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Contos-->BOCAS II - O RETORNO DAS BOCAS -- 10/05/2022 - 10:05 (Roosevelt Vieira Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

BOCAS II

O retorno das bocas.

 

Eu vi as bocas quando eu era um adepto das artes mágicas. Eu estudei a magia de Anuacã. Nela me formei e por ela faço a caridade. Eu nem imaginava que elas viriam novamente. Minha humilde pessoa descia a rua do Fórum em direção ao Conjunto Irmã Dulce quando vinha uma viatura da polícia tocando a sirene.  Fiquei a pensar sobre o que poderia ser. Cheguei a minha casa 10 minutos depois e liguei o rádio velho que ficava em cima da estante de livros. O noticiário dizia que uma pessoa havia sido encontrada morta cheia de mordidas por todo o corpo. Eram mordidas de todos os tamanhos. Pelo menos umas dez bocas moderam o rapaz de 21 anos que trabalhava entregando gás. Segundo o investigador José Nunes pode ter sido um ritual de antropofagia pois parte da perna e da barriga haviam sido totalmente devoradas. Nunes ainda diz que o ataque foi pelas primeiras horas do dia por que o sangue estava fresco. A polícia procura por suspeitos no Bar de Márcia.

A polícia foi investigar o Bar de Márcia porque lá as pessoas consumiam entorpecentes. O bar recebia gente de todo tipo, mas, de preferência usuários de drogas e jogadores de sinuca. A polícia sabe que a vítima foi vista por último no Bar de Márcia. Segundo um morador de rua que dorme na frente do bar, Austeclínio Gonzaga saiu do estabelecimento por volta das quatro horas da manhã. Caminhava trôpego e falava sozinho.

Ouvi as notícias e voltei para os meus afazeres. Tinha o almoço para aprontar, carne para preparar. Então me ocupei até minha atenção ser quebrada com mais uma notícia. O rádio dizia que uma senhora tentou suicídio porque viu a boca de sua finada mãe a falar com ela. Era só a boca. Segundo ela a boca de sua finada contava coisas que aconteceram a trinta anos atrás. Com medo e assustada a mulher tentou pular da varanda de sua residência. As pessoas assediadas pelas bocas contam que as bocas muitas vezes chegam conversando. Elas são um tanto clarividentes.

Eu percebi que estava claro que uma coisa muito séria estava a acontecer. O surgimento de bocas vindo do nada era uma coisa demasiadamente sinistra. Então fui a biblioteca consultar os velhos livros de Campos. Campos tem uma vasta coleção de grimórios sobre ocultismo e ciências ocultas. Passei alguns dias todas as manhãs procurando sobre bocas sinistras. Descobri que em Campos 7 mulheres tiveram suas bocas costuradas com fios de couro de tripa em 1798. No ano de 1754 a senhora Maria Pereira teve sua boca arrancada num ritual de magia negra realizado na casa de seu Aitofel Menezes. Aitofel alguns anos depois teve uma morte misteriosa – o homem foi mordido até a morte por um mendigo que ficava no largo do Mercado Público.

Eu trouxe comigo o Grimorium da lua. Em casa eu queria estudar os ritos de Quiubanda de Marcos Augusto. Para mim parecia bom saber sobre a ação dos magros negros na formação de formas mentais deletérias e que podem ter a forma de boca. Esse mago famoso se destacou na criação de espíritos artificiais. O Grimorium dizia que era possível a criação de espíritos/forma/bocas por meio do sacrifício de uma vítima para Maimom. Por meio da energia deste espírito seria possível animar quantas bocas quisessem. As bocas deveriam ter réplicas feitas de cera e guardadas em um local seguro protegido por um enorme pentagrama lunar.

