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Artigos-->Errâncias Filnatrópicas -- 11/08/2003 - 23:53 (Francisco Nazareth) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Errâncias Filantrópicas Urbanas: Deslocar a Modernidade



Como bem diz o meu irmão, a amizade pratica-se. Se existe, de facto, uma coisa que tento praticar é a amizade, algo que acontece, neste momento, de forma intermitente, por razões que me levariam a inculcar um traço auto-biográfico neste texto e que, de forma muito geral, se ligam a factores laborais e a factores espaciais. Essa intermitência permite-me, por outro lado, um acesso único a percepções de mudança que acontecem na forma de utilização do discurso filantrópico por parte daqueles de quem gosto e com quem gosto de partilhar ideias.

Devo enfatizar que essa percepção aconteceu recentemente numa conversa sobre a temática da(s) globalização(ões). Apercebi-me, até de modo bastante claro pela forma como fui “zurzido”, que grande parte dos meus amigos sofre neste momento do síndroma proto-contemporâneo do “pensamento único” (isto é, uma única globalização, uma única verdade, uma única evidência, um único facto, etc) incapazes, portanto, de abraçar a diversidade, de pensar a realidade como conjuntos de redes que se cruzam, de reflectir a sua visão como sendo apenas isso, isto é, uma perspectiva, um cenário possível, um dos “mil olhos” de que fala Nietzsche. Isto corresponde, por um lado, a um processo absolutamente moderno de reificação da linguagem, no qual se assume, quase que instantaneamente e de forma comum, que a linguagem tem uma relação perene com as coisas; por outro lado, dentro dessa mesma reificação da linguagem, assiste-se a uma abstracção absoluta dos conceitos através da qual estes não são discutidos por si (ex: ninguém, hoje, discutirá o poder e o valor intrínseco da palavra “democracia” … ao ponto de ela ter deixado abandonado qualquer tipo de significado, para ser contemplada como um cristal que ninguém sabe bem o que é, mas que todos defendem!), mas são colocados como anátemas acima do fluxo da linguagem e, portanto, para além da história e da sociedade nas quais se inserem.

Contra esta corrente unívoca, essencialista, tirânica e “evidente”, quero aqui argumentar algo diverso: exactamente que as formas de produção do discurso são inexequíveis sem a história do uso dos mesmos; que a reificação da linguagem, a abstracção dos conceitos e o triunfo do pensamento único (no qual aqueles que abandonam o “consenso fabricado” são tão guerreados como se fossem afegãos evadidos de Guantanamo!) são, também, para além de outros factores, produtos da inserção social da qual saem; ainda, que essa inserção social – e aqui toco no nodo do problema que quero focalizar – é fruto do modo como as alterações ao urbanismo modificam os comportamentos das pessoas, alterando com isso as estruturas pelas quais se constrói o seu pensamento.

Penso que, no sentido do que fica anteriormente afirmado, se assiste hoje a uma “losangelização” das cidades médias portuguesas, contexto no qual se inserem as vivências da maioria das minhas conexões filantrópicas. Essa “losangelização” deslocou os seus comportamentos e alterou o seu discurso. As pessoas de quem gosto vivem hoje mais em hipermercados do que em livrarias; habitam mais a auto-estrada (quer a física quer a da informação) que o café cosmopolita; falam mais através de telefones celulares e comunicam menos de forma interpessoal; fecham-se mais em casa em frente do televisor (ou nos “aidos de engorda” dos respectivos empregos) e praticam menos desporto. Tudo isto conduz a um estranhamento em relação à linguagem física e a um triunfo absoluto do discurso mediático (e dos valores que este veicula) sobre as formas de comunicação interpessoal. Que as transformações urbanísticas das cidades médias portuguesas se liguem a isto é, de certa forma, parte da temática que tentarei desenvolver em seguida. Usarei como contraponto alguns exemplos, nomeadamente o triunfo do impensado e do superficial na maior parte do urbanismo australiano (cujo modelo de cópia é o americano, nomeadamente o da Califórnia do Sul) e o modo como o alerta urbano em relação a essa desertificação tem vindo a marcar a tentativa para mudar a face da cidade onde me encontro neste momento, isto é, Sydney, na qual à terciarização dos espaços centrais – prática comum dos anos noventa – tem sucedido um certo esforço de devolução do espaço à comunidade, embora a preços incomportáveis.



