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Contos-->O CARRO DE BOI -- 14/08/2021 - 17:48 (Roosevelt Vieira Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O CARRO DE BOI

POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

 

Campos é uma cidade no extremo sul de Sergipe. Nos dias atuais Campos é Tobias Barreto. Foi graças ao seu famoso poeta que Campos mudou de nome. Mas durante muitos anos Campos era apenas Campos e para muitas pessoas Tobias Barreto nunca deixou de ser Campos. A cidade faz fronteira com a Bahia. É o povoado Lagoa Redonda que recebe o sergipano tão logo ele passe a ponte que separa os dois estados. As pessoas da Lagoa Redonda trabalham em Campos. Tobias Barreto é a fonte de progresso da Lagoa Redonda. O povoado baiano e a cidade de Campos formam um todo político e econômico. Por isso a ponte que separa os dois estados é lugar de muitas histórias. Uma vez disseram que o Rio Real encheu tanto que cobriu a ponte e os baianos não podiam passar para Sergipe. O mesmo ocorreu com os sergipanos. Outra vez o povo comentou que durante as noites as pessoas estavam sendo atacadas na ponte por um homem misterioso. Dizem que o cidadão tinha duas cabeças. O homem de duas cabeças assustou o povo lagoense e tobiense por muito tempo. Ainda hoje, aqui e ali, as pessoas comentam sobre aqueles tempos. Mas nada se compara a história atual – o carro de boi. Diz o povo que o carro de boi leva quem quer seja e a pessoas ficam sumidas para o resto da vida: “Mãe, eu vou a Lagoa Redonda”. “Menino, uma hora dessa. Não vá não. Olha o carro de boi”. “Isto é só história mãe. Não tem nada de carro de boi”. “Não tem o que menino. Dona Cosmerina me contou sobre ontem. Ela viu o carro de boi de longe. O homem que pilota o carro tem os olhos de fogo, e os bois, no total de quatro, cospem fogo pelas ventas”.

Essa era a história que o povo contava. Se era verdade as pessoas não sabiam. Por isso Felizardo foi investigar. Felizardo nasceu na Lagoa Redonda e se criou em Campos. O moço tinha boa educação e pouco estudo. Ele parou os estudos na terceira série e ocupou seu tempo vendendo jogo do bicho. “Felizardo, deu o que hoje?” “Hoje foi o galo”. Felizardo não tinha nem pai nem mãe. Logo cedo a vida dura do sertão levou seus genitores. Felizardo se criou com dona Assunção. Com ela ele aprendeu as tradições de Campos, e a se virar para sobreviver: “Menino, vá pegar frete na feira”. Por muito tempo Felizardo pegou frete até que seu tio o indicou para o jogo do bicho. Felizardo ficou por demais interessado na história do carro de boi. Por essa razão decidiu investigar. Durante um mês ele passaria a noite na ponte para ver o tal carro de boi: “Sei não. Acho que essa história é furada”.

Com um casaco, um cobertor, uma garrafa de café e uma sacola de lanches Felizardo passou a fazer campana no abrigo logo na entrada da ponte. Era a segunda quinzena do mês de julho, o frio de Campos não dava tréguas. O pobre Felizardo estava determinado a esclarecer a história do carro de boi. Os primeiros dias foram de grande solidão, na verdade, ninguém parava para perguntar o que ele estava fazendo ali. Mas, o tempo foi passando e as pessoas foram se interessando: “Felizardo, viu alguma coisa?” “Não”. Algumas pessoas paravam para conversar com Felizardo e o comentário era sempre o mesmo: “Rapaz, deixa disso. Não tem carro de boi não. Isso é história do povo baseado nas lendas dos antigos”. “Mas, se viram, então, o carro de boi existe”. Pensou esperançoso Felizardo.

Uma noite muita fria veio a Campos. E com ela a presença de uma mulher idosa vestida em trajes de época; roupas do século dezenove. A estranha criatura que apareceu na ponte por volta das dez horas da noite puxou assunto com Felizardo:

- Meu filho essa ponte é muito antiga. Houve época em que ela era de madeira. Passava uma carroça de cada de vez.