Mais uma vez liguei o rádio. O programa “A voz do Vale” estava no ar. A rádio noticiava somente as notícias do dia a dia de Campos. Nada de estranho ou assustador. Dei graças a Deus, deixei o rádio ligado e fui me ocupar. Preparei o cuscuz para o jantar e assei uma calabresa para comer com café preto e cuscuz. A mesa minha pessoa implicou com a imagem de minha boca comendo no espelho que fica do lado esquerdo de onde sento. Via minha boca e percebia o quanto ela era agressiva mastigando a comida. Vi que as bocas são armas letais. Senti uma pressão no maxilar. Minha boca saiu do encaixe e subiu na minha frente e me disse: “Você sabia que as pessoas morrem pela boca?” Em seguida, senti a boca voltar para o lugar. Ao encaixar no maxilar ela batia os dentes um no outro como se estivesse sentindo muito frio. Comi, assisti um pouco de rádio e depois fui me deitar. Como moro só deixei a janela do quintal aberta. De minha cama eu podia ver a lua crescente. “Em uma semana ela estará cheia”. Pensei eu. Logo veio o sono e adormeci. Sonhei que Campos estava infestada de bocas. Eram bocas de todos os matizes. Grande, pequena, apertadinha, larga, negras, asiáticas e brancas. Na praça do Cruzeiro as bocas se reuniram para protestarem. Uma boca grande com dentes fortes decide falar: “Em nome das bocas de minha mãe e de meu pai, eu gostaria de dizer que nós bocas devemos nos unir em prol do projeto de fazer o ser humano valorizar suas bocas e fazer um mundo melhor. Quantas bocas entre nossos irmãos não tem nada para comer! Quantas bocas doentes com dentes cheios de cáries e outros males! As bocas têm o direito de falarem o que quiserem sem serem importunadas. Toda boca deve ser livre para comer o que desejar! Viva todas as bocas de Campos! Vamos mostrar aos homens que quem manda neles somos nós. Todo homem é controlado pela sua boca!” Então, depois deste discurso as bocas organizaram uma manifestação na praça da Sé para chamar a atenção das bocas da fé. Estas não quiseram se envolver. Optaram pelo silêncio, mas, alguns comentavam pelos corredores da paróquia que a boca do Cristo também mostrou agressividade quando estava no templo. O Cristo os chamou de ladrões e salteadores. Acordei um pouco tonto com este sonho. Levantei-me e caminhei para a cozinha esquentar um cafezinho. Eram três da manhã. Ainda tinha um bom pedaço de noite para dormir.

Depois do café voltei para o quarto e peguei no sono. Acordei de manhã com o sonho todo na cabeça. Liguei o rádio e fui fazer as coisas. O rádio passava a entrevista de uma dona de casa dona Cleones. A mulher falava sobre a necessidade de se lavar a boca antes de se falar do próximo pois afinal ninguém é melhor de que ninguém. Ela era veemente em dizer que quem não tiver pecado atire a primeira pedra. A senhora defendia seu filho que tinha o hábito de estar na rodoviária e bater algumas carteiras. “Meu filho tem o defeito dele, mas, eu que sou mãe sei que ele tem a alma boa. Gustinho não faz mal a ninguém nem a uma barata”.

Voltei para meus estudos sobre ocultismo. Marcos Augusto em sua obra Grimorium da Lua conta que conseguiu fazer espíritos de formas variadas. O homem conta que fez mãos, pés que andavam pelas casas assustando as pessoas. Pensei então que se houver bocas elas devem ter sido criadas por alguém. Decidi então procurar na internet a lista dos terreiros de Campos. Com um certo trabalho encontrei o terreiro de Quimbanda de Pai Osmar de Omolu. Eu vi que as pessoas usam o nome da Quimbanda, mas, eles praticam na verdade é magia negra, e a Quimbanda - a banda do Exus não é magia negra.

Eu tinha que investigar o espaço para ver se encontrava algum molde feito de cera de uma boca. Eu sabia que teria que haver um espaço guardado por um pentagrama onde os moldes seriam guardados e imantados por forças infernais.

Por dias minha pessoa montou guarda nas proximidades do terreiro afim de uma oportunidade para entrar quando estivesse vazio. O dia chegou. Foi numa terça pela manhã por volta das oito horas. Entrei no centro e levei comigo uma câmera para registrar tudo. O centro era formado por um hall de recepção e um pouco mais na frente o abaçá. A esquerda ficava o roncó que estava trancado. Logo em seguida uma sala trancada. Tentei abrir a sala, mas, eu precisava de uma chave. Achei em um armário de alvenaria uma lata cheia de chaves. Decidi testa-las na porta. Abri o espaço e não encontrei pentagrama nem moldes de nada. Era apenas uma sala dedicada a reuniões mediúnicas com espíritos sofredores.  A casa de Osmar de Omulo era uma legitima casa de Quimbanda de luz.

