Eu sempre achei que as centopéias só existissem mesmo em desenhos animados. No entanto ainda outro dia apareceu uma lá em casa. Tenho testemunhas. Foi a segunda vez que isto aconteceu. Da primeira eu vi, mas achei tão inverossímil aquela criatura ali deslizando sobre tantas pernas que preferi desconsiderar. A gente vê tanta coisa, pensa que existe mesmo e depois descobre que não era bem assim, que achei melhor deixar passar. Literalmente. Na segunda, com tantas testemunhas, desfez-se o engano e pude constatar que de fato existem. Fiquei aliviado. Um embuste a menos.
Pois então. Não há dúvida, centopéias existem. Ao contrário de certas obras públicas elas não ficam apenas no papel ou nas telas, elas existem de fato, com corpo e pernas. E que pernas, quantas pernas. Parada parece um pouco estranha, dá a impressão de que houve um certo exagero e que na realidade ela não precisaria de tantas pernas. Lembra aqueles casos de distribuição gratuita. Talvez tivesse sido gananciosa na distribuição de pernas e entrou muitas vezes na fila. Mas não, não foi nada disto. Andando é a perfeição, a leveza, o sincronismo. Uma maravilha.
Esta questão das pernas se é a grande característica da centopéia é também sua perdição. Quando puxei conversa, ela veio quase que agressiva dizendo que já não aguentava mais falar e mostrar suas pernas. Disse que as pessoas não vêem que ela é uma centopéia e não um amontoado de pernas. Ela tem coração, sensibilidade e inteligência. Não bastasse isto tudo, tem olhos castanhos muito expressivos. Ocorre que as pessoas só vêem as pernas, o que a deixa magoada, ferida em seu orgulho de centopéia completa.
Ela tem razão. Não será a beleza de suas pernas que a fará menos inteligente ou capaz. Ao contrário, sua capacidade em administrar tantas pernas, andando com tanta graça e equilíbrio, já é por si só um grande atributo intelectual. Mas como evitar a observação de tantas e tão belas pernas, andando em um sincronismo perfeito?
Tereza, este era seu nome, depois do desabafo inicial, acalmou-se e pudemos conversar um pouquinho. Como sempre acontece, nunca estamos satisfeitos com o que temos. Achamos que o que tem o vizinho é sempre melhor. Pois Tereza estava cheia de apreensões em função dos ensaios para o carnaval. Inscreveu-se no concurso para porta bandeira em sua escola de samba e tem receio de atrapalhar-se com tantas pernas. Acha que se tivesse apenas quatro ou cinco pares de pernas poderia ser mais ágil. Com apenas duas então, sucesso garantido. Vendo-a andar, com aquele leveza e sincronismo, não acredito que possa se atrapalhar. Ao contrário, deverá mostrar um bailado incomparável.
Mais calma, concordou comigo e ficou mais confiante. Ofereci um gole de cerveja para que ela relaxasse um pouco mais, mas recusou. Disse que quando bebe, demora quase uma semana para desenrolar as pernas.