1 – Univocidade vs. Diversidade



Tocqueville, um grande admirador do “projecto ilustrado americano”, disse um dia (talvez com uma certa consciência do “monstro” que se poderia avizinhar), a propósito da “democracia”, que “por debaixo de um termo que pode seduzir toda a gente, mas que se torna um cifra vazia, a democracia, enquanto forma política pode, silenciosamente, decair”. O mesmo pode acontecer com qualquer construção conceptual que seja feita sem a noção da realidade onde se insere e, portanto, apenas baseada numa lógica abstracta. Tal defeito do pensamento pode ser remontado a Descartes, cuja evidência maior não requer qualquer condicionamento histórico para existir. Trata-se, portanto, de um projecto de duplo sentido e, tendo isso em conta, duplamente paradoxal: primeiro não necessita da “realidade” para existir como evidência; após isso, transforma a realidade na evidência de si próprio. Tal cristalização no vazio era comum no discurso da sofística e tornou-se normal (quase uma normopatia) em muita da jurisprudência contemporânea. A adicionar a isto, existe toda uma tradição de reificação da linguagem e de abstracção dos conceitos que vai desde Platão a Hegel e sobre a qual não me vou debruçar aqui, uma vez que já o fiz em outros textos. O que permanece como carácter instrumental para esta discussão é o próprio papel politicamente tirânico que o discurso assume na modernidade. Trata-se de um paradigma que não discute a falibilidade da representação: as palavras não estão divorciadas das coisas, isto é, dizem-nas como elas são, fixadas no tempo e no espaço, na história, e portanto, transformadas em absolutos sem segredos. Uma vez que os signos são transformados em absolutas representações da realidade, eles transformam-se em categorias da mesma e, por isso, tornam-se abstractos no sentido em que “toda a gente” sabe o que eles significam, havendo, contudo, muito poucos que consigam proceder à sua narração. Dilthey problematizou esta questão hermenêutica através da diferenciação entre explicação e compreensão, embora não tenha chegado ao carácter precário do discurso , pelo menos no seu sentido ontológico. É por isso que o paradigma moderno é, acima de tudo, uma forma de essencialismo da evidência: tal carácter “indubitável”, transformador da palavra na ilusão do facto – e na criação desse mesmo facto (exactamente pela ilusão de que ele já lá está) – é exemplificável no poder da imagem mediática. A versão da realidade que é dada pela notícia visual não apresenta dúvidas nem autoriza um lugar para a distância crítica (não nos deixando “ver” que toda a imagem que “mostra” fá-lo exactamente porque oculta algo). O “quadro” (normalmente o televisor “cêéneénizado”) apresenta o “real” como estando “aqui e agora”, sem mediação, “directo”, insofismável, único e absoluto. O carácter desta ilusão é tanto mais ilusório quanto uma leitura distanciada permite, exactamente, pensar os antónimos: é que a realidade “essencialista” desse “aqui e agora’ é tanto mais uma mediação representativa (fruto do exercício de poderes sobre o discurso imagológico) quanto apresenta não o ser; tanto mais indirecta (filtrada, domesticada, enquadrada, ocultada) quanto aparenta não o ser; tanto mais um sofisma (fruto de “spins”, de distorções, de manipulações) quanto parece ser evidente; tanto mais problemática (intertextualmente valorativa, subterraneamente demonstradora de crenças, intrinsecamente ideológica) quanto parece absoluta. Só que estas “ferramentas” de desmontagem que estou a utilizar não podem, obviamente, sair de um pensamento único: por outras palavras, não estava reservada ao cartesianismo a tarefa de desmontar a contingência da tradição em que Descartes se insere; não estava guardada para o hegelianismo a noção de que a teleologia do progresso absoluto (em ciência, por exemplo, a ideia do conhecimento como um armazenamento contínuo) é uma ilusão. Para se fazer isso é preciso “correr por fora”, isto é, pensar de modo divergente, de modo precário, de modo fluido, isto é, abrir ao perspectivismo e ao princípio de que cada narrativa não vale mais do que o seu posicionamento enraizado nos discursos que a constroem. É com Nietzsche que se abre caminho à pulverização do pensamento único, mas é preciso esperar por Deleuze para perceber que cada discurso se situa numa rede de interconexões linguísticas e práticas (a que ele chamou “rizomas”) e é, também, preciso esperar por Foucault para perceber que o que se diz não é, em absoluto, “a mais pura verdade”, mas apenas “uma” verdade entre outras, isto é, um “regime de verdade” entre vários, construído em função de crenças diversas, de ideologias variadas, de poderes múltiplos e, também, de constelações de signos não necessariamente inocentes. Só um pensamento diverso, próprio de um paradigma permanentemente “a construir” (portanto aberto, metamorfótico, pós-moderno e precário), isto é, em devir, em errância, um modelo nómada, transiente, atribui as ferramentas necessárias à denúncia política do pensamento único e, consequentemente, da modernidade, uma vez que só ele permite desmontar a ideia de verdade absoluta e desmascarar a inserção das palavras em perspectivas e narrativas contingentemente precárias. Só um pensamento que abrace a diversidade e o fluxo, permite perceber a inserção social e histórica da linguagem, isto é, que cada argumento é necessariamente um argumento situado, um uso da palavra que reflecte um momento de um tempo (tempo esse que não é todo o tempo, mas o tempo de uma história, de um momento cultural e de uma viagem pessoal pelas circunstâncias e pelas coisas) e também uma discursividade fruto da mediação social que nela transparece. É por isso que, apesar de se entender como única, a modernidade (intrinsecamente europeia, fatalmente ocidental, inconscientemente imperialista e historicamente colonialista) é necessariamente situada: embora não entenda a diferença (é fatalmente racista e subliminarmente medrosa) ela situa-se na diferença, isto é, ela é pensável em função da diversidade e desmascarável em função da alteridade.

