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cronicas-->TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (50) -- 20/01/2013 - 11:14 (Walter da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (50)

Valho-me do número cinquenta, neste dia de São Sebastião do Rio de Janeiro, para mencionar os fatos do sábado anterior. Reservo espaço para o morno da noite, apenas quebrado pela vivacidade da música, especialmente do jazz. O bucolismo e a escuridão silenciosa da mata atlàntica curvam-se perante acordes, choruses e pianíssimos extraídos dessa arte inspirada nos eternos sons da natureza. O local, incrustado nos quase confins da região de Aldeia/Camaragibe, se ilumina moderadamente para ouvir, sentir, deleitar-se. A audiência, nem tão especializada, mesmo assim prestigia o espetáculo, a despeito de alguns poucos mais barulhentos, exaltados nos efeitos da libação alcoólica. A "Bodega Camará" é um music-bar especializado em massas e regado à boa música: MPB e jazz. Ele se instala no quilómetro nove da rodovia PE-27, mais conhecida por Estrada de Aldeia. Não poderia ser diferente porque os proprietários, paranaenses, são músicos e gente que faz das oiças pavilhão da melodia imortal. Ao menos ali, no meio da mata, você não se vê obrigado a ver/ouvir os sons indigestos das novelas das redes de televisão. Nesse sábado 19 de janeiro, fomos presenteados pelo talento de três músicos, uma fração da "Contrabanda", que é o nome de um quinteto/sexteto conduzido por Edson Rodrigues, que se dá o luxo de portar três profissões, capitaneadas pela principal: a música.

Rangel e Enoque são os outros dois. Mas não se espere destacar alguma proeminência na execução do conjunto. Eles estão perfeitamente alinhados à simbiose provocada pela magia e o encanto estrutural dessa arte criada na negritude humana. O primeiro, um professor de música já aposentado da UFPE, cujo irmão não fica atrás; o segundo, apesar de o ter conhecido ontem, demonstra total domínio da percussão, uma bateria quase completa, se o ouvinte quisesse exigir chocalho e afoxé, presentes na arquitetura do frevo pernambucano. O que chama a atenção do ouvido exigente não é somente o produto sistêmico; no jazz, há que se considerar um todo harmónico, em que as partes são subsistemas interdependentes, haja vista sua característica primordial: o improviso. Para o leigo, aquilo mais se assemelha a um ensaio, nada mal, nada errado nisso. Dado o tema principal, todos e cada um per se, executam sua improvisação, sem contudo se distanciarem do tema central. No fundo, sem querer parecer estudioso, sou da música negra americana, um admirador visceral e não um mero espectador.

Evidente que faz mais de 50 anos que ouço jazz e, apesar de a ignorància se me entranhar, sigo em frente e ouço quase todo o dia, mesmo se não houver colocado um disco vinil no toca-discos. Edson, que posso e devo chamar de "requinta"*, não faz por menos, quando acolhe um instrumento de palheta. Sem nenhum favor, ele é um músico completo. Arranjador, maestro e ex-professor de vários centros de ensino musical, incluindo o meio acadêmico, a UFPE e uma passagem alvissareira na Sinfónica do Recife. Nos conhecemos faz 54 anos e, se não são poucos, são o suficiente para eu afirmar sem temor algum que Edson Carlos Rodrigues é um dos dez maiores saxofonistas do continente. O velho professor Rangel, meu lembrado amigo de tantas jornadas, faz do seu baixo acústico, um exemplo de sístole/diástole sonora, uma pulsação adequada, alinhada a uma imaginação fecunda e absoluto rigor e consciência do que está fazendo. Homo habilis sapiens, se posso me arvorar. A meu pedido o trio executou "Round midnight", essa pérola desenvolvida na concha criativa do eterno Thelonius Monk, o mais económico pianista de jazz de tutti tempi. Enoque, a quem conheço agora, feliz e agradavelmente é um excelente percussionista. Chamou-me a atenção o uso dos pianíssimos e cimballs no momento do solo de sax alto e nas improvisações sobre peças como "Caravan" que abriu a sessão. É fato que é uma página escrita para trompete, mas o trio dá conta e a gente se esquece da agudez do instrumento, mesmo quando utilizado na surdina. (Lembre-se de "na gafieira segue o baile calmamente").

Esse é o particular mundo do jazz quando vem povoado de gente que abraçou a profissão não por acidente, mas por inefável vocação, raro talento. Às vezes me pergunto por quê não continuei no ramo, eu que desde sempre recebi o incentivo de Edson, quando, na EIGAM-Escola Industrial Governador Agamenon Magalhães, aprendi as primeiras lições e pude abraçar um instrumento, o "bombardino": harmónico, sutil e contrapontista, em meio a uma floresta de sons numa banda de música escolar. Na coda final desta modesta análise, veio-me à cabeça um antigo poema de Vinícius de Moraes, fosse agora centenário: "matemos deus envolto em música"; nem seria preciso poetinha, porque Orpheu, o deus da música, permanece presente e onisciente onde houver um som de boa qualidade ainda que efêmero como os deuses-homens.

*pequeno instrumento do ramo das madeiras, menos agudo que o flautim
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WALTER DA SILVA
Camaragibe-PE
20.01.2013

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