que dá”, pensou. E mandou a sua primeira “bola” e ficou aguardando pelo resultado. No mês seguinte chegou em Angatuba e entrou na farmácia fingindo que não sabia de nada. Fez bem, porque o cliente, ao vê-lo, foi dizendo: “Olá, Chico, chegou um pedido "espontâneo" seu aí... gostei da novidade!...”
Beleza, deste dia em diante, o Chico nunca mais deixou de cobrir suas cotas. Mandava pedidos "espontâneos" para todos e nunca voltou um. O Chico, que era bom propagandista, virou o maior vendedor da região e passou a gostar das reuniões. A história lhe fará justiça.




Viagem para Osaka

O doutor Orlando Feierabend, importante ginecologista de São José dos Campos, solicitou ao João Macaco uma passagem para Osaka, no Japão, onde pretendia participar de um importante congresso. O João Macaco, sempre muito atencioso, se prontificou a atender e disse: “Tudo bem, doutor, pode contar comigo”.
No mês seguinte chegou o João Macaco e entregou ao doutor Orlando uma passagem. A passagem porém era de ônibus, para a cidade de Osasco! E ainda disse: “Foi o que consegui, doutor, lá o senhor pega um ônibus, tá bom?!...”



Artes do Duarte

O doutor Avediz Nahas era uma das maiores clínicas de urologia de Taubaté. Seu consultório estava sempre lotado. Era muito difícil ser visitado pelo propagandista. Sempre estava ocupado e a sua secretária, Adélia, não era fácil, era uma pedreira. Um certo dia, eu e o Duarte fomos visitá-lo. Ao iniciar a sua propaganda, o Duarte ficou assustado com a pergunta que veio do médico: “Você conhece algum propagandista bicha?” O Duarte levou um grande susto, até porque o doutor Nahas era médico de pouca conversa. Olhou para o lado, respirou fundo, e respondeu com a calma habitual: “Não, doutor Avediz, propagandista bicha eu não conheço. Mas aqui em Taubaté tem muito médico bicha!”
O doutor Nahas ficou irritado. Levantou-se da cadeira e quis saber mais detalhes:”Quem? Diga-me o nome de apenas um!”. Nesse momento, ao perceber que dera mancada e que poderia perder o receituário, o Duarte voltou atrás e disse: “Fique tranqüilo, doutor, é tudo médico Veterinário...”


O talão que dançou


Nos tempos mais antigos do Vale do Paraíba, os vendedores ou propagandistas que quisessem chegar até Cunha ou Parati, só de ônibus. Havia alguns felizardos que já tinham veículo próprio, o que não era o meu caso nem o do Pedro Violeiro. O ônibus que servia aquelas cidades saía de Guaratinguetá, todas as manhãs, partindo da praça Sto.Antonio sempre lotado. Era uma agonia, havia homens do campo levando fardos de compras e todo o tipo de bagulho, mas isto não é nada para quem precisa cobrir a cota. Fizemos um lanche rápido e entramos no ônibus.
Quando nos sentamos, no último banco, o Pedro virou-se para mim para dizer: ”Este lanche não me caiu bem...” Mas a nossa viagem prosseguiu e, lá pelas tantas, o meu colega foi ficando inquieto. De repente ele me disse: “Jader, vou ter que ficar na estrada, o ônibus não tem toalete...” —Disse isso e saiu correndo, com a pasta na mão, na direção do motorista procurando pela porta de saída. O ônibus parou e o Pedro desceu rápido, mergulhando e desaparecendo numa moita de mamona.
Para surpresa minha e de todos os passageiros, o motorista era muito tranqüilo, profissional habituado com essas situações, acendeu um cigarro e ficou esperando que o passageiro“se aliviasse” e voltasse ao ônibus. Uns cinco minutos depois ele voltou, mas voltou vermelho, envergonhado e ajeitando os grandes óculos de grau. Agradeceu ao motorista e veio se sentar novamente ao meu lado. A viagem prosseguiu e o Pedro ficou calado por um bom tempo. De repente virou-se para mim e disse: “Jader, não conte pra ninguém, mas o talão de pedidos dançou!...”




