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cronicas-->MEMÓRIA DE UMA MADRUGADA (1987) -- 26/05/2001 - 20:17 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Saí de casa às quatro da manhã e dirigi-me ao aeroporto. Destino previsto - Amsterdão. Destino inesperado - Portugal e a Liberdade reconquistada.
- Não pode passar ! - disse amavelmente um soldado.
- Mas estou atrasada ! E tenho de picar o cartão ! - ripostou a colega que tentava passar ...
- A tropa justificará tudo !
Assim, sem esperar, fiquei a saber que algo se passava em Lisboa. Regressei a casa, já com a rádio ligada e numa ansiedade extrema. Subi as escadas a correr, acordei a família e liguei a telefonia. Cada notícia, cada marcha, eram por mim escutadas e sorvidas numa tentativa de descodificação. Um golpe ? Mas de quem ? - O cérebro começou a funcionar como uma roleta e vários nomes começaram a surgir. Kaúlza ? Spínola ? Um movimento de oficiais ? Quem ? A informação disponível era escassa. Para cada palavra ouvida na rádio, tentava descobrir o significado real.
Quando me pareceu já não haver dúvidas, contrariando os pedidos feitos pela rádio, saí para a rua. O futuro, há tanto desejado, esperava-me. A luz aparecia ao fundo do túnel.
Saí para a rua como hoje, 13 anos volvidos. Sorriso nos lábios e em breve um cravo no peito. Hoje, no entanto, mal saí a porta ouvi um «viva Salazar!». Um indivíduo, modestamente vestido, franzino, dava passos apressados, parava, gesticulava, pronunciava palavras que mais pareciam grunhidos e, olhando para as janelas, soltava o seu grito obsceno. Eu, que me julgava incapaz de tal sentimento, odiei-o e, secretamente, com a serenidade possível, relembrei os tempos do «velho ditador».
Relembrei os saltos até Paris (as facilidades nas viagens ajudavam-me). As peregrinações à Editora Maspero, onde passava parte dos meus dias. Lendo títulos, folheando livros, comprando jornais... Todas as oposições do mundo ali estavam representadas. Lá comprei o «Avante» da clandestinidade, publicações maoístas, livros soviéticos, livros cubanos, alguns brasileiros, outros portugueses... Que interessavam os pormenores se o essencial nos unia ? A fartura, no entanto, era tanta, que nos acontecia olhar desconfiados para o cidadão do lado que também folheava publicações em português. Sempre a sombra da polícia política omnipresente !
Tomei conhecimento nas décadas 50/70 com nomes aqui proibidos. Ao acaso lembro Jorge Amado (a sua Baía e o seu Povo), Fidel Castro (os seus longos e apaixonantes discursos), Che Guevara ( e a sua epopeia nas montanhas de Cuba e da Bolívia), Dolores Ibarruri ( a tal que preferia morrer de pé do que viver de joelhos), Régis Debray (filósofo, escritor, e muitos anos mais tarde conselheiro de Mitterand), Franz Fanon (o defensor dos oprimidos), Amílcar Cabral ( o homem da independência da Guiné-Bissau, mas também na origem das boas relações futuras com Portugal), Mário Soares, Raul Rego, José Magalhães Godinho, Salgado Zenha (homens publicados sobretudo em tempo de eleições), Aquilino Ribeiro (Mestre da língua portuguesa, odiado por Salazar), Soeiro Pereira Gomes (o escritor do Povo), Urbano Tavares Rodrigues e tantos outros. Claro que também ia lendo os clássicos ... Marx, Engels, Lenine, Politzer, Cunhal, Sartre, Marcuse ... O «Cavaleiro da Esperança», com indicação de ter sido publicado em Paris mas, afinal, impresso clandestinamente em Lisboa, como me confessaria anos mais tarde o próprio Jorge Amado.
Relembrei os filmes que via lá fora e que em Lisboa não podia ver. Às vezes por motivos bem ridículos ... Mas sempre «a bem da nação, da moral e dos valores ocidentais». Outros filmes conseguia ver mas de tal forma mutilados, nos diálogos ou nas imagens, que constituíam verdadeiros atentados à cultura.
