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cronicas-->AS COISAS ACONTECEM -- 03/11/2013 - 02:19 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AS COISAS ACONTECEM
Uma crónica urbana
Jan Muá
31 de outubro de 2013

Era um dia de chuva de outubro. Eu conversava com minha amiga Lúcia num banco de cimento no interior do Minhocão Sul na Universidade de Brasília. Éramos amigos. Era essa a minha impressão. Gostávamos de conversar. Estudávamos juntos nas grandes salas da biblioteca central, levávamos o notebook para registrar nossas pesquisas. Nesse dia, tínhamos tomado café de manhã numa tenda da Universidade e a conversa havia mais de quinze dias que tinha pegado firme parecendo revelar algo mais. Não sei se era um sinal de aproximação ou princípio de namoro mesmo. Certeza eu não tinha, mas o interesse de estar juntos parecia ser maior que a normal amizade. Eu começava a notar isso. Nela havia também sinais firmes de que me ouvia e me olhava de maneira diferente. Sempre falávamos de nosso quotidiano, dos problemas do país e dos problemas da universidade. Havia muita sintonia entre nós. E muita aproximação. Tínhamos trocado beijos na saída da biblioteca e o grande sinal estava em que era difícil nos desgarrarmos. Sem que Freud ou Lacan tivessem sentenciado havia a prova de que nosso inconsciente estava nos amarrando. O único obstáculo parecia ser a obstinação de Lúcia permanecer bastante fechada e demorar em ser mais explícita em seus sentimentos para comigo.
Mostrávamos preocupação com os últimos acontecimentos políticos brasileiros, que denunciavam uma certa indignação popular. E falávamos dos problemas jovens também. Não apenas da política e dos cursos da universidade mas de amor e de sexo. Parecia que no debate a Lúcia era mais conservadora do que eu. E quando falávamos de sexo, ela era dura e taxativa. "Não tem que ter pressa nem se precipitar. As coisas acontecem", dizia. Esta frase retumbava em meu ouvido e me dava muito que pensar. Tinha minhas reserva a este dogmatismo frontal e tão bruto, caído em bloco em meu ouvido desabituado a aceitar preceitos absolutistas. Sim, está certo, respondia eu. "As coisas acontecem". E daí? Que mundo é esse de "As coisas acontecem"? Elas acontecem sim. Mas como? E por quê acontecem? Eu resistia e ponderava isso para ela.
Ela não se entregava. Dizia-me que tinha ouvido isso de uma vidente de uma cidade do interior de Goiás. E que acreditava plenamente. Que a vidente era confidente de sua madrinha e que sua mãe também a frequentava. Eu ficava meio confuso quando era confrontado com os perfumes das alfombras das salas de consulta das videntes de Goiás mas depois me reerguia e ficava na minha. Tinha a tendência de dar preferência às pitonisas antigas, que respondiam às consultas populares da Grécia. Achava elas com mais charme, mais treinadas nos mistérios do mundo, mais preparadas para poderem dar uma sentença que misturasse as odisseias e os vendavais da vida com a razão misteriosa do soberano intelecto agente de Aristóteles e dos árabes. Ao fim e ao cabo eu defendia o mesmo princípio de Lúcia, mas com uma variante. Sim, "as coisas acontecem". Puxa! Mas muitas acontecem porque são desejadas, acompanhadas e planejadas para acontecerem. E por isso não resistia em segredar ao ouvido dela: olha só, Lúcia. Há coisas que acontecem por acaso. Concordo. Mas há outras coisas que acontecem depois de serem planejadas, desejadas e realizadas. Morou? Além disso, se pensar bem, as coisas não são tão cegas assim. Acontecem, mas a maior parte delas é conduzida pelo homem. É um ponto fundamental observar isso. Os homens podem fazer que as coisas aconteçam através de sua vontade. E podem também impedir que as coisas aconteçam por vontade de alguém. Um beijo, por exemplo, pode ser querido, desejado e executado por nossa vontade. Acontece porque o desejamos e o damos. Uma coisa é certa: o mundo muda pela liberdade e pela disposição do homem. Por outro lado, há coisas que acontecem sem que o homem saiba de antemão sobre esse acontecimento. O próprio amor pode surgir na contramão, sem ser esperado. Mas vem o momento em que tudo se torna consciente e voluntário. Os dois amantes passam a construir, a partir de um momento, seu projeto de compromisso que passa a ser o projeto do acordo de duas vontades. Alguns cordelinhos invisíveis manipulados a partir do inconsciente chegam aos nossos neurónios e os transformam em escravos com efeitos transcendentes também. Mas não só.
-Num caso ou noutro, disse Lúcia, "as coisas acontecem". Voluntariamente ou involuntariamente. Mas acontecem.
-Verdade, disse eu.
- Sim, além das coisas acontecidas por acaso ou por disposição do destino, há "as coisas que acontecem" num contexto humano mais amplo e determinado onde o homem joga seu papel de ator intervindo no seu destino. Se as coisas acontecessem sem mais nem menos, o que seríamos nós no jogo das coisas? Apenas bonecos manipulados, certamente. Mas ninguém gosta de sentir-se boneco de circo. Todo o mundo gosta de fazer as coisas a seu modo, todo o mundo gosta de participar em projetos que o respeitem como pessoa livre. É dentro desta liberdade de escolha que as pessoas ficam ansiosas esperando dar certo seu plano. É dentro desta liberdade que gostam de abraçar projetos e lutar para que as coisas aconteçam. Fazendo um cursinho para ser aprovado em concurso, por exemplo.
Somos seres livres com alguma ilusão. Por vezes, com muitas ilusões. No contexto de nossas emoções e sem a dureza do artificioso racionalismo podemos conciliar destino e vontade humana. "As coisas acontecem", Lúcia. E podemos também fazê-las acontecer. Podemos programá-las para acontecerem. Tal como acontece no amor entre duas pessoas que se amam. O que parece ser verdade é que as coisas não acontecem sem que algo de verdadeiro nas pessoas detone o primeiro arranque para que algo de bom aconteça entre elas.
Jan Muá
31 de outubro de 2013.
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