O velho Tomita San

Quando conheci o Tomita, ele já devia estar com uns sessenta anos. Era, sem dúvida, o melhor propagandista da Noroeste. Morava em Lins e trabalhava no laboratório Wesley, firma que hoje não existe mais. Como se vê pelo nome, era japonês mas amava o Brasil mais do que a sua terra natal. Começou a gostar do Brasil no dia em que chegou no porto de Santos. Pequeno ainda, menino de seis anos, magrinho e faminto, depois de uma longa viagem pelo mar, ganhou ao chegar um saco de pipocas —presente dado por uma velhinha brasileira que se encontrava no cais. Foi o bastante para ficar apaixonado pela terra e pelo povo do Brasil. Nunca tinha comido pipoca antes.
As razões que o levaram a virar propagandista, aí já é uma outra história. Tornou-se brasileiro de corpo e alma, assimilou as virtudes e os erros da gente tupiniquim. Bebia pinga às refeições, jogava caixeta nos hotéis todas as noites e nunca guardou um centavo. Estava sempre dependendo do salário que ia chegar. Jamais, porém, ficou devendo nada a nenhum colega. Amigado e separado, amigado novamente, estava sempre pagando contas de casamentos desfeitos anteriormente. Tornara-se um brasileiro perfeito, igualzinho a um certo jornalista que conheço.
Por uma dessas reviravoltas que a vida dá, acabei sendo seu gerente e ficamos ainda mais amigos. Conheci de perto aquele homem trabalhador, de quase setenta anos, que produzia mais do que qualquer garoto de vinte. Nunca deixou de cobrir sua cota e ninguém era mais querido do que o velho Tomita San em toda a região da Alta Noroeste. Um dia ele me pediu para dispensá-lo do serviço por dois dias. Precisava ir a Loanda, no Paraná, ver a sua velha mãe, velhinha de noventa anos que morria. Liberei-o, mas o Tomita voltou de lá muito mudado. Parou de beber e de fumar, não jogava mais, não bebia mais. Estava atendendo a um pedido da sua mãe, feito a ele antes de morrer.
Poucos meses depois, numa clínica de Bauru, o Tomita desmaiou. Levado ao hospital pelos colegas, morreu horas depois. Disseram que o Tomita morreu de tristeza, causada pela perda da mãe velhinha. Mas eu digo que foi mais que isso, foi desejo de voltar a ser menino, de ganhar pipoca novamente no cais do porto. De certo modo acho que o Tomita conseguiu. Penso que ele teve foi um sonho e viu uma velhinha, parecida com sua mãe, estendendo-lhe um saco de pipocas entre as nuvens... Até um dia, Tomita San.





A Empregada do Macaco

Já havia alguns anos que o João Macaco trabalhava como propagandista. Poupara um bom dinheiro e pensava que já podia ter uma ajudante para aliviar o trabalho da sua mulher.
Então o Macaco decidiu sair pelas ruas de Taubaté procurando uma empregada ideal. Na Vila São José encontrou duas jovens que lhe pareceram estar dispostas a aceitar sua oferta. Expôs suas condições de trabalho e o salário que ganhariam, em longo arrazoado.
Todavia, ficou injuriado com a resposta que recebeu das moças. Acredita-se que, em razão do pouco que ofereceu, elas ficaram furiosas e foram direto ao assunto: “Moço, por este salário nós prefere continuar sendo biscate mesmo...”




O cavalo e o canivete


Um setor difícil de preencher é o de São João da Boa Vista, SP. Eu estava com uma vaga sediada justamente lá. Já tinha feito várias entrevistas e não conseguia um bom candidato. Apelei para o meu colaborador Zerbini, que, já tendo trabalhado no setor, certamente poderia me ajudar. Marquei novas entrevistas para o Hotel Garoto, naquela cidade. Logo pela manhã chegou o candidato indicado pelo Zerbini. Era um rapaz muito tímido, entregou-me um currículo mais que modesto, mas analisei tudo com muito carinho. Um detalhe que me chamou a atenção foi o fato de o candidato ter sido também, como eu fora um dia, garçom. Vinha de São Sebastião da Grama, era filho de um dono de restaurante muito popular na cidade. Seu nome era Rodrigo e percebi logo que, se apertado, seria franco e espontâneo na entrevista. Feitas as primeiras perguntas de hábito, pedi ao Rodrigo que me contasse suas experiências anteriores em vendas. Como se verá foram poucas, aliás pouquíssimas. Iniciou ele: “Bem, já vendi um cavalo...” “Continue, meu jovem, estou gostando bastante da sua história”.
Ele continuou: “Na verdade, senhor Jader, o cavalo nem era meu. Foi o meu pai que me deu para saber se eu tinha jeito para ser bom vendedor...” Interessadíssimo no desfecho da história, perguntei: “E conseguiu vender o cavalo, meu jovem?” “Não, não vendi, troquei ele por um... canivete!”, respondeu-me o Rodrigo.
“E o seu pai, o que achou do seu desempenho?” —prossegui na entrevista, dando boas risadas por dentro. “Ah, ele ficou uma fera comigo!...” — respondeu cabisbaixo, o ex-garçom.
Segurando com bastante dificuldade o riso, continuei perguntando:”E o que fez com o canivete?” “Fui tomar banho no rio e acabei perdendo a ferramenta...!”, —foi o que me respondeu num triste lamento o ex- quase propagandista.
Infelizmente não era recomendável admitir o candidato Rodrigo, um rapaz honesto e bem intencionado, mas quase demiti o vendedor Zerbini que o tinha indicado.


