Por quem me tomas?
Para MS
Penfield Espinosa
As telenovelas brasileiras de época algumas vezes ressuscitam deliciosas expressões que o tempo tentou apagar. Este é o caso das novelas que se passam no século XIX. Nelas freqüentemente se ouve a expressão:
-- Por quem me tomas?
Essa expressão indica um equívoco de pessoa e é usada tanto por golpistas cujo golpe foi ou está prestes a ser desmascarado, como por aqueles sinceros a quem mal entendidos ou preconceitos fazem com que se tenha deles uma impressão errônea.
Em Tabacaria, do grande Álvaro de Campos, "psicografado" pelo maior ainda Fernando Pessoa, há uns versos a esse respeito:
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Tabacaria, Álvaro de Campos.
É muito curiosa essa idéia. Carl Gustav Jung, o psicanalista suíço, falava de persona como uma máscara que a sociedade pespegava às pessoas e que era por elas assumida. A função da terapia, segundo Jung, era permitir que o paciente identificasse sua máscara e deixasse dela por uma identidade social muito mais próxima do que ele mesmo era na realidade -- o chamado Self.
Não sendo sociólogo, não consta (pelo menos nos mass media, nas informações disponíveis para a mass não especializada), o que Jung pensava sobre máscaras lançadas às pessoas sem que elas se identificassem com elas. Deve, é claro, ter havido alguma reflexão de Jung sobre esse tema, pois em sua época vários processos de estigmatização coletiva ocorreram: o dos nazistas contra os judeus e outras minorias, dos capitalistas contra os comunistas e -- neste caso houve a recíproca --, dos comunistas contra os capitalistas.
É tão curioso quanto incômodo se ver dentro de um processo de rotulação a priori: apesar de baiano, estou em SP há algum tempo e meu jeito neutro quanto a sotaques e modismos não atrai o preconceito dos paulistas contra baianos, hoje bastante moderado.
Contudo, durante minha época de faculdade, notei um fenômeno curioso: os alunos dos anos mais avançados (meus veteranos), através de seus líderes em fofoca --- ou "conhecimento a priori" --- traçaram para mim todo um perfil e uma identidade, sem absolutamente me conhecerem e sem ter qualquer amizade em comum.
Quando, por força de desciplinas optativas, discussões de movimento estudantil etc., eles vieram a ter contacto comigo, já tinham uma imagem formada de mim, tão forte que foram totalmente inúteis minhas tentativas de modificá-la.
Felizmente, não era totalmente desmerecedora de mim: havia alguns pontos nessa imagem que eram melhores do que o original...
Mas durante o tempo que convivi com eles, era através dessa imagem que me relacionava com os alunos mais avançados. Com o tempo, peguei o jeito, tomando cuidado de não me confundir com a imagem, pelo menos para mim mesmo.
São Paulo, 25 de junho de 2003
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