- E era comadre. Como era nesse tempo?

- A Lagoa Redonda era só um fiapo de povoação. Existiam mais sítios e chácaras do que casas. O comercio era muito pouco. Campos, também, era uma cidade muito pequena. Passavam muitos carros de bois nessa época. Recordo-me do acidente de seu José da bica. Quando o homem ia atravessar a ponte com o carro de boi cheio de bicas. Os bois se assustaram e levaram a carroça para dentro do rio. Uma vaca teve de ser sacrificada. E seu José quase que deixou esse mundo.

- Você sempre morou aqui comadre?

- Sim, vivo aqui desde menina. Meus pais vieram de Rio Real fazer a vida em Campos. Aí ficamos por aqui. Pena que não tem mais carros de boi. Eu achava tão bonito ver os carros de boi passarem gemendo com aquele som de sofrimento.

- É, eu nasci por aqui, mas, nunca vi um. Mas esse carro de boi é diferente. Ele assusta pessoas. Eu quero ver se é real mesmo.

- Fica com Deus meu filho. Quem sabe você veja alguma coisa. A estranha senhora se despediu do moço e atravessou a ponte na direção de Tobias. Outra noite foi um homem de meia idade, também vestido em trajes de época; roupas do século dezenove ou anterior, que parou para prosear com Felizardo:

- Meu filho está fazendo o que aí? Uma hora dessas e você aí nesse frio. Vá pra casa!

- Oh, meu velho, estou aqui a esperar o carro de boi de que o povo tanto fala.

- O carro de boi meu filho? Ele não existe não. Isto é coisa do povo. Não tem carro de boi não.

- Mas o povo comenta. Desde criança que ouço estas histórias por isso quero averiguar.

- Já te falaram da prece que é preciso ser feita para ele aparecer?

- Não. E tem prece para isso?

- Sim, senhor. Antes do carro aparecer tem de rezar para o carroceiro e ter uma moeda de cinquenta centavos para dar a ele.

- Ah, eu não sabia que tinha isso não. Estou aqui todas noites há vinte dias e nada.

- Pois faça a prece hoje que ele aparece. Estou só brincando com você. Como disse não tem carro de boi. O homem sorriu e seguiu em direção à Lagoa Redonda. Felizardo fez a prece com a moeda na mão e ficou alerta. “Esta noite eu não vou cochilar. Vou ficar atento para ver o que acontece”. O dia amanheceu e Felizardo foi para casa. Nada de carro de boi.

Muitas pessoas em Campos sabem da importância histórica do carro de boi. Ele é um marco da colonização sergipana. Foi por meio do carro de boi que a civilização chegou a estas pastagens. Campos foi construída com a força do gado e da costura. Mas o boi chegou primeiro.

Felizardo continuou sua vigília no pé da ponte da Lagoa Redonda. As noites estavam ficando mais frias. Felizardo destemido fazia seu trabalho de investigação. Todas as noites foram marcadas por surpresas esquisitas. Desta vez foi uma criança que caminhava sozinha na ponte. Felizardo foi ter com o menino: “Que fazes aqui nessa hora?” “Estou procurando meu cachorro que desapareceu”. “Mas, isso não é hora de procurar o cachorro. Já está tarde”. Era meia noite. E Felizardo ficou preocupado com a criança: “Onde você mora? Diga-me que eu te levo em casa”. A criança disse que ele não se preocupasse pois ela morava logo ali perto. A criança apontou para casa. Era o famoso casarão da Lagoa Redonda. Felizardo deixou a criança em paz e a viu entrar em seguida no casarão. Isto foi um tanto estranho porque as pessoas diziam que não morava ninguém naquela casa há anos. Mas, Felizardo viu as luzes acessas quando o menino entrou. “Tem tanta coisa esquisita aqui na ponte”. Pensou o moço.