Entendendo-se como única, a modernidade expande-se na arrogância dos seus valores de triunfo: mede todos os tempos de acordo com o seu (dividindo o mundo entre “civilizados” e “primitivos”, entre “cultos” e “bárbaros”, etc.), mede, também, todos os espaços de acordo com o seu (separando os espaços “limpos” dos espaços “sujos”, os espaços “desenvolvidos” dos espaços “atrasados”, etc.). Mas é exactamente porque é possível um deslocamento do pensamento único para o diverso que é possível denunciar isto. Por outras palavras, é exactamente porque a modernidade não é única (nem temos todos que “chegar lá”) que é possível denunciar a sua ilusão de ser única. A ferramenta para fazer isso é um pensamento que abrace o diverso, isto é, um pensamento que, embora surja “de dentro” da tradição interior a essa modernidade, perceba onde começa essa sombra de modernidade que aniquila a possibilidade de cada um de “nós” ser esse mesmo “nós”, isto é, de resistir ao cinzentismo do unívoco.



2 – Urbanismo Impessoal



Uma das maiores formas de expansão do moderno reside, exactamente, no discurso do urbanismo. Vou argumentar aqui que uma leitura cuidada desse mesmo “logos” me permite aceder a violentos sinais de “losangelização” no contexto das cidades médias portuguesas.

