Não era novidade para ninguém, muito menos para mim, que, de todas as jovens de raça ariana pura, o Fuhrer escolheu a mim por me julgar a mais estúpida e obediente. Porém, o que ele ignorava é que estava lidando com Eva Braun, e muito se engana quem acha que Eva Braun é só uma. Muitas são as minhas personas. Mas aquele filho de fiscal da alfândega, também conhecido como Senhor das Trevas, o Líder Supremo, julgava-me então uma avezinha frágil em suas poderosas mãos, eu era a sua massinha de modelar que ele carregava para cima e para baixo em Berchtesgarden, nosso retiro na Baviera. Eu, fingindo-me de tonta, posava para fotos ao lado dele e de seus "homens fortes": Goebbels (um intelectual arrogante), Himmler(psicopata do primeiro time), Rommel(sempre cheirando a camelo), Ribbentropp(taradinho), Goering(que mau hálito) e Leni Riefenstahl(uma moçona de ferro impertinente que filmava a tudo e a todos).
Em nossos jantares vegetarianos, eu costumava prestar atenção em tudo: nas conversas, nos tiques nervosos, nos silêncios, no timbre das gargalhadas, nos olhares trocados e, principalmente, no não-dito. Nas reticências é que residem as grandes traições da história. Acordos eram selados de uma só penada, para serem desfeitos no dia seguinte com uma troca de olhar. Pactos eram firmados com apertos de mãos e discursos, para serem rompidos com um meneio de cabeça. Stalin sem dúvida foi uma das vítimas destes silêncios do Fuhrer. Por isso, quando eu ficava ao lado do meu amado, procurava o máximo possível ocupar a sua mente com uma tagarelice improvisada. Não queria dar espaço ao silêncio. E se sobrasse para mim?
Houve apenas uma vez em que meu Fuhrer quase perdeu as estribeiras comigo. Aconteceu numa gélida noite do inverno alpino. Estava eu tranquilamente recostada em minha chaise-longue na frente de nossa lareira, lendo Crime e Castigo, quando o Líder chegou acompanhado de Goebbels(sempre ele) e aproximou-se de mim para bisbilhotar o que eu estava lendo. Sua expressão de repulsa,ao constatar minhas preferências literárias, só não foi maior do que a de nojo estampada na cara naturalmente nojenta de Goebbels. Os dois trocaram um sorriso de escárnio e se afastaram de mim para continuar o assunto que estavam discutindo. O tom de voz de ambos era até então sereno, o meu Fuhrer só se exaltando quando pronunciava as palavras Guerra Total. Nesses momentos ele chegava a gritar. Toda vez que esta expressão era alçada, vinha em urros - GUERRA TOTAL. GUERRA TOTAL. Meus ouvidos já estavam doendo e resolvi interferir:
- Querrrido, o que é Guerra Total?
Meu Fuhrer e Goebbels(ai) olharam para mim boquiabertos e retomaram a conversa só deles. Os gritos continuaram. Eu insisti.
- Querrido, quem é Guerra Total?
O Fuhrer, controlando sua raiva, virou-se para mim e disse, entredentes:
- Eva, querrida, Guerra Total é um conceito.
Eu concordei,balançando minhas mãos cobertas de jóias da coroa russa, e disse a ele:
- Ja, entendi, tudo uma questão de culturra...
E foi nesse exato momento que Goebbels, irado, me interrompeu e pronunciaria a famosa frase que erroneamente seria atribuída como sua tempos depois:
- Toda vez que ouço falar em cultura, tenho gana de puxar um revólver.
Que destempero, não? |