Voltei para casa decepcionado comigo mesmo. Como duvidar dos outros e ao mesmo tempo minha mente me perguntava como eu ia encontrar o espaço. Ao chegar à minha casa recebi a notícia da vizinha que encontraram mais um corpo todo mordido. Na verdade, ele foi mordido até a morte. O corpo era de um rapaz que atendia pelo nome de Zé Farias. O rapaz trabalhava na loja de moveis de seu Furtado. A cidade estava em alvoroço sem saber o que é que estava acontecendo de fato e de verdade. Para alguns eram mortes isoladas, sem conexão, mas, para mim, tudo estava conectado. A rádio local dizia que a polícia trabalhava na suspeita de um grupo de pessoas. No caso dessa morte foi um grupo de 25 pessoas que morderam a vítima. Quanto a mim, o meu sonho com as bocas e as vítimas mortas a mordidas apontavam para bocas assassinas e, portanto, a operação de magia negra. Por isso, minha humilde pessoa insistia na tese de que espíritos artificiais na forma de bocas estavam perturbando Campos e a qualquer momento poderiam realizar um ataque em massa. Fiquei em casa o resto do tempo. Eu precisava organizar meus pensamentos por isso acendi uma vela para o meu preto velho e pedi a ele que me orientasse sobre esse assunto. A vela tinha duração de quatro horas, mas, na segunda hora ela começou a brilhar de forma toda especial e aí eu entendi que o velho estava por perto:

- Salve meu velho encantado de Deus!

- Salve meu fio! Como é bom falar com você.

- Que história é essa, meu velho?

- Foram as bocas que se revoltaram contra os humanos. A bocas decidiram fazer o que mais gostam que é comer e falar.

- E agora, o que podemos fazer para mudar essa sorte?

- Vamos pedir a Zambi para as bocas acordarem do delírio. Um mago muito forte fez essas bocas. Ele deu vida as bocas e agora elas povoam Campos. Se atear fogo no pentagrama o feitiço será desfeito. Mas eu não sei onde fica escondido o pentagrama de Maimom. Tem um outro feitiço que o encobre de minha vidência. O velho se foi numa nuvem de fumaça.

Meu caro amigo, depois que vi o encantado meu coração se encheu de coragem e pedi a Ogum que me atendesse. Perguntei: “Onde está o mago mal?”  Ogum me respondeu que ia fazer a ronda. O Sr. Ogum de Ronda ia rondar até descobri onde mora o feiticeiro. Continuei meus afazeres em casa. Fui molhar as plantas. Enquanto as plantas eram molhadas fiquei a pensar na magia para fazer espíritos de formas mentais e como os bruxos usam isso para fazer mal as pessoas. Deixei as plantas e entrei para dentro de casa para escutar de novo o rádio para ver se tinha alguma novidade. Nada. O rádio tocava música dos anos 80. O ancora do programa Claudiomiro Guerra anunciava o programa “com amor se paga”.  Campos se aproximava das oito horas da noite. O povo não circulava mais pela cidade como cedo. Aqui e ali alguém passava pela rua. E foi no beco da Disney que Valter Neguinho foi mordido por três bocas que passavam por lá. As bocas falaram inglês segundo a vítima que quase teve sua vida subtraída. Sua salvação foi um catador de papelão que viu tudo e correu para ajudar. As bocas estão atacando pessoas. Logo a rádio deu a notícia. Agora as pessoas saberiam que são bocas mesmo os autores dos crimes.

Campos agora sabia que a autoria dos crimes era das bocas. As pessoas estavam com muito medo e ao mesmo tempo sem entenderem como as bocas ganharam vida sem seus corpos. O padre da cidade foi acionado e o mesmo decretou uma semana de jejum até meio dia na intenção de Deus socorrer o povo de Campos: “Vamos pedir a nossa Senhora para salvar o povo de Campos das bocas assassinas”. Disse o pároco da cidade.

Depois do ocorrido eu fui me deitar. Meu coração estava cheio de fé que a gira de Ogum trouxesse novidades sobre o paradeiro do bruxo. As três da manhã fui tomado por uma vidência. Eu via no alto de um monte o Senhor Ogum com seu sabre na mão. O cabo do sabre era alaranjado e o aço refletia a luz do sol. Na minha mente ele dizia: “Salve a pemba, salve a jurema”. “Terás vitória no combate contra o mal que está escondido na pedra grande do rio Jabiberi. Encontre a pedra e encontrarás o moço”. Acordei do transe e vi que o Senhor Ogum havia voltado da gira e encontrado o bruxo. Agora me restava enfrenta-lo. Voltei a dormir e me levantei as oito. O sol estava quente em Campos.

