A comemoração do trigésimo aniversário do golpe de Estado contra Salvador Allende no dia 11 de setembro tem desencadeado uma onda de comentários e de análises nos quais a figura do presidente derrocado é canonizada e ele é transformado numa espécie de mártir da democracia. Sem dúvida, a longa ditadura instaurada pelo general Pinochet e a repressão brutal à qual deu lugar merecem uma condenação unânime. Entretanto, a história do fim do governo da Unidade Popular é bem diferente da refletida por uma boa parte dos meios de comunicação nestes dias e muito diferente de como foi contemplada no seu momento. Como expressava The Economist em seu editorial do dia 13 de setembro de 1973: "A morte transitória da democracia no Chile será lamentável, mas a responsabilidade direta pertence claramente ao Dr. Allende e àqueles de seus seguidores que atropelaram a Constituição".
A tragédia chilena não foi o produto da eventualidade e nem das tentativas
das "forças reacionárias" de acabar com um pacífico processo de mudanças,
mas sim o efeito direto do projeto ideológico desenhado pelo Partido
Socialista do Chile. Nos seus congressos de Linares (julho de 1965) e de
Chillán (novembro de 1967), o PSCH definia-se como marxista-leninista e
proclamava a legitimidade do uso da força como meio para alcançar e/ou
manter o poder. No Congresso de Chillán, a resolução adotada de forma
unânime pelos compromissários dizia que "a violência revolucionária é
inevitável e legítima... Constitui a única via que conduz à tomada do poder
político e econômico, e à sua ulterior defesa e fortalecimento. Somente
destruindo o aparato democrático-militar do Estado burguês pode
consolidar-se a revolução socialista". Obviamente, os membros restantes da
coalizão allendista, como o MIR e o Partido Comunista, compartilhavam dessa
opinião (ver Julio Cesar Jobet, La Historia del Partido Socialista de
Chile, Documentas, 1987).
Em meados de 1973, o exercício antidemocrático do poder por parte de
Allende e de seus ministros o tinha levado a um choque institucional aberto
com os poderes Legislativo e Judiciário. No dia 23 de agosto desse ano, a
Câmara de Deputados, por uma maioria de dois terços, e no dia 26 de maio a
Corte Suprema, denunciaram a violação dos direitos constitucionais e da
legalidade, praticadas pelo governo. Num discurso pronunciado poucos dias
depois, o Presidente respondeu: "Num período de revolução, o poder político
tem o direito de decidir em último recurso se as decisões judiciais
correspondem ou não às altas metas e necessidades históricas de
transformação da sociedade, que devem ter absoluta precedência sobre
qualquer outra consideração. Em conseqüência, o Executivo tem o direito de
decidir se acata ou não as decisões da Justiça". Essa declaração é
consistente com a formulada pelo Ministro da Justiça no dia 1 de julho de
1972: "A revolução se manterá dentro do direito enquanto o direito não
pretenda frear a revolução". Essa foi a base moral e política do
levantamento contra o governo da Unidade Popular.
Na sua carta ao Presidente da Democracia Cristã Internacional, no dia 8 de
novembro de 1973, Eduardo Frei sintetizou a conjuntura chilena que
desencadeou o golpe de Estado, nos seguintes termos: "Tentaram impor de
forma implacável um modelo de sociedade claramente inspirado no
marxismo-leninismo. Para consegui-lo, aplicaram as leis tortuosamente ou as
atropelaram abertamente, desconhecendo os Tribunais de Justiça... Nesta
tentativa de dominação, chegaram a propor a substituição do Congresso por
uma Assembléia Popular e a criação de Tribunais Populares, alguns dos quais
chegaram a funcionar, como foi denunciado publicamente". Dessa maneira, o
ex-Presidente Frei, cujo partido tinha apoiado a eleição presidencial de
Allende, manifestava as causas determinantes da crise.
A queda de Allende supôs um retrocesso para as aspirações soviéticas de
infiltrar e desestabilizar o continente ibero-americano, estratégia
assumida pelo Partido Socialista no seu Congresso de Linares, no qual se
advogava por "promover um processo de enlace e coordenação e integração de
todos os movimentos revolucionários da América Latina". Ao longo de seus
três anos no governo, a Unidade Popular tinha transformado o Chile num
satélite cubano e dava passos decisivos para transformar o país num Estado
comunista a partir de uma base eleitoral de 32.6% dos votos e com minoria
no Parlamento. Como foi declarado à imprensa pelo futuro presidente do
Chile democrático, Patricio Alwyn: "A verdade é que a ação das Forças
Armadas e do Corpo de Carabineiros não veio a ser senão uma medida
preventiva que se antecipou a um autogolpe de Estado, que com a ajuda das
milícias armadas com enorme poder militar de que dispunha o governo e com a
colaboração de não menos de dez mil estrangeiros que estavam neste país,
pretendiam ou teriam consumado uma ditadura comunista" (La Prensa, 19 de
outubro de 1973).
Tudo isto sem contar com o abismo socioeconômico ao qual o Chile foi levado
por Allende. A inflação estava em torno dos 350% antes do golpe de Estado.
As expropriações sem compensação e a péssima gestão macroeconômica, entre
outros, traduziram-se na quebra de milhares de pequenas e médias empresas.
Uma onda de greves sacudiu o país diante da inaptidão do governo e a
pobreza alcançou limites desconhecidos no Chile. Com o seu programa
marxista em marcha, a Unidade Popular destruiu a economia chilena e situou
o país na borda do precipício. Apesar de tudo, essa não foi a causa central
e nem principal da assuada cívico-militar.
A intervenção militar foi o resultado de uma rebelião civil e parlamentária
diante da deriva do regime da Unidade Popular em direção ao totalitarismo.
Allende tinha uma legitimidade de origem limitada, que destruiu mediante um
exercício inconstitucional do poder. O resultado foi a entronização de um
longo, injustificável e doloroso período de autoritarismo militar com uma
legião de cidadãos exilados, presos e torturados. Entretanto, Salvador
Allende carece de títulos para figurar no santoral ou no martirológio da
democracia chilena, como pretendem alguns, porque liderou um projeto cujo
final teria conduzido de maneira inexorável à destruição do sistema
democrático no Chile. A sua morte trágica merece compaixão pelo homem, mas
acima de tudo pelo país que o seu sectarismo afundou na negra noite da
ditadura; nunca mais um Allende e nem um Pinochet."
(*) Lorenzo Bernaldo de Quirós é presidente do Freemarket International
Consulting em Madrid, Espanha, e acadêmico associado do Cato Institute.
(**) Claudio A. Tellez - claudio@tellez.com
http://www.claudioandrestellez.blogger.com.br
"Moral excellence comes about as a result of habit. We become just by doing just acts, temperate by doing temperate acts, brave by doing brave acts" (Aristotle).