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cronicas-->Uma dúzia de filão -- 18/10/2010 - 14:42 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Essa moça não é feliz. Todo dia está aí, atrás do balcão da padaria atendendo pessoas que precisam de pão e têm muita pressa. Ela enfia as bisnagas no saco. Sem vontade e sem motivo. Trabalha na padoca porque não conseguiu outra colocação. Na verdade, sinceridade?, nunca tentou algo diferente disso. Antes fora balconista de lanchonete no centro, caixa de loja de um e noventa e nove, recenseadora de alguma pesquisa do governo. Coisas assim. Se ela fosse Macabéa, ainda teria a desculpa de saber pouco sobre as alternativas, as chances, as oportunidades que a vida acaba dando. De quebra, ainda teria uma Clarice a lhe dar atenção e tratamento de estrela, um Rodrigo S.M. a sofrer por ela. Nem isso pode alegar: não tem sangue nordestino, nasceu aqui mesmo e estudou até o fim do colégio. Nem A nem E. Aluna tipo C, agora vende leite Tipo A para os metidos do alto da cidade. Sabe que poderia mais se tivesse ambição. Não tem. Preferia, se deixassem, se pudesse, ficar em casa, sem dor de cabeça. Sem aquela filha da mãe da filha do pai que é dono da padaria. Biscatinha! Faz faculdade de administração e curso de pentelhação todas as manhãs no caixa, olho comprido sobre o que fazem ou deixam de fazer cada uma das meninas de gorrinho de esconder cabelo. Os boêmios mauricinhos que saem da balada direto pro pão com manteiga na chapa e média sem requentar gostam pouco de cabelos enrolados no pão de queijo que engolem de olhos fixos nas bundas de cada uma delas. Gorrinho branco que nem guarda o cabelo todo. Sempre ficam aqueles fiozinhos novos aparecendo na nuca. Fios de cabelo de nuca talvez não gostem de pão de queijo. Preferia ficar em casa, mas lá também tem a mãe que não pode mais trabalhar e fica arrastando havaianas pela casa o dia todo. Se ficar por lá, tem que virar babá, dar banho, dar papinha, limpar mijo. Ninguém merece. Na padoca, pelo menos vê o movimento, fala de qualquer bobagem que não seja a doença da mãe, a loucura do pai, o futuro dela mesma. Adora falar mal da filha da mãe da filha do pai que é dono da padaria. E falar mal do dono da padaria também. Mineiro burro sovina. Paga o salário como se polvilhasse farinha de um saco quase no fim. Desconta tudo que cada uma comeu e bebeu durante o trabalho. Joga os bolos fora, mas não deixa nenhuma das meninas levar uma migalha que seja sem pagar. Por isso que deve estar rico, chegando todo dia de carrão, arrastando a mulher pra lá e pra cá como se fosse motorista de leva e traz. Se ela tivesse alguma ambição podia até ser mulher de dono de padaria, alugar cadeira no cabeleireiro e pintar as unhas de vermelho. Na padaria, nada de unhas coloridas. No máximo uma base sem cor e sem graça. Essa menina não é feliz mesmo. Se sorri, é como se não sorrisse, ou se sorrisse igual àqueles poodles que umas e outras trazem no colo e desfilam pela padaria como se estivessem numa passarela desses concursos de beleza de cachorro. Poodles sorriem o sorriso imitado de seus donos. Nem sabem que aquilo deveria ser uma demonstração de empatia. Sorriso sem riso, como o pastel sem recheio que eles vendem no balcão. Pastel de vento. Se aceitasse a provocação de alguém - do motorista, do professor velhão de ciências, da madrinha que mora em Santos, do frei beneditino, do sorveteiro - talvez fosse atrás de vencer alguma coisa: uma olimpíada de soletração, um concurso para um cargo de técnico do tesouro, um sorteio de margarina para ganhar um carro. Só que essa moça não é feliz e enfia mais uns doze pães no saco de dez e vê o papel rasgando em càmera lenta antes de o chão ficar forrado de cacetinhos que a velhinha de cabelo azul escolheu com cuidado. Antecipa a falação da grossa da herdeira do baguete e já calcula o desconto de quatro e oitenta no vale de amanhã. E a velhinha, com um sorriso de poodle com dentes amarelos, já começa a escolher outra dúzia de filão. Acontece, minha filha, acontece.

*Publicitário, professor e diretor do Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa. Não entende por que o pão francês não é francês na França...
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