O mês de abril estava indo embora. No dia 23 seria a festa de Ogum. Os terreiros de todo o país fazem homenagens ao Orixá da guerra. Então fui a feira de Campos comprar mantimentos e também o material para a oferenda de Pai Ogum. A feira de Campos agora é todo dia. Todos os dias Campos recebe gente de todos os cantos. Havia muita gente comprando e vendendo na feira. Próximo ao mercado da carne um grupo de pessoas se formou para ver a dentada que deram no braço de um vendedor ambulante. Arrancaram um pedaço do braço do rapaz. “Eu estava aqui e senti a mordida e vi aquela boca sorrindo para mim”. Quando o rapaz disse a palavra boca, o povo entrou em alvoroço. Os seguranças tentavam acalmar as pessoas que estavam olhando para cima. O céu estava nublado. Havia uma nuvem gigante sobre a feira. Os trovões ribombaram e em vez de chuva bocas de todos tipos apareceram e começaram a morder o povo que atônito não sabia o que fazer. O ataque durou cinco minutos. Depois as bocas sumiram na nuvem.

O resultado do ataque foi um óbito e várias pessoas mordidas. Teve gente que perdeu um pedaço do corpo. Campos ficou apavorada. A rádio noticiava tudo e o povo se trancou dentro de casa. A ordem era ficar em casa. Eu peguei minhas coisas e fui para casa refletir sobre o ocorrido. “As bocas estão atacando a qualquer hora”. Passei o dia com Deus e os Orixás. As doze horas o prefeito iria falar com a população. Fiz minha comida e fui esperar o prefeito. O rádio contava em detalhes os ataques. Mas, um caso mais estranho aconteceu no povoado barroca. Uma senhora perdeu sua boca. Segundo as pessoas a mulher abriu a boca e o maxilar dilatou e a boca saiu da mulher. A boca dizia que havia chegado a hora em que as bocas das pessoas iam sumir e se juntar as outras bocas que eu suspeitava serem artificiais.  Logo depois desta matéria outras pessoas também perderam as suas bocas. No lugar da boca ficava um lugar vazio enorme. O prefeito de Campos tomou a palavra na rádio e disse: “Meu caros, sabemos que um fato estranho está a ocorrer em Campos. Bocas sinistras e assassinas estão atacando as pessoas. É preciso não entrar em pânico e ficar em casa. Sair somente nas necessidades. Que Nossa Senhora abençoe vocês”. Depois da palavra do prefeito o rádio voltou a sua programação normal.

Durante a tarde me dediquei a trabalhar o pentagrama de luz. No cardeal norte acendi a vela vermelha para Rafael; em seguida acendi a vela de Samael de cor verde; seguindo o pentagrama acendi a vela azul de Micael; na mesma sequência acendi as velas de Gabriel e de Orifiel. Com o pentagrama voltado para norte e devidamente iluminado entrei em sintonia com os cinco arcanjos e pedi proteção para mim e para Campos. No triângulo das evocações apareceu uma fumaça escura e em seguida o rosto de um homem que dizia: “Que queres tu comigo, Mestre “Airapanã?” Espantei-me com a raiva que o ser expressou e pedi a Ogum que viesse em meu socorro. Então falei com o homem de fumaça:

- É você que está por trás das bocas assassinas? Responda-me pela luz desta estrela!

- Os homens fazem o que querem com suas bocas e não querem pagar o preço? Não senhor, Campos e o mundo saberão a força de minha magia.

- Você sabe que sua magia fere a lei maior e você pagará caro por isso bruxo das trevas!

- Mas, não será você a me impedir.

- Eu irei até você mago negro. A pemba e a jurema vai comigo.

- Pois traga sua pemba que eu estou te esperando coisa velha e feia. O homem me chamou de velho e feio. Os dias em que eu estou nas terras de Campos remontam a época da colonização. Eu sou testemunha das guerras e conflitos que formaram essa localidade. E é por essa razão que eu acredito no futuro deste povo. Repeli o espírito e retornei as minhas atividades em casa. Eu precisava molhar as plantas que estavam desde ontem sem água. Molhei minhas amigas e em seguida fui para a varanda de minha casa refletir sobre o ocorrido. Enquanto eu fumava meu cachimbo cheio de fumo, alfazema, imbura e mescla meu preto velho chega para um dedo de prosa.

