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Contos-->Entre suspiros -- 06/10/2001 - 20:02 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Entre suspiros



Namorado firme, desses como os dos tempos antigos, de boca inquieta no chicletes, drops no bolso da calça - drops, drops na calça, como a perturbavam - era o sonho de Valdilene. Sofria por não conseguir alguém que chegasse aos domingos de colarinho engomado, aspereza da barba pronta para carícias dos dedos ávidos, que oferecesse balas, bombons, as palavras açucaradas acenassem para os rios de mel do futuro.
Comprava drops caramelados, nunca os deixava faltar no fundo da bolsa, ainda arranjaria alguém que lhe compreendesse o fraco pela guloseima. Compreendesse, respeitasse, dividisse o prazer de experimentar doces novos, compartilhasse as novas sensações da bala de tâmara, do azedinho do piruito de kiwi que dava friagem no céu da boca, sugerindo troca-troca de línguas por entre jujubas de hotelã e salivas adocicadas. Uma loucura. Devia ser.
Valdilene entendia amor como sensação líquida e glicosada, banhada em sabores agridoces dos beijos de hortelã, a bem dizer se derretia em pensamentos confeitados, nos quais habitavam, roubando-lhe o sono, ora o suiço executivo da Nestlé, ora o fazendeiro baiano dono de florestas de cacau. Os dois alternavam-se nos pensamentos noturnos, mal-comparando proporcionavam-lhe aflições turbulentas, derretimentos em forma de suores caramelados, seguidos de vazios abissais ao cair em si, despertada. E solteira. E amarga.
Morava sozinha, a família, pai e mãe esperavam-na em Passa Quatro. No modesto quarto-sala, em três gavetas bem distribuídas, na do armário da cozinha, da cômoda na sala, da mesinha de cabeceira, sortimentos de bombons aguardavam vez. Chocolates, Garoto. Garoto. Por que não? Alternativa para o caso da não materialização do suiço ou do baiano.
A fraqueza às vezes doía muda, às vezes dava vontade de explodir. Nem considerava fraqueza, aliviava-se amenizar - edulcorar - o sentimento: expectativazinha. Assim. Bem miudinho, como um mimo que se guarda guardadinho pros usos dos momentos de felicidade sorrateira. Cada vivente tem o sagrado direito de embalar as manhas da alma, dar de comer às esperanças mais recônditas. Batizá-las para si. Expectativazinha. Se a humanidade vive repleta de gente com vícios satânicos, não seria por causa do inocente desejo de beijar entre drops caramelados que iria se curvar diante das zinhas da escola, servir de motivo para chacotas. As colegas da escola também teriam seus bem guardados devaneios, diversas tresandavam perversões - diziam, cochichavam horrores. Não seria o cristo das outras revelando o segredo. Um dia o homem-doce, fosse louro de Berna ou moreno-rapadura da Baía, cruzaria seu destino e o desejo de se ver noiva-de-bolo afinal aconteceria.
Perguntavam: - Arranjou, Valdilene?
Vontade de morrer, sumir, de avançar nos cabelos da outra, aprontar escândalos, devolver com unhadas a maldade da pergunta. Perguntavam pelo prazer do embaraço. Aguardassem, iriam ver.
Não se achava feia: tímida, recatada, mulher de palavras suspensas. Tendia a gordurinhas, sudorese mais-da-conta, olhar meigo, consistência da carnadura macia como peito-de-moça, não tinha estrias. Mas quem decretou que o ideal de beleza restringe-se às magras e ossudas? Homem gosta de carnaduras bem fornidas, as formas arredondadas encantam baianos e suiços, estes desde os tempos da Renascença, basta ver os nus do Louvre. Bons dentes, pontual salário de merendeira no Ciep capaz de mantê-la de pé e atenta, só faltava o noivo chegar para, juntos, escalarem a felicidade do bolo da vida em forma de olimpo, o casalzinho de biscuit bem postado por sobre o mundo de glacês, entregue à fazeção de filharada, como abelhas-obreiras dos favos às flores, das flores aos favos, o vaivém polinizador como Deus traçou, e cumpre quem pode e tem sorte de amar.
