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cronicas-->Mar com cachorro-quente não combina -- 16/10/2009 - 07:42 (AROLDO A MEDEIROS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Mar com cachorro-quente não combina

Aroldo Arão de Medeiros
Há situações que ficam gravadas na memória das pessoas de forma que nunca se apagam, indeléveis como as tatuagens. Foi assim com o Virgilino, rapazote que nasceu pobre e cresceu mais tímido que pobre. O acanhamento, entretanto, não impediu que Virgilino se houvesse muito bem na escola: sempre entre os primeiros da classe. Nem atrapalhou as frequentes brincadeiras de infància: pião, pandorga, bolinha de gude. Mas o respeito aos pais e, sobretudo, o receio das reprimendas, tornaram Virgilino um tanto medroso.
Quando começou a engrossar a voz e pensar que já era um homenzinho, resolveu encarar o mar bravio, que esparramava ondas plenas de espuma a não mais de dez minutos de sua casa. E, cansado da escravidão caseira, desobedecendo as constantes recomendações dos pais, foi sozinho.
- Filho, tu vais sozinho? É perigoso, lamuriava a mãe.
- Já sou quase moço! Daqui a pouco estarei de volta, retrucava Virgilino.
- Mas muito cuidado, filho, ainda enfatizou ela.
Faceiro, deu os primeiros passos para fora da saia da mãe. Praia deserta. Sol ainda arisco, mal aventurando os primeiros raios. Virgilino temeroso, caminhando pela beirada, molhando só os pés. Mal deu uns passos em direção à rebentação, o imprevisto: um enorme buraco o levou para o fundo. Debateu-se, engoliu água salgada, gritou, submergiu e emergiu, berrou de novo. Embora a voz esganiçada, o grito abafado, um pescador viu o desespero do rapazola e lançou a tarrafa em sua direção. Virgilino agarrou-se como póde, desesperado, e conseguiu safar-se.
Na areia, desabou. Depois de uns minutos prostrado, abriu os olhos e viu um casal de jovens namorados que, abraçados, tinham os olhos arregalados para ele.
- Não é o filho do seu Zé do Porto? Ela apontou o reconhecendo.
Ao escutar o apelido do pai, Virgilino alegrou-se por estar vivo. Foi se erguendo devagar, ajudado pelo rapaz e pelo pescador. Quando ficou em pé o moço cochichou-lhe no ouvido:
- Seu calção está rasgado.
Virgilino colocou a mão atrás e constatou que o calção havia se rompido de cima a baixo, expondo despudoradamente a bunda. Voltou para casa com uma mão na frente outra atrás.
Depois daquele vexame raramente Virgilino foi à praia. E, quando ia, nunca entrava no mar. Só muitos anos depois, quando tinha que levar os filhos, nas tardes de verão, aventurou-se algumas vezes a dar uns mergulhos, mas quase batendo com o nariz na areia, tão perto que ficava da orla. Preferia gastar o tempo lendo sob o guarda-sol.
Mas isto foi muitos anos depois. Porque quando Virgilino entrou na faculdade e foi estudar longe de casa, morando numa pensão, ainda atendia todos os conselhos dos pais e seguia um ritual onde não havia riscos: da escola para a pensão e da pensão para a escola. Mas como o coração costuma ser um órgão desobediente, Virgilino, apesar de tudo, arrumou uma namorada. Moça bonita, dois anos mais velha que ele, já trabalhando. Ela foi mais que um namoro. Além de beijos, a moça costumava lhe dar apoio, conselhos, ingressos para o cinema, uns trocados quando acabava a mesada e, nas festas beneficentes, ela lhe municiava com boas doses de cachorro-quente que ajudava a vender numa barraca que sempre a família armava para arrecadar dinheiro que doavam a um lar de órfãos.
Virgilino fingia não aceitar, mas como a mesada era curta, vivia morto de fome. Então não resistia muito e se esbaldava nos pães, molhos e salsichas. Exagerava tanto que, depois, passava mal. Com frequência chegava a vomitar e lembrava do fatídico dia quando quase se afogara e também vomitara descontrolado.
Pois como eu dizia, há situações que ficam registradas na memória de tal modo que jamais poderemos apagá-las. Hoje, quando Virgilino vai à praia levar os filhos, o que mais lhe atemoriza é cruzar na areia com o vendedor de cachorro-quente. Nessas horas ele precisa segurar o impulso de colocar tudo fora, porque sente faltar o ar nas narinas, o ventre se revirar, e um gosto amargo, que ele teima em não esquecer, lhe chegar até a garganta. Mar com cachorro-quente não combina com o Virgilino.

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