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Cronicas-->TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (69) -- 17/03/2013 - 15:00 (Walter da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



TRADIÇÕES, CONTRADIÇÕES (69)

Poderia ter sido um domingo comum. Haveria de ser mera e habitual jornada dominical. A pouca chuva caída legou um leve cheiro de terra e alguma preguiça. As aves, de cócoras na varanda, sacodem as asas a secar respingos de garoa. De susto e meio ensopadas, olham-me virando a cabeça através da vidraça do portal. Ainda sonolento assisto a esse ritual familiar. Muito cedo, já me liberei das alvíssaras desse mundo curto e espaçoso, plural e monótono. A ciber-página dos jornais que li, traz o que coletou alhures, sem o mesmo nenhum compromisso comigo e com ninguém. São folhas insistentes por alguma ordem universal e suposta ética. Ali se agrupam os fatos do dia; acolá se reúnem os temas dominantes, quase aqueles de ontem, anteontem... Já não me emocionam, já nem me emociono. Apenas os leio sem o mesmo prazer de outro dia, quando curtia de mãos erguidas, como se fossem bandeiras, as notícias do jornal. Começa a semana e um novo périplo. Pelas horas e na policromia da paisagem. Vez por outra me distraio e tropeço no descaminho de minha consciência. Por haver sonhado contigo, de vestido bege, meio bizarro que nem teu sotaque interiorano. Retorno à minha pausa de alguns dias. Lá está teu olho cinza, teu cabelo despenteado, tua boca cheia de incerto riso. Mas esse olho acinzentado finge participar dessa instabilidade; cansou de enxergar o que não vê.
Por isso, irresoluto, vou a esse encontro. A mim me cabe recolher letra por letra do seco palavreado, teu básico vocabulário. E não é porque nada entendera. Não é porque tenha perdido o rumo sob uma bússola, que juraste de dedos cruzados sobre a boca, ter orientado nosso itinerário. Sigo em passo firme e disposto como no início, quando tudo era quietude e entusiasmo. Avanço qual fosse um Quixote semirreal e cheio de dúvidas. Vou muito mais pela incerteza do que propriamente por curiosidade. Se era antes por algum temor, hoje é de mera pirraça. Nosso reencontro já está fadado ao fracasso, antes de se dar. Tua impaciência com meu gosto pelos itens que não são do teu, fere-te. Tua paixão pelo trivial sistema de valores que escolheste é lástima incurável. Lembro quando te convidei pra ouvir comigo o "Body and soul" no dueto Bennett e Winehouse: Porra! Sem sequer parar pra ouvir, jorrou dessa carnuda boca: "Isso é música de bebum!".
Quase me afundei na cadeira de vime do terraço. Mas de vergonha. Tua impaciência misturada à falta de controle para um contraponto de trombone na segunda parte é de uma completa insensibilidade. A desculpa é de que não estudaste música, não dominas o inglês cantado, não tens ideia de estética. Mas gozas de véspera quando insistes para que eu aprecie "Detalhes" de Roberto Carlos, que no todo é música de quem finge sentir o que seja paixão. Embora eu já me haja convencido de que ele, o rei, canta razoavelmente afinado na vida. Poderia ter escolhido outro tipo de domingo de verão. Mas a natureza proveu esse a um casal que não comprou bilhetes com antecedência pra querer assistir tudo da primeira fila. Jogo fora o resto da água do copo, olho ao redor de mim mesmo e estou transtornado. Sabia que não daria pé. Desconfiava que me afogasse na praia do teu descaso. Tinha certeza, plena, de que no meio da noite é preciso mais cuidado com certo tipo de sonho. Estou seguro de que da próxima vez, insone, não farei nenhuma questão de atender ao telefone; não para ouvir essa voz arrastada e agreste, pela qual certa vez, num domingo antigo, sucumbi apaixonado. Pudesse rasgaria o modelo atual de calendário e suprimiria o "sunday", de tuas aulas de inglês.
Não há mais porque estar girando em círculos. Nem tem porque tentar apagar uma pequena chama supondo ser um vasto sinistro. É demasiado fardo pro meu insensato coração. Espreguiço-me, olho em volta um vaso de copo-de-leite vívido, salpicado de chuva. E esse semblante descorado de silêncio a me olhar cinicamente. Sobe um estranho frio pela espinha dorsal, estou sem respostas. Quero saber da hora, a que horas estamos de desencanto. Saio devagar até a sala e na parede o relógio me mostra o tempo de ir. Sem graça e sem atitude, reparo mais uma vez o ar de indiferença que revelas sob a mecha de cabelos. Não te vejo mais o olho cinza, neutro. Não consigo me encontrar em ti como no sonho. Não faz mais sentido, não há mais porquê, não há mais domingo. Desço o batente da varanda e te olho mais uma vez só pra confirmar se é mesmo verdade. Acima das mangueiras do quintal, um bando de bico-de-lacre revoa sob uma longa nuvem tímida, depois da chuva.

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WALTER DA SILVA
Camaragibe-PE
12.03.2013
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(ESSE É UM TEXTO DE FICÇÃO, QUALQUER SEMELHANÇA COM PERSONAGENS VIVOS
OU MORTOS, TERÁ SIDO MERA COINCIDÊNCIA)
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