Minha sogra rezadeira

Minha sogra reza muito.
Reza tanto e tão fortemente
Bastava que eu pedisse
Que ela derrubava o gerente!
Na firma em que mais trabalhei
Passei “trabalhos” pra ela.
Meus chefes sabiam disso
E tinham medo de mim
Mas não tinham razão.
O Zé Alfredo, com medo,
Até pediu demissão...
Na história que lhe contaram,
Segundo lhe disseram
A velha me atendia,
Quando o Zé lançava um produto
Esperando sucesso total,
Levava um susto: era um fracasso geral.
O esperado sucesso não vinha
E por obra da velhinha
Fechava-se uma filial...
Numa lenda que inventaram
Contam que a minha sogra
Em dia de inspiração
Rezou além do normal...
E sem querer mandou para o Céu
Um saudável gerente geral.


Bambam

Nos tempos do Laboratório Wesley a coisa andava feia. Na minha equipe, trabalhava o Bambam, que "fazia" o setor de Barretos e morava em Ribeirão Preto. Nosso gerente, o Sinésio, mandava que ao final de toda propaganda o representante desse um “choro”, algo que "tocasse" o médico e este passasse a receitar. A coisa estava realmente preta. Em Barretos,SP, clinicava e ainda clinica, o doutor Iunes, pediatra sério e caladíssimo. Em Ribeirão, uma das maiores clínicas é a do doutor Ângelo Mates, que tinha sido amigo e colega de turma do pediatra citado. O Bambam, nosso representante, sabendo disso e pensando ser esperto, usou um argumento, um tipo de “choro” que ninguém jamais esquecerá. O consultório estava cheio de outros propagandistas e o Bambam seria o primeiro, pois fora o primeiro a chegar. Falou o Bambam e começou perguntando: “Doutor Iunes, o senhor conhece o doutor Ângelo, de Ribeirão Preto?” “Claro, conheço muito, fomos colegas de turma, estudamos juntos”, respondeu o doutor Iunes.
Assim ficou tudo exatamente como o Bambam queria. Era só começar o “choro”. Os colegas se entreolharam, certos de que a coisa não iria dar certo, pois o doutor não era de muita prosa. O Bambam, fazendo cara de sofrimento, foi em frente: “Toda semana vou duas vezes à casa do doutor Ângelo...” ”Fazer lá o quê, meu filho?”, perguntou muito educadamente o doutor Iunes. Na maior cara de pau, responde o Bambam: “Vou lá com a minha mulher e o filho só para comer carne!...” Foi demais, todo mundo caiu na risada, inclusive o médico.
Mas a história não acaba aqui. O doutor passou recibo e continuou:”Tem certeza que conhece o Ângelo?” “Claro!”, respondeu o Bambam. Nessa hora o doutor Iunes foi genial e arrematou: “Eu estava quase acreditando em você, rapaz, mas me lembrei que o Ângelo é vegetariano...” Foi a melhor visita que fizemos e rimos bastante.