Para já, quero dizer apenas que a hermenêutica do espaço não me é, de modo algum, original. Gosto muito dos trabalhos do pensador norte-americano Mike Davis sobre a morte das cidades no “novo mundo” (nas quais o subúrbio matou o civismo) e sobre o modo como o medo mediaticamente incutido tem atacado, sob a forma do automóvel, a possibilidade da(s) ecologia(s). Mas não só o pensamento filosófico tem vindo a problematizar esta questão. Muita da prática artística contemporânea (sobretudo em instalações que combinam vídeo, fotografia, e manipulação do espaço) tem debatido exactamente a ideia de que “a forma como o espaço é organizado é uma materialização da estrutura de desejos e, por isso, a arquitetura e o planeamento urbano revelam indícios de evoluções políticas e sociais que permitem prever (…) o futuro das sociedades”. Aliás, um dos trabalhos mais interessantes aos quais tive acesso nos últimos tempos em Portugal (um livro que combina fotografia e texto), chamado “Cimêncio”, revela, até no seu título, uma problematização política do modo como o espaço tem reduzido a vivência cívica das pessoas. Para já, gostaria apenas de dizer que esta reflexão que segue nas linhas que escrevo releva exactamente de uma preocupação socio-política contemporânea (e que faço aqui minha) com o método que os situacionistas chamaram de “deriva”, isto é, a errância do texto que, após a errância física, “escreve a cidade” escrevendo, com isso, a dimensão hermenêutica do urbano. Tal escrita do texto físico é, em si, uma preocupação teórica com a degenerescência desse mesmo espaço e com a desmaterialização psico-somática que ela provoca no pensamento das pessoas que o habitam. Em certo sentido, é possível dizer que a “tirania do conforto invadiu o planeta como uma doença mental: esta chama-se banalidade”, uma banalidade promovida por cidades que recusam a história na sua prática quotidiana, isto é, cidades que vivem como se não tivessem passado, isoladas no tempo e no espaço e envolvendo, com elas, as pessoas em espaços fechados nos quais elas (co-)habitam. Tal urbanidade decrépita é, em si mesma, promotora do conformismo, sintoma esse que encontro na “losangelização’ das cidades médias portuguesas. Chamo-lhe “losangelização” porque Los Angeles é, de facto, um lugar onde se pode estar em todo o lado e em lugar nenhum ao mesmo tempo; é uma cidade construída em função da ubiquidade do automóvel e onde é impossível andar a pé; uma cidade construída para o consumo e não para o convívio; para a troca simbólica do dinheiro e não da palavra …”this is a McDonalds “drive thru” … here … there … everywhere!” Ora isto está a acontecer naquilo a que chamo a cidade média portuguesa: lentamente, pausadamente, obrigando a cidade a esquecer o passado e a coverter-se ao subúrbio. Aveiro, por exemplo, é hoje uma cidade publicamente descentrada: o único centro público é, exactamente, um fórum (estamos longe da definição romana do mesmo) construído em função do consumo e daquilo a que Baudrillard chama “a troca simbólica dirigindo-se para a morte interior”, ou seja, o dinheiro. Para além disso, a proliferação de rotundas e o avanço do urbanismo para leste, com uma profusão ávida de construção que se estende até Azurva, Estarreja ou Quintãs (para não falar no oeste e no “encaixotar” das Gafanhas), fizeram crescer exactamente o “Cimêncio”. Com o “Cimêncio” cresceu também a crise do comércio tradicional: as livrarias e as mercearias deram lugar ao “efeito Carrefour” e, com ele, a um redimensionamento da compra em função do automóvel e da solidão isolacionista de um trânsito feito em função de produtos e prateleiras. Sendo assim, o consumo (e consequentemente a existência com ele identificada) do aveirense mediano é hoje manipulativamente malthusiano: cedendo à pirâmide invertida das necessidades, deixa na caixa dos hipermercados uma individualidade abandonada ao número, uma personalidade silenciada pela imagem, isto é, esvaziada de conteúdo pelo – e no – espelendor metafísico da compra. Esgotado pelo vazio na sua própria autenticidade, o cidadão erra sem sentido numa permanente “volta dos tristes” em concubinato com a auto-estrada e o automóvel. Em lugar da anterior vivência de café, lugar por excelência do debate, do confronto de ideias, da discussão, da diferença, o automóvel e o hipermercado transformaram o pensamento em narrativas de condicionamento pela publicidade, tanto do “outdoor” (em número crescente) como da TV, e as vivências em cenários dignos de “O Deserto Vermelho” de Antognioni. O discurso, que supõe uma dualidade, uma diferença, transformou-se em monólogo acrítico, em aceitação do disfarce da ficção em evidência; é por isso que a ausência de espaços (e de transportes) públicos, ou a ausência das pessoas desses mesmos espaços, considerados até perigosos, transformou o comportamento em algo privatizado, no sentido em que o abandono da solidão só é feito para dar lugar à compra. Substituindo, por seu lado, o diálogo de café, o telefone celular (no qual se consome tempo e informação, uma vez que esta é paga, ou seja, dá-se uma privatização da voz) surge em lugar do “face-a-face” como promessa de discurso num lugar virtual onde o olhar e o corpo (e, portanto, a confrontação) não existem. O cidadão assim empobrecido é, por isso, também, um cidadão da TV, um “telecidadão” onde, de facto, a cidadania se perdeu para dar lugar ao holograma isolado, o mesmo acontecendo a quem vive encerrado num escritório perante um “écran” o dia inteiro. Penso que foi Raoul Vaneighem, um situacionista, que disse um dia: “devemos desconfiar dos homens quando vestem fato e gravata”. Wright Mills, sociólogo americano, usava como metáfora para a anomia conformista a ideia de “colarinho branco”. Assim, sendo uma cidade com cada vez mais rotundas e cada vez menos cafés, cada vez mais hipermercados e cada vez menos mercearias, cada vez mais “Cimêncio” e cada vez menos casas com vizinhos, Aveiro, do ponto de vista urbano, tem vindo a “zombieficar” os seus cidadãos vulgarizando o seu sentido e afunilando-os em direcção ao televisor, ao silêncio do apartamento e ao discurso unívoco, isto é, um discurso feito de evidências tirânicas que não se vêem como necessitando de justificação. Errando pelas alas dos supermercados, pelas rotundas onde se fecham nos automóveis, pelas auto-estradas da internet e dos “acessos à compra”, os aveirenses conversam menos, dialogam menos e tornaram-se, por isso, menos abertos à diferença, menos respeitadores da diversidade e – agora que confrontados com o outro que lhes chega pela via da imigração proveniente daqueles lugares “Outros” que foram historicamente espoliados pela arrogante Europa -, medrosamente, mais racistas. Tenho vindo a descobrir estas questões dentro das minhas próprias “conexões rizomatico-filantrópicas”.