- O mago negro quer se vingar de Campos. Ele é a encarnação de Belchior. Ele sabe que as bocas indígenas comeram seu filho Pedro. Agora desperto seu espírito pela força da magia ele quer a vingança. Mas, não é só isso. As bocas estão tão vivas que estão atraindo as bocas naturais. Muita gente vai morrer sem boca. Você precisa se apressar.

- Mas, meu velho, como é que eu vou derrotar esse feiticeiro?

- Chame a nossa falange. A falange de Pai Guiné na próxima segunda feira.

- Está certo meu veio. Viva Deus!

As bocas continuaram a atacar o povo que andava na rua. Os hospitais estavam lotados de pessoas sem boca e cheias de mordidas. O necrotério estava com trinta corpos todos cheios de dentadas. Segunda feira ainda ia demorar. Mas eu tinha que esperar. E até lá? O que fazer? Decidi sair e procurar a pedra gigante do rio Jabiberi. Foi na sexta de manhã que fui até o rio. Peguei uma condução até a entrada da fazenda do finado Renato. Em seguida abri o portão e desci na direção do rio.  Acho que caminhei um quilometro e meio. O rio estava quase seco. O leito do rio estava quase todo exposto ao sol. Caminhei pelo leito do rio onde pude andar na intenção de encontrar a pedra gigante. Uma cobra cascavel cruzou meu caminho próximo a antiga ponte do Tourão. O lugar é muito pesado pois foi palco de muitos homicídios. Eu sabia que isso poderia acontecer, isto é, as almas de alguns mortos pedirem ajuda ou se oferecerem para ajudar. Uma moça que foi estrangulada na beira do rio me apareceu dizendo que ia me mostrar o lugar da pedra. Então fomos juntos conversando até o local. O espírito se materializou. A moça era muito bonita. Vestia uma roupa branca. Ela exalava cheiro de rosas. Conversamos sobre muitas coisas. Ela me contou que ainda havia almas presas na ponte e que eu devia fazer alguma coisa por elas. Prometi que na volta eu ia chamar os irmãos socorristas.

Chegamos a um lugar que tinha muitas pedras. Entre elas havia uma enorme. Ela media três metros de raio por quatro de altura. Devia pesar toneladas. A pedra não tinha marcas. Ela era toda lisa. A moça de branco disse que era ali. A realidade estava guardada dentro da pedra e era preciso uma chave mística para abri-la. “E agora que eu faço?” Pensei eu. “Como vou conseguir a chave mística? ” Falei com minha pessoa. A moça respondeu no meu lugar: “Você precisa encontrar o cemitério Kariri que fica próximo a fonte que dá início ao rio e encontrar a chave lá. “Mas, o que é essa chave?” O espirito de luz me respondeu que era o fêmur da perna direita do cacique Anuacã. Voltei com a moça para a ponte do Tourão e lá fiz a cerimônia socorrista. Risquei com minha vara magica um círculo de luz no leito do rio. Saudei as quatro foças e chamei os irmãos da corrente astral socorrista do Cruzeiro de luz. As almas da ponte me agradeceram a caridade e foram de uma única vez para o descanso. Despedi-me do espírito que estava comigo:

- Afinal, como é seu nome?

- Meu nome é Ana. Morri aqui porque tinha uma vida fácil no cabaré de Elias. Confiei num moço simpático e vim com ele até aqui, e aqui fiquei muitos anos. Um dia um Gnomo me apareceu e perguntou se eu queria me livrar da culpa, pois, o baixinho me conectou com os socorristas e eu fui. Depois me mandaram evangelizar as pessoas da ponte. “Fique aí até o velho aparecer”. Foi isso que me disseram. Despedi-me de Ana e retornei para cidade. Cheguei a minha casa na hora do almoço. Almocei e fui descansar um pouco. Por volta das duas horas liguei o rádio e este noticiava sobre novos ataques das bocas. Segundo a rádio as bocas estavam em todos os lugares. Corri, fechei as janelas e as portas. Agora eu só sairia na ordem do Orixá.

O número de pessoas mortas e de pessoas sem bocas era assustador. A cada momento crescia o número. A polícia não dava conta. Três policiais faleceram em confronto com as bocas. Um destacamento do exército estava a caminho de Campos. Muitos moradores com paus e armas de fogo saíram para lutar contra as bocas. Pela primeira vez o bruxo apareceu nas áreas de combate. Segundo o relato das pessoas um homem de fumaça foi visto defronte o supermercado G Barbosa. “Meu Deus ainda é sexta feira, Campos não vai suportar! ” Pensei eu. Na graça de Deus abri o triângulo das evocações e chamei Tupanzinho. Ele veio e me disse que o ataque ia parar, mas que eu buscasse logo o osso de Anuacã. Na verdade, as bocas pararam o ataque, contudo, o bruxo negro deixou escrito num outdoor posto na saída da cidade que as bocas voltariam mais fortes. Tupanzinho veio até mim e me disse: “Tenha fé!”

