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cronicas-->TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (59) -- 10/02/2013 - 10:11 (Walter da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (59)

"Você pode crer/o pior cego/é o que
quer ver". Millór (hai-kai/1956)

Num dos três piores dias de minha vida, cedi meu lugar no coletivo, a um cego. Ambos com os mesmos direitos codificados em lei, assim fiz porque, menos velho que eu, o cidadão não porta o privilégio de ver as cores do mundo e seus horrores decorrentes. Muito provavelmente há pouco tempo, alguém diria que houvesse feito uma boa ação. Se fiz, melhor pra mim. Mas essa atitude não anula o efeito da primeira frase. Explico-a detalhadamente quando oportuno. O homem, aparentando uns sessenta, me assegurou que completou cinquenta e seis e desde os menos de dois anos, jamais enxergou, ou não se lembra. Ao se mostrar receptivo e polido, resolvi perguntar-lhe o "desde quando", mas se o fiz foi apenas para fingir que, apesar de enxergar bem com os dois olhos, não estava bem. Vai daí, conversa puxa papo, ouvi-lhe contar sua história, narrando a total impossibilidade de detectar o colorido que a vida supostamente nos tenta deixar captar. Embora saiba que o não perguntado é óbvio demais: ele desenvolvera bem os demais sentidos. Não me disse a razão, nem entrou em detalhes desnecessários. Apenas me contou o suficiente para que eu, apesar do estado físico não muito bom, pudesse assimilar o quanto vêm sofrendo os deficientes visuais, um eufemismo inventado pelos legisladores.
Apesar de conhecer muitas cidades, fiz certo esforço para buscar na memória visual, uma que privilegie os cegos, os cadeirantes, os excepcionais. Ademais, as calçadas estão sumindo; os veículos particulares são os grandes contemplados, pois ruas foram alargadas e preparadas para o terrível casamento: carro versus estrada. Só que não nos iludamos, os carros, se fossem gente, já estariam com sinais explícitos de deficiência, consequência dos buracos. Evidentemente que as menores cidades ao redor do mundo, tentam facilitar o acesso aos cegos, mas em pequena quantidade. No Brasil, todos sabem que Curitiba ainda é considerada a menos problemática urbe, ainda que a orbe, como um todo, esteja de olhos abertos cobrando mais nas demandas coletivas. Se quiserem um bom exemplo de cidade bem cuidada, visitem João Pessoa. Claro que ainda não atingiu o ponto ótimo, mas tem feito o dever de casa. O inglês da esquina poderá contra argumentar: "more smaller more easier", quanto menor mais fácil. Alguns urbanistas profissionais, a exemplo dos israelenses, não querem fazer a diferença. Independentemente do tamanho, a receita é a mesma: ela envolve necessariamente a população, para que não dê de ombros na efetiva aplicação de seus direitos. Conheci alguns hoje famosos professores da USP, urbanólogos, cada vez mais perplexos com o fenómeno trànsito de veículos que se contrapõe ao tráfego de pessoas. São Paulo, capital, é um exemplo emblemático. Da primeira vez que lá estive, em 1963, se podia caminhar de uma ponta à outra, indo pela Avenida São João, sem se correr qualquer risco e de qualquer espécie. Não tente fazer isso nos dias correntes. Outro dia escrevi sobre o dispositivo dos peixes, a linha lateral, que os impede de sair dentro d´água esbarrando em seus semelhantes. Pois bem, com gente isso é impossível, ainda que sejamos possuidores de um cérebro altamente complexo, que nos proporciona, inclusive, enxergar bem os objetos, distinguindo suas características.
Reconheça-se, entretanto, que já se fizeram algumas boas modificações, isso graças à tecnologia, que, sozinha, não conseguirá atingir seu principal cliente: o ser humano. Alguns coletivos já possuem elevadores para cadeirantes, algumas poucas vias são adaptadas com rampas e... não! Calçadas, não conheço um bom quilómetro que ajude nosso cego, o homem a quem cedi meu espaço no coletivo. E ele trabalha numa mesa PABX com duzentos e vinte ramais, num expediente corrido de 9 da manhã às 5 da tarde, com intervalo para refeições. Confidenciou-me que no dia anterior a nosso encontro, chegara atrasado no PROCAPE, um centro cardiológico no bairro de Santo Amaro, Recife. Disse ele que saíra às seis e trinta da manhã, chegando atrasado no trabalho, lá pelas nove. Num trajeto que começa no início da avenida Caxangá, sentido subúrbio cidade, e que despende uma hora no período crítico do rush, ele levara mais que o dobro do tempo. Com a grande ascensão das "magrinhas motorizadas", o espaço ficou cada vez mais reduzido para conciliar a convivência, homem versus automóveis versus motos versus coletivos. Se nós, população, não reduzirmos nosso tempo dentro do veículo particular, difícil saber o que ocorrerá dentro de poucos anos. Colapso das cidades? Rodízio dos automóveis? Mais transportes de massa? Esperemos pra ver. Por isso, na medida do possível, utilizo os coletivos, claro, quando não há alternativa insistente para usar o automóvel.
Nas cidades tropicais, todas no Brasil, onde o verão é intenso e será mais ainda neste século, ideal seria pedalar a magrinha. Mas nem todos podem. Ah! Alguém estaria querendo me perguntar quais os dois outros piores dias de minha vida. Respondo incontinenti: o segundo eu não consigo me lembrar e o terceiro... Bem, não ficaria muito ético eu estar contando minhas idiossincrasias ao amável leitor. Duma coisa estou absolutamente convicto: se você puder evitar o tal exame de audiometria e seus derivados, faça-o. E não deixe de chamar um táxi. O que não consegui. Porque nunca passei por tão maus bocados, incluindo a grande náusea física, no pós-exame, muito pior do que minha profunda náusea mental.
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WALTER DA SILVA
Camaragibe-PE
10.02.2013
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