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Artigos-->ATIVA FM: uma rádio, uma experiência comunitária -- 28/06/2001 - 23:40 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Em 1997, entre tantos outros acontecimentos que mudaram o meu percurso e me fizeram rever tudo o que eu pensava sobre a minha inserção no mundo, a convite de um grande amigo, Henrique Punk, que é compositor e vocalista da banda de rock punk, a FUNERAL, participei da criação de uma rádio comunitária: a RÁDIO ATIVA FM, freqüência 103,3, no Bairro Selmi Dei em Araraquara.



"Rádio Ativa,/ a FM do seu bairro tá no ar só pra você / é só sintonizar / 103.3" era a letra de uma vinheta que compus e gravei para a emissora.



O bairro SELMI DEI, avalia-se que tenha uma população de 23 mil habitantes, o dobro da população de alguns dos maiores municípios vizinhos. Rincão, por exemplo, com 10 mil habitantes, tem tudo o que uma cidade desse porte precisa ter, o mínimo: uma igreja no centro de uma praça, correio, bancos, lotérica, clubes recreativos, supermercados, delegacia, escolas, algum lazer (não muito, porque estamos no Brasil, e isso é supérfluo). Pois o SELMI DEI não tem nada disso. Tem uma agência do BANESPA dentro de um dos dois CAICs a que Araraquara teve direito, e alguns estabelecimentos comerciais de pequeno porte. No mais, 23 mil moradores com dificuldades enormes para pagar suas mesquinhas residências populares, enfileiradas sem nenhum padrão estético ou humano.



A Escola Estadual de Segundo e Primeiro Grau "Ergília Micelli", no centro do bairro, depois de uma fase em que chegou a atender pelo apelido de Bangu qualquer coisa, tal o descalabro reinante, chegou a se transformar, por obra de pessoas competentes e dedicadas às causas sociais, numa escola modelo.



A ATIVA FM foi criada nesse momento propício, transformando-se em poucos dias no centro de comunicação dessa massa de pessoas perdidas num bairro perdido a 8 kilômetros do centro da cidade, com uma grande extensão de terreno não habitado a separá-lo do bairro mais próximo.



Só não tínhamos a exata dimensão do alcance da emissora, porque ainda não haviam sido instaladas as linhas telefônicas residenciais. Os ouvintes que nos ligavam, faziam-no dos orelhões, poucos, espalhados pelo bairro.



Mas uma caminhada pelo bairro nos fazia saber que a ATIVA estava sendo sintonizada em praticamente todas as casas. Havia orgulho no ar. Pela primeira vez, o bairro se sabia existente, ouvido, ligado em causas comuns. Começaram a pipocar iniciativas populares, que a rádio ajudava a promover, como o movimento de decoração natalina das ruas, que decidimos adotar, transformando-o em concurso. E as festas se multiplicavam, a cada fim de semana num setor diferente. Serviços de utilidade pública intenso, cursos de bordado, empregos, serviços, perdidos e achados, tudo passava pela ATIVA.



O Selmi Dei se compõe de 6 setores de casas populares. Os mais novos, o 5 e o 6, ainda não foram asfaltados.



Mas a programação da rádio, pela localização da antena, no ponto mais alto do bairro e talvez da cidade, mesmo com os 25 watts permitidos por um projeto de lei, na época, ainda a ser votado, chegava a praticamente Araraquara inteira. Sabíamos que os programas de hip-hop, por exemplo, chegavam à penitenciária, num outro extremo da cidade, e que apenas em alguns poucos pontos do centro não se conseguia sintonizar a nossa freqüência.



Um show universitário, OXOUNOSSO, que levamos para o bairro, e que há 9 anos vem juntando o público universitário e não-universitário ao redor das manifestações artísticas dos alunos da UNESP e dos principais artistas da cidade e da região, inclusive lançando diversos talentos iniciantes, reuniu 700 pessoas no primeiro evento. No segundo, cerca de mil pessoas apinhavam-se ao redor de um tablado cedido pela comunidade católica São Francisco de Assis, ao longo de 4 horas e meia de espetáculo variado: dança, teatro, a escola de samba do bairro, bandas de rock, duplas sertanejas, mpb, humor, vídeo e performances diversas. Por trás desse grande êxito, a ATIVA FM. O bairro Selmi Dei, além disso, pela primeira vez chegava à mídia local, e como sede de um dos mais conceituados eventos culturais já produzidos na cidade.



Algum tempo depois, a lei que regulamentava o funcionamento das rádios comunitárias era aprovada pelo Congresso, depois pelo Senado e, finalmente, recebia a chancela do presidente da República. Mas, bem perto das eleições de 1998

(será que apenas por coincidência?), todas as rádios comunitárias da cidade e da região receberam a visita de agentes federais, que determinaram o lacramento de suas instalações e a apreensão, como no nosso caso, dos transmissores.