O resto da sexta feira passou muito rápido. Conversei com os vizinhos. Eles estavam apavorados. Não sabiam explicar como aquelas bocas viviam e porque elas tinham tanta sede de sangue.

O sábado amanheceu em paz em Campos. As pessoas choravam seus mortos e feridos. Depois do café, fiz um ritual de proteção e segui na direção do povoado Jabiberi. Lá no alto da serra ficava a urna de Anuacã enterrada em solo sagrado dos Kariris. Fui recebido no povoado por alguns mestres de pemba. Eles me contaram que eu teria problemas para arrancar o fêmur de Anuacã. O grande pajé Kariri era protegido por juremeiros e eles não estavam muito contentes com o homem branco. A matança dos Kariris deixou uma herança muito negra sobre Campos.

Os mestres de pemba me acompanharam até o alto da serra onde fica a nascente do rio Jabiberi. Uma mata fechada nos recebeu no topo da montanha onde ficava o cemitério indígena. Os moradores do povoado não andam por essas bandas. A tradição passa de pai para filho. Quando eu era pequeno eu vinha tomar banho no tanque que ficava no pé do monte. Por muitas vezes ainda criança eu via os encantados do Ouricuri subirem a montanha para aconselhar os juremeiros que ficaram presos as suas paixões. O juremeiro é um feiticeiro índio que não perdoa o que os brancos fizeram com seu povo e por isso trabalham no astral para fazer mal a psicosfera de Campos. No alto da serra os mestres bateram as maracas e chamaram os encantados da jurema. “Oh, meu juremal, oh, minha jurema!” Quando a maraca soou na mata eu virei Anuacã e todos me cumprimentaram. Uma ondina na forma de cabocla me mostrou a cidade de Campos e uma nuvem enorme de bocas sobre ela. O bruxo negro resistiu a Anuacã, mas, o mestre o repeliu com a pemba sagrada. O bruxo negro na forma de uma sucuri desceu até onde o rio engrossa e se enfiou numa loca. Anuacã pegou o seu fêmur enrolou num pano branco e o guardou. Quando acordei do transe nós já estávamos chegando perto do campo de futebol do povoado. Os mestres me disseram para me apressar, pois, as bocas estavam apressadas para destruir Campos.

O destacamento do exército chegou a Campos. Sob a liderança do Sargento Gonçalo os soldados e a polícia faziam a segurança de Campos. Mas no sábado a noite houve um combate ferrenho. As bocas vinham de todos os lugares da cidade e tentavam entrar nas casas. Algumas conseguiam e faziam um estrago grande. Houve tiros e muitas pessoas feridas. Mas graças a Deus que ninguém morreu.

O sábado foi embora e a madrugada de domingo começa com um novo ataque das bocas. Elas estavam furiosas e conseguiram entrar em muitas casas. Os moradores reagiram. As bocas podiam ser mortas. Baseado nisso a população partiu para o ataque. As bocas morriam, as pessoas ficavam feridas. Mas caso a pessoa não visse as bocas elas pegavam de surpresa e matavam a pessoa com mordidas no pescoço. As tropas do exército e da polícia lutavam com muita bravura. Orientado pelo velho que me acompanha eu fiz um pó de pemba e o soprei no cardeal leste. As bocas pararam, no entanto, o homem de fumaça apareceu a mim. Seu rosto eu vi numa nuvem negra. Ele me apontou um punhal feito de aço que se desmanchou em vermes que vieram contra mim. Chamei por Ogum. O Orixá me socorreu com uma capa dourada que neutralizou o ataque dos vermes transformando-os em pó. Eu repeli o mago negro com o encantamento de Salomão. Em seguida fui me deitar. O resto da madrugada foi em paz. Contudo o domingo prometia mais histórias.

Acordei cedo no domingo. Fiz as coisas e tomei café. Depois fui andar pela cidade para ver como estavam as pessoas. Cada um limpava seu quintal, ou jardim. As bocas mortas exalavam o cheiro de boca podre. Eram bocas mortas para todo lado. As bocas grandes fediam mais. O rabecão precisou levar três corpos para o IML. Não houve nenhuma baixa na polícia. Apenas pessoas mordidas. O hospital dava atendimento de emergência.

