Retirei o pickup do armário, limpei a poeira e liguei na tomada. Trata-se de um Tecnics professional adquirido há alguns anos. Fui à estante e, na pilha vertical de discos vinis, busquei na letra "B" de Brubeck. Lavei o disco e enxuguei-o com uma flanela estática e depois de todo esse rito frescural, ajustei o braço na faixa "Take five", uma peça em compasso sete por oito, composto. Essa melodia foi escrita por um saxofonista chamado Paul Desmond e o aficionado de jazz, sabe a quem me refiro. Nos bons tempos de Geraldo Casado, Washington França e tantos outros "loucos" pela música negra americana, as reuniões se davam na casa do médico Hélio Mendonça, cuja discoteca era umas três da minha. Às vezes virava-se a noite e comentavam-se os choruses e improvisos do bebop, do ragtime e das últimas correntes. Claro que não faltava o blues, o canto atormentado de Chet Baker ou o metal harmonioso e afinado da orquestra de Duke Ellington. (Não dou a mínima se você, amável leitor/leitora, me xingar de saudosista. Não é bem assim. Que mal há nisso?)
O prazer de ver/ouvir Dave Brubeck e sua banda é façanha prazerosa e vai além do mero saudosismo. O velho pianista, agora com noventa e um anos de idade, dedicara todo esse tempo à música negra. E, por falar nisso, foi o primeiro cara a introduzir no quarteto (The Dave Brubeck Quartet) um negão tocando contrabaixo. A ousadia lhe rendeu alguns problemas na década de cinquenta, bem antes de Martin Luther King encetar sua jornada em busca da isonomia racial. Seu longo sonho se realizara também na justificada presença das maiores figuras jazzistas, sua negritude talentosa, seu brado retumbante. O jazz não é somente uma música, mas uma atitude holística, universal, sempiterna. Suas raízes se fincam no gueto pobre e discriminado e nos suntuosos templos protestantes batistas, na América de todas as raças. Tantas vezes ouvi por horas a fio, Dave Brubeck inundar minha sala no pequeno apartamento de Casa Forte, onde, ao lado dos meus poucos e leais amigos, sorvíamos um coquetel de instantes etéreos, cuja principal motivação era o compasso binário e a inquietude singular do saxofone solando "Blue shadows in the street", que ousei inserir na trilha sonora do meu casamento, sob a sonoplastia do amigo Edvaldo Roque, na igreja do Rosário dos pretos. Dave Brubeck nasceu na Califórnia e dali correu o mundo, gravou muito, encantou a todos, inclusive os japoneses, com seu inesquecível "Brubeck live in Japan". Tenho um DVD antológico do festival de Monterey, pequena cidade californiana. Entre os principais nomes, inclua-se também Clint Eastwood, misto de ator, cineasta e pianista de jazz. Brubeck personifica a figura legendária do artista que, se comparado a uma boa safra de vinho da região de Napa Valley, é tão encorpado quanto ele, de cujo bouquet e degustação não se podem prescindir. Antes de ouvir com muita paciência os sons em stéreo analógico, sabia que alguns arranhões seriam inevitáveis. Mas valeu a pena, o ritual, a oportunidade e o longo prazer de ter sido contemporàneo de um artista inimitável. Em vez do já manjado minuto de silêncio, substituí-o por algumas horas de sons, alegres ou pungentes, fortes e pianíssimos que sequer a morte em todo seu espanto e simplicidade inexoráveis, pode interromper.
___________________________________________________________ David Warren BRUBECK - Concord-CA (06.12.1920/05.12.2012)
