Coramina
O doutor Avelino já andava perto dos oitenta anos mas clinicava normalmente. Suas receitas famosas, com doses maciças de penicilina, “caíam” em quase todas as farmácias da cidade. O farmacêutico João Carvalho, também chamado de João Anormal, tinha sido seu colega de universidade e também continuava a trabalhar feito um garoto na sua antiga farmácia de prateleiras negras, todas esculpidas em pinho de Riga. O povo de Guaratinguetá dizia que a Farmácia Normal pertencia a um “anormal”, mas isto é outra história.
Certo dia entrou na Farmácia um cliente apressado trazendo mais uma receita de penicilina. Na receita, o doutor Avelino mandava que se aplicasse a injeção sem fazer o “teste” (o “teste” é sempre exigido nas injeções de penicilina para evitar um possível choque anafilático). O farmacêutico João, bastante experiente na profissão, recusou-se a atender à receita. Mas se propunha-se a vender o medicamento recomendando que o cliente procurasse o doutor Avelino para que ele mesmo lhe aplicasse a perigosa injeção. O cliente gostou da sugestão, comprou as injeções e retornou ao doutor Avelino.
Alguns minutos depois, o telefone da farmácia tocou insistentemente. Era o doutor Avelino, desesperado, chamando por socorro. O paciente da penicilina estava inconsciente, babando, estirado no chão do seu consultório: “João, traga urgente duas injeções de Coramina!”, gritava o doutor Avelino do outro lado da linha. O consultório era perto. O João pediu licença aos seus clientes e se apressou em atender àquela emergência. Chegou em poucos segundos e foi entrando. Lá dentro encontrou o homem da receita já praticamente morto. O doutor Avelino, lívido, tentava algumas manobras para ressuscitar o paciente. E disse, ofegante: “Rápido, João, prepare duas ampolas de Coramina! Rápido!...”
“Uma ampola apenas basta, doutor... uma ampola só basta! — retrucou o farmacêutico, que já se mostrara mais do que entendido no assunto. O doutor Avelino, puxando pelas suas últimas forças, certo de que perdera o paciente, esforçou-se para não explodir com o velho amigo e disse, fingindo uma calma que não tinha: “Uma injeção é pra mim, João, uma é pra mim!...”
Dia desses, fui a Guaratinguetá fazer um pedido especial ao santo Frei Galvão e aproveitei para visitar o lugar tranqüilo onde hoje se encontram os meus dois amigos que estão nessa história acontecida nos tempos da propaganda médica. Eles repousam eternamente ao lado do ex-presidente Rodrigues Alves. Mas para mim porém, que os conheci e sei da sua infinita bondade, eles foram mais importantes do que o mais famoso político local. Até um dia, querido João. Um beijo na sua mão, doutor Avelino.
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