Ao meio dia, minha pessoa almoçou carne do sol com feijão tropeiro, arroz e salada verde. Descansei o almoço e fui para o meu quartinho onde faço as evocações. Joguei os búzios por Campos. O oráculo avisava mais derramamento de sangue. Eu sabia que não podia contar a ninguém o que eu via. As pessoas atônitas não conseguiam esclarecer os acontecimentos. Para muitos o que acontecia era coisa do outro mundo. Na verdade, isso era real. O mundo astral estava controlando Campos com suas formas pensamento. O que as pessoas não sabiam era que havia um vilão na história. Um mago negro que vivia no meio do povo que estava por trás de tudo. O bruxo negro era conhecido na cidade pelo nome de José Deodato. Ele é um homem que vive numa casa no conjunto Macaé. Sua casa é a maior de todo o conjunto. Ele age como uma pessoa comum. O que ele faz no astral é desconhecido das pessoas. Ninguém suspeitaria dele e de sua mágoa para com o povo de Campos. Para todos os efeitos, Deodato era um homem comum, embora rico. Em sua casa ele tinha o pentagrama lunar e com ele fez muitas magias que o conectou a ordem Azúrica ou as forças das trevas.

Certo dia Deodato usou o triângulo das evocações para ver suas vidas passadas. Por meio do triângulo o homem se transportou ao ano de 1699. Ele se viu como Belchior Dias Moreira. Deodato se fascinou com essa encarnação e resolveu se vingar de Campos pelo massacre em sua fazenda e a morte de seu filho Pedro. Deodato passou a estudar Goetia e a invocar os 72 espíritos depravados. Deodato se apegou a Maimom. Aprendeu seu pentagrama e o invocou para fazer espíritos artificiais. Com isso o mago negro de Campos se tornou um homem muito rico.

Meu espírito já sabia da história de Deodato. Eu sabia que ele desejava transformar Campos numa terra submissa a ele. Ele deveria ter mais coisas a apresentar. Cogitei sobre isso e entendi que na segunda feira, dia de Exu, ele vai usar todo o seu arsenal.

O domingo à noite veio. Liguei o rádio para assistir à missa das oito. O padre dizia que vivíamos momentos de terror, mas nós não podíamos perder a fé. O padre ainda acrescentou que dormíssemos em paz porque Deus estava no comando. Apreciei muito a palavra do sacerdote de Deus. Aproveitei o ensejo do fim da missa e fui rezar o terço de Nossa Senhora das Sete Lágrimas. Os pretos velhos vieram em um grupamento de mais de 20 espíritos. Eles traziam um vaso branco com um balsamo dentro. O cheiro era de rosas e flores. Derramaram seu conteúdo sobre minha cabeça. Em seguida ouvi a voz calma de Pai Guiné: “A falange de Pai Guiné chegou para te ajudar”. Senti um fervor em meu espírito. Uma certeza de que ia dar certo. Os pretos velhos me ensinaram a preparar uma pemba contra as bocas ou contra outras formas pensamento que pudessem aparecer. Pai Guiné disse que Deus ia ser conosco. Dormi a noite de domingo muito bem. Quando foi quatro horas acordei com um som dentro de casa. Era um assobio. Era um pequeno Erê dizendo que eu corresse para o rio, pois, a qualquer momento poderia vir um ataque. Tive pressa e fiz o que o Erê disse. Por volta das quatro e quarenta eu estava na beira do rio. Tomei o osso de Anuacã e bati na rocha três vezes. De repente a matéria da pedra começa uma transformação. A pedra se contrai e se expande, a pedra se enruga, e uma porta de ferro aparece. Bati com o osso novamente e a porta se abre. Dentro da pedra se apresentava outra realidade. O casarão do conjunto Macaé parecia uma casa de filme de terror. Tudo dentro e fora tinha um aspecto de sujeira. Cães pastores alemães me receberam na entrada. Cobri-me com minha capa e manto e passei por eles.  Contudo da porta da pedra até a entrada da casa eu tinha que passar por um grande jardim de plantas mortas. A nevoa me ofuscava a vista e o assobio sinistro de um vento que eu não sentia, mas que me perturbava a caminhada.