3 – O Afunilamento da Amizade



Tenho um amigo advogado com quem sempre gostei de debater ideias. Hoje vive encerrado nos sofismas da jurisprudência e inicia todos os seus discursos com expressões como: “Isto é assim” … “É evidente que” … “É um facto deveras indubitável” … ou, para finalizar, “Não podem existir dúvidas em relação a”. Para além de tais expressões, dignas de qualquer instituição carceral (recordo nelas a minha passagem pelo exército), manipula os discursos da alteridade, não deixando falar o interlocutor, julgando que pela interrupção do encadeamento reflexivo alheio a razão terá que ser absolutamente sua; o que é facto é que a “Razão” (do ponto de vista moderno e cartesiano de uma racionalidade universalista, matemática, quadrilátera e fechada) não deixa de ser dele. Tenho um outro amigo que foi, em tempos, uma pessoa extremamente curiosa em termos de sensibilidade musical. Hoje trabalha demasiado na sua própria contabilidade agrícola de capatazia e vê muita televisão. Não sai de casa e não gosta de debater ideias porque se sente inconfortável quando desafiam a certeza das suas convicções. Ainda, um outro amigo: faz demasiadas viagens de auto-estrada entre uma localidade no norte de Portugal e Aveiro; nessas viagens ouve rádio. Tornou-se mais, muito mais, calado e menos atreito a debates de ideias. Outro amigo meu trabalha num banco, fechado em torno de gestões de contas e finanças: números e racionalismo económico. Embora tenha algum visionarismo revolucionário, no plano intuitivo da sua prática quotidiana tem uma vida absolutamente normal. Não é isso que me entristece: o que me deixa melancólico é que ele queira ter uma vida ainda mais normal, isto é, mais “em conformidade”, mais acinzentada do que já tem (estabelece um dualismo quase tirânico entre a desejada solidão do seu deserto interior e a convivencialidade com os outros); isto, obviamente, nota-se mais no plano instintivo da acção do que no plano do discurso que é, muitas vezes, agradavelmente dissidente. Quando penso nele lembro muitas vezes uma frase do Woody Allen: “mais tarde ou mais cedo acabamos por vestir a capa cinzenta do conformismo”. A do Vaneighem, que citei antes, talvez coubesse, por vezes, ao meu amigo advogado. Tenho, ainda, um irmão que vive rodeado de parafernálias electrónicas. Em certo sentido, vive absolutamente “em rede” e, quando não está na rede virtual da informação identitariamente estranhada e descarnada, poderá ser encontrado sob o “efeito Carrefour”. Há, ainda, e para finalizar, um outro amigo meu que, embora não viva na mesma cidade, pode ser colocado sob a cinescopia do unívoco: a sua evasão, a sua retirada solipsista em relação à realidade que se vai arruinando pela falta de compreensão racional, reside na música e no cinema. Confessa-se “apolítico” (não percebendo que essa desideologização é, exactamente, uma função política de um sistema que quer pseudo-cidadãos dóceis e controláveis) e não gosta de debater ideias até à exaustão. Para finalizar, eu próprio – sim, este texto também me é dirigido – passo demasiadas horas em frente de um computador e já não consigo viver sem a sedução da “rede”.