Da janela do ônibus diário podia ver o letreiro da loja tentadora: Sugared - Um mundo de mel”. Mulher sem luxos nem modismos, desprezava butiques de roupas, encantava-se com bombonieres, intuia que do ramo surgiria ele, o tal, voluminho roliço no bolso da calça - drops? - pronto pros embates de portão e cama.
O par de olhos partiu da loja de doces, encontraram os de Valdilene no momento do desembarque na rodoviária. Rapagão morenaço, rabo de cavalo realçando o esguio do porte, camisa sem mangas exibindo os braços possantes, Valdilene não esperava tanto.
Chegou-se:
- Te conheço de onde?
Ela fez que não ouviu, mas não fez muito. O bastante para notar chiado carioca, nem áspero dos Alpes, nem cantante do Recôncavo. Carioca, da gema.
Ele insistia:
- Do Ciep?
Valdilene:
- Mora perto? Pai de aluno?
O riso aberto dele ganhou correspondência no sorriso discreto dela. Conhecia-a de ver passar, seguia-a há tempos, disse nome do Ciep, bairro de moradia, soltou a pergunta perturbadora:
- Vai comprar doce, hoje? Chegou doce-de-leite mineiro, coisa boa, parece feito em casa.
- Gosta? - Valdilene mal disfarçou o encantamento por causa da afinidade.
- Sou fissurado, me amarro, não passo sem meu açúcar.
- Dizem que engorda.
- Eu sei. Malho em academia três vezes por semana, queimo calorias, fico compensado. Sabendo compensar, energiza, vira músculo.
A conversa agradava, subiram ao ônibus da baldeação, sentaram-se lado a lado. Saltaram no mesmo ponto, na porta do Cipe ele disse:
- Às cinco venho te buscar.
- Acho que...
- Há muito tempo te vejo entrar na loja, comprar o drops...
- Nem sempre...
- Quando não é drops, mariola, jujuba.
Ela ruborizou-se:
- Me vigiando.
- Hoje ganhei coragem, resolvi puxar conversa, Valeu?
- Não sei. É cedo.
Valdilene flutuou o resto do dia, a taquicardia disparou no sinal das aulas encerradas. Ele estava lá no portão da escola, os braços possantes, talvez houvesse trazido o drops. Era cedo, mas se trouxesse...
Não era suiço, nascera e se criara no Cavalo de Aço, imediações de Santíssimo. Não sabia que o chocolate provêm do cacau, de maneira que a conversa custou a ganhar rumo. Valdilene dava as deixas para arredondar as afinidades, além dos doces, mas ele voltava ao ponto - no ponto - virava conversa ao fogo brando, banho-maria de intenções dissimuladas.
- Te trouxe o doce-de-leite. Prova - ele desembrulhou o pacotezinho, colocou-lhe o doce ao alcance da boca, ela trincou a pontinha com os dentes, provou. Por sua vez, ele também tirou um naco. Foi a primeira troca de salivas.
Outras vieram e se sucederam muitas naquela tarde, em cujo final as gavetas esvaziadas guardavam apenas farelinhos de paçoca, os bombons Garoto devorados um a um, por entre suspiros e muitas lambeções em peitos-de-moça, no sentido figurado, inclusive.
Era noite, quando Valdilene, exausta dos bons-bocados, ousou saber:
- Moranguinho... você vive de quê?
- Dou um doce se adivinhar.
- Trabalha na Sucared?
- Por aí... quase.
- É o dono?
Ele a puxou para junto ao peito:
- Deixa pra lá... sou do ramo, ralo numa boa, te acho um doce-de-coco. Isso basta, não é?
Bastava mesmo. Ainda teve a saideira, melhor dizendo, a sobremesa. E outras se sucederam, muitas. Dali para a frente não haveriam de faltar mariolas para adocicar a solidão de Valdirene, que acabou largando o emprego no Ciep para acompanhar o namorado na venda de doces no sinal da Curva do Matoso.

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