O casarão, escuro como a noite estava coberto de bocas. As bocas eram uma nuvem negra sobre ele. A porta estava fechada. A figura de um dragão afastava a todos que se aproximassem. Bati na porta com o osso de Anuacã. A porta nem se mexeu. Ouvi gritos vindo de debaixo da casa onde certamente tinha um porão. As vozes diziam umas para as outras: “Morte a Campos”. Olhei por uma pequena abertura bem próximo ao chão e vi que eram sacis que estavam agrupados como que esperassem uma ordem, um comando. Os sacis fumavam um cachimbinho. A fumaça do cachimbo se transformava em um egum. Os eguns enchiam a atmosfera do lugar. Um egum é um espírito de morto. Bem no centro do porão havia um pentagrama iluminado com velas pretas. Havia formas de bocas e sacis todas feitas de cera. O mago negro dizia as palavras: “Por Maimom eu ataco Campos”. O pentagrama ficou incandescente e seus raios iluminavam todo o porão. Uma forma de homem misturada com animal apareceu. Era um porco gordo com a cabeça de homem. Na cabeça, um chapéu estilo francês da época de Napoleão. O homem porco falava blasfêmias contra Deus e contra a humanidade. Subitamente todas as portas e janelas se abriram e as formas ganharam os ares. Os sacis saíram pulando com uma perna.

Eu entrei no porão por meio de minha magia. O osso de Anuacã se tremia na minha mão. O mago negro estava curvado contemplando seu pentagrama. Eu fiz o meu no ar e o dediquei as falanges de Ogum:

- Finalmente estamos cara a cara! Disse eu com autoridade.

- Você veio para o seu fim, velho! Mais uma vez fui chamado de velho. Estou nas terras de Campos desde os tempos da colonização. Cheguei da Europa numa nau portuguesa. Nessa época eu só um garotinho.

- Você veio ver como eu como as carnes de um bruxo atrasado como você, velho? Reforçou o moço suas palavras duras contra mim.

- Pare de fazer o mal e eu te deixo viver mago negro! Falei com a convicção de que os encantados estavam comigo. Enquanto isso, o ataque a Campos começa. Sacis e bocas juntos atacam pessoas nas ruas e nas casas. As bocas não paravam de falar blasfêmias contra o ser humano. Os sacis do mal cuspiam a baba do cachimbo. A baba era ácida e corroía com grande velocidade o tecido humano. As pessoas morriam corroídas e mordidas. Os urubus não deixaram a carne apodrecer e davam voos rasantes sobre os corpos. As forças de segurança estavam atentas, mas não conseguiam conter o ataque. Eram muitas bocas e sacis. Havia baixas entre as bocas e sacis. Quando um saci morria ele virava um pó preto. As bocas se desmanchavam como se fossem feitas de cera.

A população de Campos estava apavorada, mas, contudo, resistia firme contra os ataques.

A mago negro se pôs sobre os dois pés e conjurou o pentagrama contra mim. De imediato fui posto numa lagoa cercada de grades onde sanguessugas bebiam meu velho sangue. Senti dores por todo o corpo. Minhas forças começaram a sucumbir. Meus olhos ficaram foscos e não conseguia mais ouvir nada. No interior de meu ser chamei por Deus. Uma águia vinda das alturas posou sobre meu ombro direito e me disse: “Não temas, você vai viver”. Recobrei forças e risquei no ar o pentagrama de Oxóssi. Em seguida o Caboclo Águia Dourada me resgata do perigo. Tomei minha vara e apontei na direção do bruxo; conjurei Lebara para ataca-lo. Uma ventania forte de repente surgiu. E no meio de um redemoinho um homem negro apareceu. Era Exu.

Uma nuvem de pretos velhos desceu sobre o lugar. Ouvia eu vozes rezando e outras louvando a Deus. O Exu atendia aos pretos velhos. Quando eles andavam para a esquerda o Exu executava juízo sobre o mago negro. Um preto velho de nome Joaquim, filho de Obaluaiê, pediu misericórdia para o homem. O Exu que executava o juízo disse: “São as orações da mãe dele”. O mago negro foi acorrentado e levado para o astral. O homem que era mago que atendia pelo nome de Deodato acordou de seu pesadelo e me disse: “Eu pensei que era uma brincadeira”. A bocas evaporaram. Os sacis viraram poeira negra. Campos chorou seus mortos alguns dias. Depois tudo voltou ao normal. E eu pedi licença a Oxalá e fui para Aruanda estudar com os encantados...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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