A festa da padroeira de Campos estava próxima. Nossa Senhora Imperatriz de Campos é louvada no mês de agosto. As pessoas de todos os cantos de Campos vão para sede do município fazer sua devoção. Mas desta feita Felizardo não participaria porque estava na ponte à espera do carro de boi. Ele ficava na ponte de seis da tarde a cinco da manhã. Por essa razão Felizardo levou o terço consigo no dia quinze de agosto, o dia final da festa. Felizardo via as pessoas da Lagoa Redonda passarem para ir à Igreja Matriz. Muitos diziam: “Felizardo não vai não para a festa?” A resposta do moço era sempre a mesma: “Vou não, esse ano não” Por volta das sete e meia, o horário da abertura dos trabalhos na Igreja Matriz, Felizardo começa a rezar o primeiro mistério do terço. O homem estava tão concentrado que nem percebeu que o movimento na ponte cessara. Estava tudo deserto. O vento frio de agosto soprava impiedosamente e com ele veio o gemido rangido das rodas de um carro de boi. O homem ainda não tinha percebido que diante de seus olhos estava um carro de boi. O carro veio lentamente rangendo suas rodas e parou onde Felizardo estava. O carroceiro de chapéu de palha na cabeça e vestes de couro permanece sentado como se esperasse alguma reação do moço de Campos. Felizardo levanta a vista e vê o carro. O homem se põe em pé e caminha na direção do veículo histórico: “Ei, moço, tudo bem?” O carroceiro nada diz e permanece como os quatro animais – quieto. Felizardo não sabia o que dizer ou o que fazer. Estava diante dele o famoso carro de boi, mas, o moço, agora, nada tinha em mente. Na verdade ele estava tomado de surpresa e um pouco de medo. Contudo Felizardo viu que o comentário das pessoas não procedia, pois, não havia olhos de fogo nem vaca soltando fogo pelas ventas. Era só um carro de boi. Pensou então o moço: “Vou subir no carro e ver para onde ele vai”. Felizardo sentou-se ao lado da sinistra criatura que conduzia o carro e esperou. Os bois tornaram a andar e atravessam a ponte rumo a Avenida sete de junho.

A cidade de Campos não era a mesma. As ruas eram de piçarra, a iluminação era de lampião e as pessoas se vestiam com roupas do século dezenove. Ninguém prestava atenção ao carro de boi que seguia rumo a Igreja Matriz. O carro entra na rua do Amparo. As casas eram poucas e as pessoas menos ainda. Todos estavam na festa da Padroeira. O carro dobra a direita onde hoje é a delegacia de Campos e atravessa a Avenida Gumercindo Bessa rumo a Igreja Matriz. Pelo caminho Felizardo via as carroças estacionadas nas ruas próximas à igreja. Seus cuidadores eram negros escravos. Felizardo chega aonde é hoje a praça Dom José Tomaz. No local havia um campo cercado de casas e a Igreja Matriz no alto. Haviam muitas pessoas indo e vindo da igreja. O carro para e o carroceiro fica em silêncio. Felizardo percebe que era o fim da viagem. Felizardo espera que o carroceiro diga alguma coisa, contudo, o homem permaneceu como uma estátua, no mais completo silêncio. O rapaz do jogo do bicho decide descer do transporte para ver a festa. A igreja estava tomada de pessoas. A Igreja Matriz não era a mesma. A igreja era pequena e defronte a ela não havia a praça que tem hoje. Existia apenas o cruzeiro. As pessoas lotavam os arredores do cruzeiro e da igreja. As pessoas conversavam sobre tudo. Alguns se prendiam aos temas políticos. A discussão maior era sobre o fim da escravidão e as consequências para Campos: “O imperador está muito simpático com a causa abolicionista, no entanto, ele não nos mostra como manter a economia funcionando sem escravos. O Brasil é um país que depende visceralmente da mão de obra negra”. “É, mas, o Barão não compartilha dessa ideia. A economia precisa continuar crescendo. Aqui, por exemplo, a criação de gado precisa se desenvolver”.  Felizardo viu que estava em um outro mundo, em uma outra época. Ele viu que a viagem no carro de boi o trouxe ao passado de Campos. Felizardo, então, perde o medo e decide ver tudo que for possível.

