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Cronicas-->A menina precária -- 30/11/2010 - 20:46 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A bordo de um salto alto de doze andares, ela atravessa a rua rebolando tudo que tem. E tem mesmo muito, talvez de sobra. O vestido de malha em duas cores, colado no corpo feito tatuagem, era para lhe dar coragem para seguir a caminhada até a loja na qual trabalha como balconista. Comprou a roupa no magazine do centro, dez vezes no crediário, num pacote com mais duas peças em tudo iguais, menos na combinação de cores. Acha que, na idade dela, ou se mostra o que tem, ou não se chega onde quer. Agora ela só quer chegar ao outro lado, como fez a galinha que atravessou a rua.
As calçadas param a conferir se a compra foi bem sucedida. É essa plateia que a tira da certeza do salto, da segurança do vestidinho. As pernas grossas, como são grossas todas as pernas das meninas que moram onde ela mora, apostam corrida para ver quem chega primeiro ao meio-fio. Há pouco espaço para a operação: coxa ralando coxa, esmeril de celulites precoces sob a parte preta do vestido. A assistência percebe que a menina ficou sem jeito e intensifica os sibilos chulos produzidos pelos serventes de pedreiro que todo homem tem chumbado na alma ou guardado no bolso da frente da calça.
É possível até que ninguém tenha dito palavra ou soprado assovio. A calçada pode ter apenas seguido a sua vida de calçada com gente que vai e vem e vai outra vez, sem tempo nem vontade de olhar para os joelhos e tornozelos dela, ou para os peitos, que também se projetam para frente em busca da salvação da sarjeta. É...ouvindo bem, nada se ouve bem, além ou aquém, que seja direcionado a ela. Pode ser que o vendedor de bilhetes da federal, olha a cobra olha o pavão olha a borboleta, tenha a intenção de que ela arremate umas frações. No mais, nada em volta sabe dela.
E daí? Na cabeça dela há vinte homens que a secam em seu vestido e querem fazer com ela o que ninguém teve coragem de fazer ainda, mesmo que uns possam achar nela um "quê" de dada. Os pedreiros dos andaimes da cabeça dela quase a engolem viva, uivam e babam. Babam tanto que ela escorrega umas duas vezes antes de ver o salto do sapatinho ficar preso no vão do paralelepípedo.
Enquanto ela luta para se soltar sem perder a pose, sem descer do salto, eu que a observo do lugar em que me encontro, talvez um canto menos da calçada e mais da minha cabeça, chego a pensar em escrever algumas linhas mais ousadas, não na escala do erotismo, para o qual me faltam laudas de Nabokov, mas na escala da fantasia alegórica que teima em ver nessa menina tudo aquilo que é o Brasil e o seu povo.
É uma menina precária, ausência de quase tudo que um estudo mais cuidado quer desvendar, adultecida e adulterada mais cedo do que devia. Sua roupa é aquela, ela acredita mesmo que deva se vestir assim, mas há tudo de errado nisso. A sensualidade é emprestada de um anúncio de cosmético barato ou de uma capa de revista feminina comprada num sebo. Creio que é bonita, mas há tantas camadas de coisas as quais nunca serão dela sobre essa suposta beleza, que o máximo que se pode sentir ao observá-la é incómodo. Não sabe por que rebola, não sabe o que fazer com a atenção que talvez chame.
Aquelas pernas sustentam os anseios distorcidos de cada brasileiro. Gente que foi promovida de miserável a pobre, de pobre à classe média, de classe média a novo rico. Todos com suas falsidades amparadas por aqueles membros bem torneados de subir e descer ladeira, queimando sapato para economizar ónibus.
A menina precária é o Brasil precário, que está sempre atravessando a rua, sempre ficando de salto preso no paralelepípedo tão estranho a pés acostumados com o pó da terra. Brasileiros de salto alto e fincado no buraco do pavimento, à espera do caminhão Mercedes Benz que, logo mais, fará a curva sem cuidado e abaterá a menina que tentava chegar ao outro lado da rua em seu vestidinho bicolor. Se ela morrer, será como uma galinha atropelada, embora tenha vivido muito mais como um pinto molhado sem mãe, sem pai, sem pátria. Fiu, fiu!Piu, piu...

*Professor, publicitário e diretor do Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa. Sempre olha para os quatro lados antes de atravessar a rua.
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