Com isso, o bairro Selmi Dei perdia a sua voz, voltava à estaca zero. Foi o desmoronamento de algo que se anunciava muito promissor, com as pessoas passando a assumir, orgulhosamente, a condução da vida comunitária, descobrindo-se capazes de iniciativas e de convivência harmoniosa.



Muitos outros bairros da cidade, e inclusive pessoas no centro da cidade, perdiam uma emissora com programação criativa e eclética, produzida por gente de carne e osso.



A ATIVA FM, entre tantas outras façanhas, transmitiu um jornal diário, com a cobertura das sessões da Câmara Municipal às segundas-feiras e entrevistas com praticamente todas as personalidades políticas diretamente do seu estúdio. Numa das edições memoráveis do jornal VOZ ATIVA, por iniciativa do então vereador Edinho Silva, hoje prefeito, os três membros da mesa da Câmara Municipal foram recebidos nas nossas dependências, e conversaram ao vivo com os ouvintes. Situado numa edícula (construção e instalações realizados por voluntários) ao fundo da residência do seu diretor/criador Henrique Punk, o estúdio da ATIVA era visitado, o dia inteiro, por ouvintes moradores do bairro e mesmo de outros bairros da cidade.



Mesmo autoridades apenas de passagem por Araraquara acabavam nos visitando e participando do jornal VOZ ATIVA, que a emissora colocava no ar, ao vivo, a partir das 18 horas. O nosso jornalismo passou a ser comentado em todas as rodas, e justamente porque recuperávamos uma relação direta com a população que já ninguém mais praticava, que as grandes emissoras de há muito haviam abandonado.



Foi, enquanto durou, a única emissora a ter uma programação exclusiva de rock n roll. O domingo era marcado por programação ao vivo: duplas sertanejas, bem cedinho, no horário nobre desse gênero, depois de muito tempo novamente ao vivo; um horário especial para as crianças, comandado por crianças do bairro; e grupos de rap e hip-hop na parte da tarde, gente com trabalho próprio e falando diretamente da emissora com o seu público-alvo.



Mas, invertendo o provérbio, neste país não há bem que sempre dure. A ATIVA FM, como tantas outras, foi calada.



Agora, mais de três anos passados, é com pesar que ouço, de um amigo antes morador do bairro, que estava de mudança. O Selmi Dei piorara sensivelmente, já não era o mesmo daquela época em que nos sentíamos a caminho de alguma civilização, fazendo a coisa certa, rumo a uma cidadania responsável, contribuindo para a tão decantada reforma agrária do ar (que o governo aprovou, mas não se deu), no encalço da divisão equitativa das possibilidades humanas de sobrevivência, na dignidade do livre acesso à comunicação e à expressão.



Segundo esse meu amigo, os assaltos são agora coisa do dia a dia. A droga assume o comando das relações entre os jovens. Gângues vão se formando e impondo um clima de insegurança para os moradores. E esse meu amigo é policial. Sabe o que está dizendo, sabe com quem tem de lidar, conhece a fundo a situação desse nosso Brasil profundo, cada vez mais distante do cumprimento da lei e da cidadania.



E nós, que criamos e conduzimos a ATIVA FM, sabemos muito bem que tudo isso poderia ter sido evitado. A experiência dessa rádio comunitária nos deu a certeza, antes teórica apenas, de que o Brasil seria um país viável, que populações esquecidas, como a do Selmi Dei, também aspiram a uma vida sadia e digna como seres humanos, à ordem, à organização, ao prazer estético, à comunicação, à expressão. Numa palavra: à cidadania.



Mas, depois de ter derrubado vários aviões, promovido os mais diversos distúrbios sociais, interrompido preciosos sistemas de comunicação, interferido perigosamente nas instalações dos hospitais, estabelecimentos públicos e escolares, aparelhos domésticos diversos, sobretudo os preciosos aparelhos de rádio e de TV que alimentam toda a população com sua programação eminentemente educativa, essa nossa perigosa emissora, com seus 25 watts de potência, algumas poucas pessoas se esmerando em ameaçar a boa ordem pública, foi lacrada.



E assim ela deve permanecer, salvo enormes e improváveis e imprevisíveis reviravoltas.



Para felicidade geral da nação?



Certamente que sim. Porque o governo, os políticos, as autoridades em geral, os responsáveis pela lei e pela ordem, eleitos que foram pelos cidadãos, mas, sobretudo e lamentavelmente, pelos não-cidadãos, também sabem muito bem, e muito melhor do que nós, que este país é possível. Esta vergonha, cada vez mais à vista de todos, poderia, se assim quiséssemos, se transformar numa nação.



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