A Igreja Matriz tinha cinco portas. A da frente, a porta principal, e as outras quatro nas laterais, duas de cada lado. Felizardo tenta olhar para dentro do culto, mas, não consegue, pois, todos os lados da igreja estavam tomados de pessoas. Na grande maioria eram homens que assistiam à missa de pé. Do lado de dentro toda a nave da igreja estava tomada de pessoas. Havia uma certa hierarquia na posição dos lugares. Mais perto do altar ficavam as pessoas mais importantes, e isso ia decrescendo até os últimos bancos. De um lado sentavam as mulheres, do outro sentavam os homens. As crianças ficavam com suas mães. Felizardo queria a todo o custo entrar no templo religioso e para isso foi se espremendo entre as pessoas até encontrar um lugar na ponta dos pés perto do altar.

O padre rezava a missa de costas para o povo. Felizardo não entendia nada de latim. O povo repetia as partes da missa mecanicamente. Era, na verdade, um ritual vivido por aqueles que podiam entender. A grande maioria das pessoas nada entendia, mas, mesmo assim, o culto a Nossa Senhora continuava. A santa colocada no nicho acima do sacrário parecia não concordar com nada que estava acontecendo. Hora ou outra lágrimas caíam de seus olhos e os foguetes estalavam nos céus de Tobias Barreto: “Salve Nossa Senhora Imperatriz dos Campos”. Felizardo via tudo estonteado, parecia que o moço não concordava com nada que estava a acontecer: “Como é que o povo reza a missa nessa língua estranha?” “Isso é coisa do outro mundo”. Chega o momento da homilia. O pároco começa sua fala; a proporção em que ele discursa as pessoas tem suas bocas costuradas com fios de couro de boi. Nem as crianças escaparam. Mãos apareceram de imediato ao discurso do vigário e em seguida costuraram as bocas dos fiéis. Quando era dito uma coisa importante as pessoas balançavam as cabeças para cima e para baixo. Quando o padre fazia alguma censura o povo balançava a cabeça para direita e para a esquerda. Felizardo via tudo atentamente. A santa, nesse instante, se derrama em lágrimas: “Queremos agradecer ao dinamismo do coronel Meneses, e a sua doação de sete vacas e sete bois a nossa paróquia”. “Queremos também agradecer ao deputado Junqueira pela doação de vinte contos de reis a nossa paróquia”. A proporção em que o padre agradecia as doações ele ia ficando cada vez mais inchado. Sua barriga crescia o volume e o homem mal conseguia falar. “Não podemos deixar de agradecer ao nosso prefeito Sr. Dantas pela doação de um serviçal para ficar à disposição da paróquia”. Nesse instante, a santa chora ainda mais. Suas lágrimas molham o altar e o padre entra em crise de soluços. O povo da sacristia busca socorrer o reverendo, mas, foi em vão. Os soluços cresciam, e com eles a barriga do religioso cresceu ainda mais. Neste momento as pessoas entram em pânico. Quem estava fora queria entrar para ver o ocorrido. O padre entra em crise de soluço ainda mais forte e vai se deitando no chão. As pessoas do lado de fora gritam: “O padre morreu meu Deus!” O padre auxiliar Vicente pede a comunidade para ficar em prece. O padre se engasga com o último soluço e abre a boca de tal forma que se vê saindo dela a cabeça de um bezerro. O bezerro sai vivo da boca do padre o deixando inconsciente no chão. O bezerro sai pulando no meio da congregação. As pessoas apavoradas não sabiam o que fazer. A plebe que estava do lado de fora empurra as pessoas das portas para dentro e invadem o santuário. O bezerro é devorado ali mesmo. Felizardo nunca viu tamanha fome. Do pobre animal sobrou somente os ossos. Com isso a festa foi encerrada. Não havia mais atmosfera para se fazer nada. Felizardo procura o carro de boi. O mesmo o esperava no lugar onde o havia deixado. Em silêncio Felizardo volta para ponte da Lagoa Redonda. O carro para, o moço fica em silêncio por um momento. O que ele havia visto não podia ser contado a ninguém. Era uma coisa que o jovem guardaria até o túmulo. O carroceiro, finalmente, dá sinal de vida. O homem se vira para Felizardo com voz mansa e pergunta: “Você viu?” Felizardo responde: “Sim”...

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

  

 

 

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