Cota misteriosa

Meu gerente, o Negão, não gostava de perder cota. No começo do mês somava, dividia, multiplicava, calculava e distribuía a cota de cada supervisar. Da matriz, por telefone, acompanhava o andamento das vendas. Telefonava cobrando as posições de cada cliente. Queria saber das vendas do dia e as previsões do dia seguinte. Era o Ernani, popularmente Negão. Para ele a cota era sagrada, tinha que ser coberta, era ponto de honra de vendedor. Mas os tempos andavam mais que bicudos e não era fácil vender remédio, especialmente nos finais de ano. Era quando a cota vinha em forma de “trepadinha”, ou seja, eram somadas as cotas de outubro, novembro e dezembro, transformando tudo num bolo só. A luta era grande. O “stress” tomava conta de todos.
Naquele ano o tempo correu rápido. Passou outubro e novembro e já estávamos no dia dez de dezembro. A cota já deveria estar coberta, mas estávamos longe disso. No dia quatorze, o Décio telefonou de Sorocaba passando um pedido do Troy. De Rio Preto, o Onofrão informou que a Santa Casa tinha feito um pedidão. Coisas do Capitão. Ufa!, a Cota estava coberta. O ano tinha sido salvo!
O Ernani, exultante e aliviado, voltou para Bauru para descansar no conforto do lar. Agora tranqüilo, deitou-se e pegoulogo no sono. Dormindo, porém, sonhou novamente com a cota. Agitava-se na cama, gemia alto. Gemia tão alto que a sua esposa, Mariazinha, que estava dormindo ao seu lado, acordou. Acordou e ficou ouvindo, prestando atenção. O Negão dizia:”Até que enfim consegui!... Foi difícil mas consegui!... Êta cotinha apertada...”
Acordou com uma cotovelada da esposa, enciumada, que estava sentada na cama querendo saber de tudo: “Quem é essa tal Cotinha? Vamos, me diga logo quem é esta sem-vergonha!” Foi difícil explicar.




Doutor Pedro Perboá

Havia em Jacareí, SP, um médico recém chegado da França, de cor indefinida, tipo saúva, de nome Pedro Perboá. Na verdade, não viera da França mas da Argélia. Tinha uma característica própria e inconfundível ao atender a nós os propagandistas. Isto foi o que lhe valeu um apelido que mais à frente se verá. Seu consultório era antigo, instalado num casarão com assoalho de tábuas largas que rangiam sob o peso dos poucos clientes e dos muitos propagandistas que ali entravam.
O doutor Perboá não tinha secretária, pelo barulho ele sabia quando chegava alguém. Demorava-se para abrir a porta, fingindo estar ocupado. Aos propagandistas, embora sem cliente, dizia sempre: “Aguarde um pouco!” E voltava para dentro do seu consultório, de onde saía meia hora depois e mandava entrar. Se fosse mais de um propagandista, alegava pressa. Durante a propaganda ficava calado e ouvia com impaciência, olhando para o relógio, abrindo e fechando gavetas. Se o propagandista se alongasse no discurso, recostava-se na sua velha cadeira de couro e espreguiçava longamente. Era para intimidar os propagandistas. Com o correr do tempo, porém, fomos nos acostumando com seus hábitos e já não mais acelerávamos a propaganda, apresentávamos as literaturas e os gráficos normalmente.
Mas o bandido doutor Perboá desenvolveu nova defesa às nossas longas propagandas: uma bufa! A arma era silenciosa e terrível, algo equivalente à bomba atômica boliviana. Quando um propagandista ignorava as potencialidades do doutor e inadvertidamente esticava a propaganda, logo se dava mal. O doutor Perboá se reclinava na sua velha cadeira e... lá vai bufa! O pior é que o descarado não se preocupava com o ruído, ou com a eventual reação do pobre interlocutor. Ficava sério e desafiava o propagandista a continuar. Confesso que poucos conseguiram.
Aos poucos os propagandistas foram sumindo do seu consultório e, por vingança, botaram nele um apelido que contribuiu para diminuir ainda mais a sua pequena clínica. De Pedro Perboá, passou a ser conhecido por Pedro Peidará. Acho que voltou para a sua Argélia querida, graças a Deus.




