TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (49)
Clarice Lispector, a escritora brasileira, escreveu uma obra chamada "A paixão segundo GH". Leia-a assim que puder. As paixões de GK são poucas e pouco têm a ver com a obra da escritora citada. Ratifiquei tais paixões depois do nosso reencontro. Não com a escritora, mas com GK. Ele tem uma primeira paixão, salvo equívoco, que é o vislumbrar o mundo, auscultá-lo e degluti-lo a seu modo. Por isso ganhei dele, GK, o "ENSAIOS, (SEM NOME) ET COETERA". Essa dádiva literária ocorreu recentemente em casa do meu vizinho PJC, que entre outras coisas é madrugador caminheiro, broadcaster e um cara generoso à beça. Dá-se que me convidou para que os três, GK, ele e eu, pudéssemos usufruir um dia de sol, numa ágape regida ao gadus mohua,* inventado e concretizado por Maria, sua chef de cozinha de há muito. GK, jamais em todos esse 50 anos em que nos rastreamos à distància, demonstrou qualquer distanciamento afetivo. Ao contrário. Ele é acessível, telúrico e corresponde ao ditame de que ser humanista exige algo mais do que a espécie pode sugerir. Nosso contato vem de longe. Egressa de uma época em que as pessoas sentiam seu espaço com sensores de extrema empatia, de fraternidade. Duvido, a meu modo, que tais sensores hoje ainda persistam. Isso ocorria há meio século, quando o Recife ainda mantinha certa sedução mauriciana, determinado charme cosmopolita e o mundo, menos personalista, parecia ser mais solidário entrepares.
A Avenida Conde de Boa Vista era apenas uma simples via de mão dupla sem espaçamento físico, de estreitamento sensorial, porque o automóvel não prevalecia ainda. Tergiversei e não falei da segunda paixão de GK. É o Clube Náutico Capibaribe, onde ele se impregnou tanto que lá bateu pelada, jogou futebol e até hoje integra seu quadro como conselheiro, consultor e personagem relevante que se faz ouvir e respeitar. Gustavo Krause Gonçalves Sobrinho, com quem pude privar várias vezes num terraço, estudando latim e, diga-se por justiça, auferindo de sua sensibilidade é um cara arretado. No almoço, durante e depois dele, pude ratificar minha admiração pelo homem que novamente revelou sem pejo ou vergonha: "Fui político por mero acidente". Imagina se ele tivesse planejado sê-lo. A mim, como um animal político suprapartidário, a frase emite um valor que para muitos conotaria de modo estranho. É que talento para a política, como arte de legitimar resultados evitando a ditadura do consenso, nem todos somos portadores. Ao contrário de sua filha, Vereadora, de quem herdou do pai desde tenra idade, a orientação teórico-prática para exercer a política num tempo de ceticismo e dar-de-ombros, ofício ao qual ela vem se desincumbindo com propriedade.
Na Casa de Tobias, alcunha longeva da Faculdade de Direito do Recife, Ã época, pude assistir ao ar livre, numa certa noite de 1968, GK cometendo seu discurso de orador-concluinte de Direito, justo no dia da publicação do AI-5. Que tarefa hein "seu" menino? Há um episódio que não posso esquecer de mencionar: as olheiras das alunas nas aulas de sábado, no curso de Psicologia da FAFIRE, onde eu lecionava Princípios de Administração Científica no horário nobre das sete e meia da manhã. E isso era obra de GK que, quando Prefeito do Recife, houve por bem criar umas tais feirinhas nas principais praças, a exemplo da praça do Entroncamento, próxima ao local onde auferia meu pão. Afora dizer que ele ficou conhecido como o Prefeito das favelas. Esse reencontro teria que acontecer, nessa abertura propícia das chuvas de verão. Encerramo-lo quando o conduzi ao SPA onde ele vem habitualmente em Camaragibe, região de Aldeia, a tentar a desintoxicação das mazelas que nos são próprias. Mais que lisonja, é um privilégio enorme, rever um companheiro contemporàneo, geminiano, que não dirige automóvel, aprecia uma boa cachaça e não veste a indumentária anódina do pensamento único nem da viciosa dicotomia direita-esquerda volver.
*nome científico do bacalhau
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WALTER DA SILVA
Camaragibe-PE,
13.01.2013
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