Gostava que todos nós saíssemos deste fantasma moderno; gostava que fôssemos capazes de regressar ao “velho” café “Palácio”, hoje em verdadeira crise, fruto da terciarização do espaço urbano central. Voltaríamos, talvez, a ter uma nova vida cívica, a viver uma forma de humanidade mais autêntica, mais respeitadora da diferença e do discurso do outro, ainda, mais inflamada e menos indiferente. As minhas “conexões rizomatico-filantrópicas” são, assim, sintomas dessa desertificação da cidadania que atingiu o urbanismo médio português. Trata-se de um império da frivolidade, de um triunfo do impensado, de uma ode à lobotomia. Pude verificar, autobiograficamente, o que isso faz às pessoas na cidade de Adelaide e, em certo sentido, em toda a Austrália urbana e na costa da Califórnia. Estas realidades espelham um pouco o que pode acontecer à americanização da cidade média em Portugal ou, até, no resto da Europa (afinal, sofremos de colonização invertida). Tal cenário corresponde à autorização da continuidade dos processos de desertificação cívica. Penso que não queremos ver uma realidade em que as pessoas vivem “guetoizadas”, obesas, isoladas, complexadas e fechadas. Tal realidade, uma realidade povoada de xenofobia, de medo, de paranóia, acontece quando não existe comunicação inter-pessoal, quando não existe vida cívica e quando não existem espaços públicos. Num mundo onde toda a errância é feita de automóvel, não há lugar para a construção de uma intimidade autêntica, uma vez que se privatiza o desejo e se abandona o pudor à manipulação externa. Num mundo onde todos se cruzam em função do fascínio do consumo, não há lugar para a descoberta da diferença. Num mundo onde as pessoas vivem fechadas, a construção de um medo estereotípico do “Outro” produz racismo e desrespeito agressivo.

Em certo sentido, a cidade de Sydney está a tentar mudar este estado de coisas (ou seja, a realidade de tipo “Shopping Mall” à maneira de Adelaide, uma Los Angeles provinciana e em ponto pequeno). Existe uma tentativa para “desterciarizar” o centro urbano através do aluguer de estúdios a jovens (os que conseguem os melhores negócios são os que têm influência junto do poderoso “Lobby Gay’ da cidade). No entanto, a exorbitância dos preços a pagar torna essa vivência totalmente corporativa.

Devemos ter sentido crítico suficiente para pensar o tipo de urbanismo com o qual queremos que seja formada a imediatez do comportamento nas nossas gerações em devir. É nesse sentido que urge devolver o espaço urbano às pessoas, para que as pessoas possam ser, de facto, seres humanos autênticos e não manifestações do tipo de discurso reducionista minimal e moderno que tenho vindo a encontrar. Só “minimalizando”, de facto, as coisas (e isso fez, em certo sentido, parte do projecto do “modernismo” artístico enquanto utopia de libertação da arte em relação à tirania do acessório: de certo modo, uma luta contra a modernidade da racionalização linear, mas que incorporou essa mesma frieza, desde Mies Van Der Rohe a Piet Mondrian) podemos permitir uma “maximização” do pensamento, da emoção e da vitalidade. Só reduzindo a “segurança dos objectos” (título de um filme no qual se critica a anomia social do subúrbio americano) se pode permitir um regresso à funcionalidade inter-relacional das pessoas, de modo a que o discurso não esteja preso e possa, então, fluir em significação construtiva para lá do estranhamento.



Sydney, Agosto de 2003























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