Correio Braziliense - 18/8/2009
Enquanto posso
Jarbas Passarinho
Foi ministro de Estado, governador e senador
Duas hospitalizações por doenças graves, que em regra geral levam ao porto de onde se embarca para as viagens de que não há retorno, e ainda convalescendo pouco mais que precariamente, tento cumprir dois deveres, um fraternal e outro político-memorialístico, este quando ainda satisfaço ao teste de velhice inventado por Cícero.
O primeiro refere-se ao general Del Nero Augusto, que Deus nos levou faz cerca de um mês, quando minha enfermidade, dadas as restrições médicas, me impediram de saber a infausta notícia, a fim de poupar-me de abalo sentimental na ocasião. Tive-o agora. Perdi um amigo com a dor que se sente perder um pouco de nós próprios, daqueles que, por suas qualidades morais, Sheakespeare disse que à nossa alma devemos prender com colchetes de aço. Conheci-o no dealbar do terceiro milênio, quando tive a honra de prefaciar-lhe o mais bem escrito livro histórico que cobre os períodos de atuação extraconstitucional, ou não, dos militares ao longo dos momentos turbulentos da vida nacional.
Embasado em intimidade com a literatura marxiana e também antimarxista, descreveu as três tentativas armadas de os comunistas dominarem o Brasil. Ótimo que o tenha feito como advertência aos que o general Del Nero chamou de "jovens idealistas equivocados", para não virem mais tarde a sofrer dolorosos arrependimentos, frutos da "paixão revolucionária" de que fala, amargurado, François Furet, no Passado de uma ilusão. Sereno, mas fiel à s suas convicções, desprezou os fanáticos que são nutridos de ódio ideológico, o mais perverso dos ódios.
Deixa-nos o general Del Nero um exemplo de vida, acendrado amor à pátria e o dever de não desesperar da natureza humana, capaz de todas as grandezas e das mais baixas torpezas.
Acompanhei muito pouco - e felizmente - as ocorrências lastimáveis que têm dominado o noticiário sobre o Senado, que presidi em 1981/82, e onde, representando o Pará, desfrutei três mandatos. Dez anos fora dele passei na direção de quatro ministérios da República. De onde em onde, um ou outro debate provocava minha memória e despertava o desejo de manifestar-me. Inutilmente, depois que li, num de seus constantes improvisos, o presidente da República manifestar a suspeição que lhe causam os conceitos políticos expressados por idosos.
Venci o preconceito porque posso dizer, enquanto me resta o tempo de vida que Deus me concede, porque vivi intimamente o turbulento período marcado pelo ciclo militar, no qual tive a companhia de políticos da maior envergadura moral, definidos por Marx Weber como os que "vivem para a política e não da política". Entre eles se destacava José Sarney, cujo currículo, para nós honroso, se iniciava com a origem entre os jovens, mas já respeitados democratas da " bossa nova da UDN". Nunca o vira contestado senão por adversários aliados a certo soba do Maranhão. Entre os que lhe são ainda aliados li algo que precisa ser desmentido em protesto dos fatos históricos indesmentíveis. Sempre voltados contra os militares, ousou o declarante inventar que José Sarney, se mais não fez pelo Maranhão e pelo Brasil, teria sido porque sempre sofreu oposição no ciclo militar, desde que, democrata inconsútil, protestou contra a edição do AI-5. Além de seu signatário, acompanhei de perto a discussão do Ato. Protesto respeitoso, que o presidente me mostrou a ler, fora de cinco senadores, tendo como 1º signatário Daniel Krieger.
Os radicais pressionaram ao máximo o presidente para cassar Krieger, mas ele jamais concordou. Todos continuaram na Arena. Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil, da total confiança de Costa e Silva, me disse que nenhum outro tipo de protesto contra o AI-5 chegou ao presidente. Deve ser nisso que o intrigante levantou a falsa hipótese. Dois fatos outros destroem a leviandade. Testemunhei-os. No governo Geisel, houve decisão de refazer todo o Diretório Nacional da Arena. Duas vagas Geisel destinou ao Maranhão, uma especificamente para o senador Sarney, que recusou porque, para a outra, fora indicado Vitorino Freire, seu desafeto. Geisel, então, foi além de respeitar sua recusa. Provocou 18 renúncias no Diretório, para preencher uma única, a fim de reconvocar o senador e elegê-lo presidente da Arena. Haveria maior prova de apreço ao senador Sarney, se os chefes militares não o prestigiassem? Finalmente, outro testemunho vivido por mim. Ao fim das medidas de Geisel para a abertura, haveria de emendar a Constituição, revogando todas as medidas de exceção, particularmente o AI-5. Quem o governo escolheu para relator da emenda, senão o senador José Sarney?
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