A beleza do filme LIMITE, de Mário Peixoto (1908-1992), não se resume num exercício puramente estético que geralmente prima pelo objeto como a possibilidade de afirmação do belo em si. LIMITE, que começou sua realização em 1930 e foi – pela primeira vez – exibido aos 17 de maio de 1931, no Rio de Janeiro, numa pré-estreia não-comercial, traz em si mesmo o significante e o significado de um riquíssimo poema, sem a mínima pretensão de contar uma história ou sequer exemplificar um tema universal com situações particulares. LIMITE se impõe como uma obra de arte porque torna visível o invisível. Torna-se o desvelamento do ser porque o que tem para nos revelar é a própria natureza essencialmente limitada de nossa condição humana. Não se socorre de ilusionismos, delírios, entusiasmos ou experimentalismos. Também não se pode imputar-lhe uma espécie de realismo, tendo em vista que a poética do filme, em sua unidade e sua meticulosidade, se projeta – através do real – para fora dele mesmo.
O simples e comum em LIMITE é – ao mesmo tempo – complexo, considerando que não se trata de uma redução dialética e tampouco um vir a ser. No LIMITE, as coisas são. É dizer que as imagens que se concatenam não são narrativas e o desenvolvimento de suas três histórias são metamorfoses da imagem poética que se sucedem e se repetem desde o “prólogo”, passando pelo “clímax” e o “desenlace”, até chegar ao “epílogo”. Mas chegar ao epílogo já um estado do ser que permanece e que muda somente em sua forma de se a-presentar (tornar-se presente).
Sequer conhecemos os nomes dos personagens e não existe nada de suas vidas ou caráter. Estes personagens tão intensamente trágicos são quase irreais, mas são três histórias (ou formas diferentes de a-presentar) de três pessoas que vagam sem destino, e que estão no mesmo barco. É o barco do homem jogado no cosmo, no abandono, como se fora o re-conhecimento de bastardia da condição humana desvelada pela angústia, onde – a partir de cenas inusitadas de dor e descontração – nos mostra que o limite do ponderável é o imponderável.
Repetidamente, através das grandes panorâmicas meridianas pelos arcos do céu e do mar, estamos no vazio, feito uma espécie de necessidade de uma consciência “nadificante” e fenomenológica para que assim pudéssemos nos colocar num determinado plano, ou seja, estar diante de. Simultâneo e, também, repetidamente através de takes e close-ups, estamos na plataforma significante do limite: barco, algemas, cercas, janelas, portas e tantas outras imagens que nos levam a situações em que se inter-relacionam o universal com as circunstâncias singulares. São fatos e ações sem qualquer intenção de utilidade e que, por isso, nos trazem a necessidade de desfazer a separação entre a vida e a morte, ou uma tentativa de satisfazer o desejo de volta à unidade fundamental primeira: o ser da angústia que tem em si mesmo o itinerário da morte para uma consciência vigilante que se dissolve no indiferenciado. O vento, assim como os cabelos e outros enquadramentos, são personagens que se associam na desordem aparente.
LIMITE não é um filme mudo e pode ser compreendido como um discurso do silêncio, onde a música executada pelas mãos poderosas e presentes de Brutus Pedreira – interpretando peças de Satie, Debussy, Borodin, Ravel, Stravinski, César Frank e Prokofiev – torna-se um elemento básico, como se uma personagem desse discurso sem palavras e sem pretensões ilustrativas. É dizer que a música em LIMITE não se resume no costumeiro “fundo musical”, mas – sim – trata-se de um elemento importante como todos os outros que compõem a limitação de um poço sem fundo.
Enfim, LIMITE é a contradição do homem dentro de si mesmo, gritando a sua angústia entre a sede insaciável de infinito e a inutilidade de seus atos em sua condição decadente. A decadência de uma idéia que se fez do homem. E... que me perdoem os Griffiths da vida, mas no que diz respeito ao filme – do ponto de vista de sua condição de arte – cumpre-nos afirmar que para se falar em cinema faz-se extremamente necessário passar por Mário Peixoto e compreender que o cinema tem LIMITE.
Wilson Coêlho é poeta, dramaturgo, encenador do Grupo Tarahumaras e graduado em filosofia pela UFES