Guaraná Jati

No Hotel Vitória de Taubaté, SP, moravam os propagandistas boêmios do Vale do Paraíba. Nos finais de semana, à tarde, reuniam-se na calçada para fazer serenata. A cantoria entrava pela noite. Entre os cantores, havia um que realmente cantava bem, o Moringueira, que tinha uma bela voz e imitava o Nelson Gonçalves com uma perfeição incrível. Seu maior sonho era cantar na Rádio Nacional, gravar um disco, coisas assim. Sonhava com isso. Mas enquanto não realizava seu sonho, cantava nas calçadas a serenata dos boêmios.
Naquele tempo distante, a Rádio Difusora de Taubaté apresentava um programa de auditório onde calouros disputavam prêmios insignificantes. O prêmio maior era uma salada no Bar do Alemão, acompanhada de guaraná. Mas o sonho do Moringueira era mais alto, cantava nas calçadas de Taubaté a "Volta do Boêmio", aguardava o seu grande dia chegar. Afinal, poderia passar por ali algum caçador de talentos e convidá-lo, quem poderia saber?
Um dia, passou alguém mas não era bem o que o Moringueira esperava. Cantava uma música de Silvio Caldas quando se aproximou um menino, que parou e ficou olhando, com seus olhos enormes, fixos, encantado com a voz poderosa e bonita do Moringa. Ouviu muitas canções e parecia querer dizer algo. Aguardou um momento oportuno e se dirigiu Moringueira:”Moço, por que o senhor não vai cantar lá na Rádio Cacique?” O Moringueira, muito gentil, deu atenção ao menino e todos nos viramos para ouvir o diálogo. “Cantar lá, para que?”, retrucou o Moringa. “Para ganhar Guaraná Jati, oras!”, justificou o menino, todo humilde, saindo de fininho.
Rimos muito do momento poético e nunca mais vamos nos esquecer daquele menino que gostava de música e tinha um sonho mínimo, um sonho de brasileiro pobre, que era beber sozinho uma garrafa de Guaraná Jati...




Três Sócios de Futuro


Em Cachoeira Paulista havia um farmacêutico, o seu Osvaldino, que era vesgo, neurótico e usava uma perna de pau, à moda dos piratas mais antigos, com a qual ia furando o chão por onde pisava. Por outro lado, em Taubaté, havia um propagandista, o “Mãozinha”, cujo apelido lhe botaram graças a um defeito ortopédico que adquirira em criança e era responsável por uma redução no tamanho da sua mão direita, a qual teimava em permanecer aberta, virada para cima e tremendo quando caminhava. Em Tremembé morava o Filadelfo, um propagandista antigo, que era marcado por um defeito na perna direita, que lhe mantinha o joelho fixo. A perna permanecia sempre esticada e o pé ficava voltado para fora. Quando andava, era arrastado no feitio do rodo caseiro —desses que nossas esposas usam para puxar água no quintal.
É muito importante observar bem as características físicas dos três futuros sócios para que você entenda porque haveriam de ter sucesso na sua nova sociedade. Correu no Vale do Paraíba uma notícia, divulgada pela “rádio pasta”, que os três homens de visão acima citados tinham comprado uma grande chácara na região de Cunha.
Sempre curiosos, os propagandistas que recebiam aquela notícia ficavam pasmos e logo perguntavam:“Mas o que vão fazer o Osvaldino, o Mãozinha e o Filadelfo com uma chácara?” “Vão cultivar milho!...” Respondia de imediato o portador da notícia e explicava:”O Osvaldino vai na frente abrindo o buraco, o Mãozinha espalha a semente e o Filadelfo vem atrás tampando a cova...”




O renomado médico de Caconde

Um belo dia, chegou na filial uma carta do Zerbini, um propagandista dos mais eficientes e cultos que conheci. Em longo arrazoado solicitava um trabalho científico, internacional, sobre o último lançamento que estávamos fazendo em cardiologia.
Sua carta dizia que um “importante e renomado médico da cidade de Caconde, solicita trabalho internacional a respeito do nosso último lançamento e precisamos atendê-lo, sob pena de perdermos um importante receituário”. Nosso gerente, grande gozador, respondeu com outra carta: “Solicito ao nobre colaborador informar onde fica a “renomada” cidade de Caconde...”
Até hoje, não sei se o Zerbini entrou na brincadeira ou se não entendeu, e mandou a resposta por telegrama: “Caconde fica em São Paulo, bem na divisa com Minas Gerais, pertinho de São Sebastião da Grama...”
Na filial, rimos muito, pois ninguém sabia aonde ficava também a minúscula cidade de São Sebastião da Grama, o que piorava a situação... Mas alguns dias depois, claro, o Zerbini recebeu o trabalho solicitado pelo “renomadíssimo” médico de Caconde...

FIM
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