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Cartas-->QUAL A RAZÃO? -- 31/10/2007 - 10:12 (Heleida Nobrega Metello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Não sei o porquê de ter nascido*

Heleida Nobrega, 16 de outubro de 2007


Caro amigo


Até hoje não sei o porquê de ter nascido. Minha mãe nunca me quis por perto, tampouco permitiu que eu ficasse com meu pai. Em toda a minha vida, usufruí de sua companhia por apenas dois anos, somente dois anos.

Ora eu estava com ela e um novo companheiro, ora de orfanato em orfanato. Por uns tempos morei com uma tia em São Bernardo. Foi quando estudei num colégio na Rua da Consolação, perto do centro da cidade de São Paulo. O percurso se resumia numa condução e o restante, a pé. Andava muito, muito mesmo. Chegava exausto, com vontade de dormir. Só de pensar na volta, meu estímulo arrefecia diante de qualquer tipo de aprendizado.

Num desses dias, em que eu não sabia se estava dormindo ou acordado na sala de aula, surgiu um grupo de médicos para examinar os alunos da escola. Nem sei se chegaram a examinar todos.

Olharam para mim, dirigiram-se dura e friamente em minha direção, perguntaram sobre umas manchas no braço e no rosto, mexeram nas minhas orelhas e colheram ‘material’ do meu nariz com cotonete ou coisa parecida. Não sei dizer quanto tempo se passou até que me tiraram da sala, da escola e me jogaram num carro grande, pela porta traseira, como se fosse um saco de lixo. Não disseram nada, absolutamente nada. Eu era uma criança solta no mundo, apenas uma criança sem laços à mercê do destino...

Quando despertei do susto, um outro me aguardava. Estava num local que não se assemelhava aos orfanatos pelos quais tinha passado. Era grande, muito grande. Parecia uma cidade: tinha casas, ruas, igreja, quadra de futebol, salão de bailes, cinema, delegacia, prisão... Quanto ao resto, fui descobrindo mais tarde.

Assim que a porta traseira foi aberta algumas pessoas pararam curiosas esperando minha saída do carro. Desci tímido como nunca tinha me sentido. Não sei se cheguei a pisar no chão, pois não o senti sob meus pés naquela tarde sombria.

Ao redor escutava os comentários: “mais um menino que vai perder de vista a família. Pobre coitado!”

Na realidade não foi o que me chocou, pois desconhecia esses laços familiares de que falavam. Contudo, estranhei que não tivessem avisado minha tia ou minha mãe antes de me colocarem no carro.

Soube depois, que tal procedimento era absolutamente habitual. Quase todos que ali estavam deram esse depoimento.

Um dia minha mãe apareceu e levou algumas roupas.

Cresci nesse local, namorei, fugi, voltei, fugi, fui pego novamente e quando saí, depois de muitos e muitos anos, já bem adulto, pelo menos na aparência, casei do lado de fora daquelas terríveis cercas. Vale dizer, com a mesma namorada.

Nesse tempo, uma certa deputada estadual se sensibilizou pela situação dos doentes internados nesses asilos e, felizmente, fui um dos favorecidos.

Assim que deixei o ‘meu’ asilo-colônia, para viver do lado de cá fui trabalhar como carcereiro, emprego negociado por essa deputada antes mesmo do meu casamento.

Senti o gosto de ser carrasco, pois nesse tempo não era mais eu o prisioneiro e sim, os outros. Por vezes, o destino nos assinala estradas estranhas.

Apesar de tudo, graças a esse trabalho tive oportunidade de me aposentar como funcionário público.

Casado, idealizei a família que não pude ter: os filhos não vieram. Não sei bem o que ainda tinha para aprender pelo caminho da dor. Optamos pela adoção.

Uma linda menina com apenas oito dias foi liberada pelo juizado de menores: nossa filha acabava de chegar. Com ela, uma esperança ímpar!

Hoje tenho oitenta anos. Minha esposa faleceu no ano passado. Minha filha, já madura, na casa dos trinta, saiu de casa há dois anos para viver em companhia de uma pessoa com quarenta anos. Quis saber se ele era solteiro, casado, enfim, em que situação ela estava envolvida. Nunca me deram uma resposta. Só sabia que ele era japonês, mais nada! Não era questão de preconceito, obviamente.

Quando ela saiu de casa, minha esposa já estava demente e com uma das pernas endurecida. Era eu quem cuidava dela: dava banho, comida, a colocava na cama, enfim, todas essas coisas que envolvem o cuidar do outro.

Onde estava a menina que tínhamos cuidado desde os oito dias de vida?

Por sorte, minha esposa já estava ‘frágil da cabeça’ e não percebeu essa situação. Minha filha aparece vez ou outra. Ele, não.

A casa ficou vazia e grande demais. Muito grande para tão pouco calor. Muito espaço para poucas vozes. Pequena, para acolher tanta dor...

Talvez, se eu tivesse ficado no `asilo-colônia` como ficaram alguns, não estivesse me sentindo tão só.

Ainda me pergunto qual a razão de ter nascido. Qual a razão?



Um abraço


Heleida, outubro de 2007


* história com pano de fundo real resgatado dentre depoimentos, em função da lei federal 11520 referente à pensão especial para àqueles que foram internados `compulsoriamente` por hanseníase.
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