Relembrei alguns cantores «malditos» : O Cília (das festas em Paris, a favor dos trabalhadores em luta) , o Letria (sempre pronto a colaborar em sessões organizadas por gente progressista), o José Mário Branco ( e o longo abraço a sua mãe no dia em que regressou ao Portugal livre) , o Adriano (tão cedo desaparecido), o Zeca Afonso (o tal que utilizava todas as oportunidades que lhe davam para ser o porta-voz dos oprimidos), o Tordo (e a sua dupla com Ary que nos daria algumas das mais belas canções portuguesas). E tantos, tantos outros.
Relembrei as eleições de Humberto Delgado e a colecção de recortes, revistas e jornais estrangeiros, que então fiz. Tempos depois, mal recebi um aviso da polícia, afinal referente apenas a um acidente de que fora testemunha, queimei todo o material e lá foi tudo por água abaixo após uma puxadela de autoclismo para maior segurança. Ao que obrigava o receio ! - Aquele mesmo material, como tempos depois tudo o que se referiria ao sequestro do Santa Maria ou às guerras do ultramar, servira para reuniões até às tantas onde, com vários amigos, procedia à respectiva leitura e comentários.
Relembrei as notícias que não podia ler, ou que lia deturpadas. O suicídio que não passava de um acidente ou de morte natural. Como podia ele ser justificado se tudo era um paraíso ? - O desemprego - esse não existia ! Pois pudera ! - Os desempregados emigravam... Mas porque se emigraria se cá se vivia tão bem ? - A guerra do ultramar ? - Mera propaganda comunista. Não havia problemas ! - Os soldados embarcavam a cantar, enviavam mensagens às famílias em todos os Natais e quando regressavam eram recebidos com vivas, beijos e abraços. Tudo normal. Por vezes até eram recebidos festivamente pelas bandas das suas terras. Não regressavam todos ? Não regressavam inteiros ? Caluda ! Portugal tinha de ignorar. As famílias que sofressem individualmente no recato dos seus lares.
Éramos um Povo castrado. Uns que sofriam no espírito. Não podiam (ou podiam dificilmente) saber mais do que aquilo que lhes era debitado pelos órgãos de comunicação. Outros sofriam no corpo. Heroicamente resistiam. Hipotecavam as suas próprias vidas. Outros, pior ainda, aliavam as duas espécies de sofrimento - o físico e o moral. Outros ainda, por cá passavam sem dar por isso, ignorantes, distraídos - propositadamente ou sem querer. Eram as raízes criadas pelo próprio sistema. Raízes que se aquietavam na tranquilidade de nada fazer para que tudo ficasse na mesma. Antes assim que pior. Os outros que pensassem por eles. Finalmente, suponho que uma minoria - aqueles que seriam os verdadeiros fascistas, os homens do regime, os homens do capital, os homens sem rosto nem pátria. Tanto podiam explorar aqui como noutro sítio, com dinheiro e cúmplices em todo o lado, com todo o tempo para esperar ... Anos mais tarde, voltariam à tona de água para pedir as indemnizações «devidas por um estado democrático». A palavra democracia deveria, no entanto, ser considerada blasfémia em semelhantes bocas.
Todos estes acontecimentos e considerações percorreram em tropel a minha memória, memória de uma madrugada em que tudo mudou, em que a ruptura se consumou. Entretanto, rua abaixo, ouviam-se os tais vivas a Salazar. Em breve porém o «ódio» se transformaria em pena. O pobre, segundo me disseram, tivera grandes desgostos familiares, tornara-se alcoólico, chegara a estar internado num hospital psiquiátrico. Agora vagueava ao acaso, como um náufrago, pelas ruas e avenidas desta cidade que lhe fora madrasta. Desculpei-o no meu íntimo. Tratava-se de um pobre débil mental. Estava justificado.
Horas mais tarde, li num matutino que me emprestaram : «Ainda há quem diga que o 13 não dá azar ! Pensem no que aconteceu há 13 anos ! ». Conspurcar assim uma data que nos fez sair do obscurantismo. Utilizar afinal a liberdade que ela tornou possível ... Hesitei. Mas não, três vezes não, não vou odiar mais. Porque não dar o benefício da dúvida a tal colunista? Para mim, ponto assente, trata-se de mais um caso de debilidade mental !

(Abril 1987)
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