Mesmo clandestino, um grande número de abortos continua sendo praticado mundo afora, na sua maioria em condições desumanas, não raro deixando seqüelas irreversíveis nas mulheres - seqüelas físicas e psicológicas, frise-se. Alguns leitores enviaram mensagens sobre o artigo "Aborto e direito à vida". Os que se posicionaram contrários à descriminalização dessa prática reivindicaram, invariavelmente, suas convicções religiosas. Um poeta não se conteve, e vituperou através de versos que quem "conivente for com o aborto/ talvez, mais que estar vivo, esteja morto". Confessou-se inspirado no fato de madre Teresa de Calcutá ter dito que os países que legalizaram o aborto são os mais pobres. Equivocou-se a madre. Dentre os países que formam o G-7 (os financeiramente mais ricos do mundo), garantem o aborto os Canadá, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália e Japão. O sétimo, Alemanha, permite com restrições. Mesmo se a madre estivesse fazendo uma metáfora (seriam mais pobres em "idéias", "concepções" ou "espírito"), também é difícil incluir estes países como "pobres", tal a sua participação nas conquistas do conhecimento e na formação cultural da humanidade.
Uma advogada trouxe uma abordagem diferente para a discussão. Comenta ela que o mundo jurídico brasileiro preocupa-se com o aborto porque, teoricamente, seria tirar a vida de alguém. Mas esse alguém somente será considerado o nascituro que sobreviva ao nascimento. Desta forma, se o pai sofre um acidente de carro, enquanto seu filho nasce em uma maternidade, e os dois vêm a falecer, é de suma relevância saber quem faleceu primeiro, para que se estabeleça a ordem sucessória. E destaca: "É interessante notar a preocupação do legislador no que diz respeito ao direito sucessório, ao mesmo tempo em que, no mesmo direito de família, não há a preocupação em considerar a criança como um ser vivo enquanto ela ainda estiver no ventre da mãe. A diferença, para a doutrina, está no momento do nascimento. Se nasceu vivo, faz parte da cadeia sucessória; se já nasceu morto, nunca existiu para a vida civil. Daí que a gestante continua sendo ela, só, integrante na sociedade com direitos e obrigações. Vislumbra-se aí uma enorme contradição: por que, para o direito penal, o aborto é crime, se, para o direito de sucessão, a criança somente passa a fazer jus a direitos após seu nascimento?"
Certamente o tema é assunto de muito debate entre os causídicos. Enquanto continuam vigendo as penalidades a quem realizar o aborto, por continuar sendo considerado crime ("Os crimes nascem, vivem e morrem como as outras criaturas", escreveu Machado de Assis, como citou Ângela Canuto no seu "Memórias de um frasista"), fica valendo também o alerta do juiz titular da Vara do Júri de Campinas/SP, José Henrique Rodrigues Torres, lembrando que as hipóteses de "aborto legal" existem desde 1940:
"Entretanto, depois de mais de meio século do reconhecimento legal da possibilidade do abortamento nas hipóteses referidas" ("necessário" e "sentimental"), "até hoje, infelizmente, o Estado ainda não tomou providências concretas para assistir as mulheres que vivenciam tais situações, salvo raríssimas exceções. E não se pode esquecer que o Brasil, ao subscrever a Declaração de Pequim, adotada pela 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (ação para igualdade, desenvolvimento e paz), comprometeu-se a assegurar o respeito aos direitos humanos das mulheres. Mas não é só. Subscrevendo também a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o Brasil também se comprometeu a assegurar a assistência à saúde das mulheres. E não é só. O Brasil também subscreveu as convenções internacionais que o obrigam a dar assistência para todos os homens e mulheres submetidos a tortura ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, bem como a tomar providências concretas para prevenir, punir e erradicar toda e qualquer espécie de violência contra a mulher, garantindo especialmente assistência à saúde".
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